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Barcos em Papua Nova Guiné
Barcos em Papua Nova Guiné| Foto: Needpix

Das diversas eleições e votos que ocorrerão no próximo final de semana, uma delas é pitoresca, o referendo pela independência de Bougainville. “Lá vem este colunista com temas esquisitos para alguns de seus textos”. Na verdade, existem algumas reflexões importantes nesse cenário que, por óbvio, parece distante. Primeiro, do que se trata, onde fica esse lugar e qual o motivo dessa independência?

Bougainville é uma região autônoma, uma província, parte de Papua Nova Guiné. O principal território da província é a ilha de mesmo nome, Bougainville, com cerca de 230 mil habitantes distribuídos em pouco mais de 9 mil quilômetros quadrados. Outras ilhas menores e atóis também compõem a região autônoma. As origens do pleito de independência das ilhas são diversas.

Motivos para independência

A primeira é étnica e geográfica. Bougainville, embora politicamente integrante de Papua Nova Guiné, é geograficamente parte do arquipélago das Ilhas Salomão. A luta pela independência, que já incluiu uma ala armada no passado, alega que a população de Bougainville não seria papuásia, mas sim salomônica, outra população, que mereceria o seu próprio Estado nacional.

A segunda origem está na História e na política. Bougainville foi uma posse do império colonial alemão, que durou oficialmente até o fim da Primeira Guerra Mundial. Na prática, o domínio alemão foi encerrado logo no início do conflito, com a Austrália ocupando as ilhas. Após a guerra, a Liga das Nações estabeleceu que a antiga Nova Guiné Alemã seria administrada via mandado pela Austrália.

O imperialismo do século XIX está na origem da complexa situação de Papua Nova Guiné. O país é uma colagem de uma colônia britânica, Papua, que ocupava a região sudeste da ilha de Nova Guiné, com uma colônia alemã que foi administrada pela Austrália, ocupando a região nordeste da mesma ilha, além de outras ilhas isoladas. Nesse tema, Papua Nova Guiné é um dos países com mais comunidades isoladas do mundo.

Ou seja, não é difícil alegar diferenças entre as regiões do país, já que sua História passa longe de ser homogênea. Finalmente, a terceira origem está em um dos fatores que move o mundo contemporâneo: dinheiro. Bougainville é muito rica em ouro e cobre, e os nativos alegam que os dividendos da exploração mineral vão para Papua Nova Guiné, não ficam em suas ilhas.

A atividade mineradora chegou a ficar paralisada, tanto por razões ecológicas quanto por lutas separatistas nos anos 1980 e 1990. Como complicador, a exploração desses minérios não é realizada por companhias locais, mas habitualmente por empresas australianas ou britânicas, cada uma com seus “partidários” dentro da política nacional; segundo a Transparência Internacional, Papua Nova Guiné é o 136º país mais corrupto do mundo.

Como resultado, existe uma combinação de diferenças étnicas, diferenças históricas e de governo, com pautas econômicas ligadas aos recursos naturais. Algumas pautas mais legítimas, como melhor distribuição de recursos, outras mais obscuras, como lideranças financiadas por empresas que defendem uma eventual independência para proveito do próprio bolso. Chega-se ao referendo.

O voto será realizado em duas fases, 23 de novembro e 7 de dezembro. A pergunta será “Você concorda que Bougainville tenha: Mais autonomia ou independência?”. O voto não é legalmente vinculante, mas terá um peso enorme, com uma possível declaração de independência local. O presidente da comissão é o ex-premiê irlandês Bertie Ahern; após 11 anos, ele renunciou em 2008, devido um escândalo de corrupção.

Antigos impérios coloniais

O referendo de Bougainville fornece algumas reflexões pois seu caso está longe de ser único. A ilha de Nova Guiné, a segunda maior do mundo, foi dividida entre três potências europeias, em linhas retas. Hoje ela está dividida entre Papua Nova Guiné e a Indonésia, herdeira da metade neerlandesa. Na região indonésia, entretanto, o separatismo papuano é forte; nos últimos meses foram mais de trinta mortes na Papua Ocidental.

Em Agosto e Setembro o governo da Indonésia chegou a bloquear a internet em toda sua metade da ilha. Mesmo com autonomia regional, o separatismo é baseado num motivo óbvio: eles querem uma união de sua ilha, formada pela mesma etnia papuana. O estopim dos protestos de 2019 foi um episódio racista. Além disso, enquanto a maioria dos indonésios é muçulmana, os papuanos são cristãos ou seguem crenças tradicionais.

A partilha do antigo Império Alemão também produz diferenças e contradições atualmente. O arquipélago das Ilhas Salomão, a referência geográfica de Bougainville, foi dividido entre britânicos e alemães em 1900. A Micronésia também foi dividida, com a maior ilha, Nauru, indo de posse alemã para parte do Império Britânico. O restante da Micronésia, após a Primeira Guerra, tornou-se mandado japonês.

Por sua vez, a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial tornou a Micronésia uma ocupação dos EUA. Hoje, parte do arquipélago é independente como a Federação da Micronésia, outra parte é independente como Palau e uma terceira parte ainda é território dos EUA, as Ilhas Marianas do Norte. Outro país que passou por situação similar é a república das Ilhas Marshall, onde está o atol de Bikini, conhecido pelos testes nucleares.

Finalmente, o arquipélago de Samoa foi dividido entre EUA e o Império Alemão, posteriormente administrado pela Nova Zelândia. Hoje existem a Samoa independente e a Samoa americana. São centenas de ilhas, atóis e ilhotas divididos e amontoados de acordo não com critérios nacionais ou culturais, mas geopolíticos, com movimentos separatistas em maior ou menor grau. Em 2020 a Micronésia realizará um referendo similar.

Uma das últimas fronteiras para desbravamento

A importância geopolítica dessas ilhas, entretanto, apenas cresce. O leitor pode se perguntar qual o impacto, qual a importância, dessas ilhas, muitas minúsculas e inabitadas. Elas representam uma das últimas fronteiras da exploração econômica. Tratam-se de milhares de quilômetros quadrados de zonas econômicas exclusivas de exploração marítima, com recursos como pesca e gás natural.

Também são milhares de quilômetros quadrados de ilhas que são quase intocadas em seus recursos naturais, muitas vezes abundantes. Os britânicos não se interessaram em ocupar Nauru pelas suas paisagens, mas pelo fato da ilha, anteriormente, ser basicamente uma grande rocha fosfática flutuante, hoje explorada quase até a exaustão das reservas. As Ilhas Salomão foram batizadas assim em referência às minas do rei bíblico.

A natureza intocada também inclui possíveis recursos derivados de flora nativa. Ao mesmo tempo, a quase totalidade desses países não possui recursos econômicos próprios, muitas vezes sequer um aparato de Estado. Está ocorrendo, nesse momento, uma verdadeira corrida entre empresas australianas, europeias, dos EUA e da China pelos direitos de exploração dessas ilhas e dessas riquezas.

Junto com isso, escândalos de corrupção e do uso de empresas militares privadas e de mercenários para intervir em disputas locais, reprimir protestos de populações nativas e garantir as diferentes operações econômicas; um exemplo que gera controvérsias na Austrália é o do Paladin Group, empresa criada por um ex-militar australiano. Mesmo em Boungaville, mercenários britânicos participaram da repressão de independentistas.

No fim das contas, o referendo pela independência de Boungaville é muito mais do que um caso exótico ou pitoresco de voto em algum lugar distante do globo. É um exemplo notável do tipo de disputa que se tornará cada vez mais comum no século XXI, uma queda de braço entre potências por influência e predomínio econômico em cada pedaço, por menor que seja, do Oceano Pacífico, a grande fronteira entre EUA e a China.

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