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acordo eau israel
Prefeitura de Tel Aviv, em Israel, é iluminada com as cores da bandeira nacional dos Emirados Árabes Unidos, em 13 de agosto de 2020| Foto: JACK GUEZ/AFP

Na última quinta-feira (13) foi anunciado um acordo para normalizar as relações entre Israel e os Emirados Árabes Unidos (EAU). Dado que já se passaram alguns dias, o assunto já foi bastante tratado pela mídia em geral, porém, acredito que seja interessante tocar em alguns pontos desse anúncio. Uns que já foram mencionados à exaustão, como a rivalidade com o Irã, outros que não receberam a devida atenção que somente um espaço dedicado aos temas internacionais pode proporcionar.

Irã

Talvez a questão central do acordo seja o espírito de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Ambos os países têm o Irã como seu principal antagonista, um como parte da aliança de Estados árabes do golfo, outro como alvo do antagonismo iraniano pós-revolução iraniana de 1979. Esse aspecto do Oriente Médio, por vezes referenciado como uma "guerra fria" entre sauditas e iranianos, foi o cerne de uma série de textos aqui na Gazeta em julho de 2019, quando essas questões foram citadas.

O Irã foi o segundo país de maioria muçulmana que reconheceu Israel, ainda em 1950. Por quase três décadas, as relações entre Irã e Israel foram boas, já que ambos viam os países árabes como seus antagonistas. Hoje, entretanto, a situação mudou. No caso específico dos EAU, essa disputa coloca o país na “linha de frente”, já que uma das mais importantes passagens navais do mundo, o estreito de Ormuz, é partilhado entre o Irã e os EAU. Cerca de um quarto dos hidrocarbonetos do mundo passa por ali.

A normalização de relações, então, contribui para partilha de inteligência entre os dois países. Claro, informações relativas ao Irã, não se deve esperar uma cooperação muito estreita em toda e qualquer pauta do dia para noite. Essa relação já existia, especialmente por intermédio dos EUA, aliado de ambos. E-mails vazados em 2017 do então embaixador emiradense em Washington mostravam essa colaboração, que agora poderá ser feita de maneira mais ampla e aberta.

Histórico e economia

Um aspecto importante que tornou o acordo possível é a falta de animosidade explícita entre os dois países. Eles nunca estiveram em guerra, sequer os EAU participaram de qualquer intervenção contra Israel. Os acordos de paz entre Israel e seus vizinhos árabes fronteiriços, Egito e Jordânia, eram muito mais delicados, tanto em questões estratégicas quanto na necessidade de construção de confiança. O novo acordo será o terceiro entre Israel e um país árabe.

Outro fator que contribui é o fato dos EAU ter se tornado um centro financeiro e tecnológico de alcance mundial. Abu Dhabi e Dubai hoje são cidades globais, o país serve de hub aeroviário e investe bastante na imagem de ser um país moderno. No fundo, não há imprensa livre, são monarquias absolutistas e hereditárias unidas, blasfêmia e apostasia são crimes e, em mais de uma vez, mulheres que notificaram violência sexual foram de vítimas para presas por “sexo ilícito” e “consumo de bebidas alcoólicas”.

Independente de apedrejamentos e açoites, o dinheiro fala mais alto, e ter relações comerciais e financeiras com os EAU é interessante para qualquer país. Ainda mais para Israel, que anseia por normalizar suas relações com seus vizinhos. Os emirados constituem um pequeno país, mas uma das 30 maiores economias do mundo, um país importador, que anseia ser um centro tecnológico, além de investir pesadamente no mercado de armamentos. Tudo isso torna-o economicamente interessante para Israel.

O caminho inverso também é verdade. Israel também importa muitos produtos, como petróleo, e possui uma população de razoável poder aquisitivo. O uso do espaço aéreo israelense pode ser interessante para companhias aéreas emiradenses após a pandemia do novo coronavírus. Além disso, há uma pequena, mas ativa, comunidade de judeus nos EAU. Um dos primeiros passos da normalização de relações será o estabelecimento de algum memorando sobre turismo, inclusive.

Palestina

Aqui entramos em territórios pouco debatidos. Muito se falou que o acordo fez com que Israel cedesse em anexar territórios da Cisjordânia, com anuência do governo Trump. Trata-se de uma versão mais modesta da proposta saudita no início do século: Israel reconhece a Palestina e, em troca, normalizaria suas relações com todos os países árabes. E isso é algo básico em toda e qualquer negociação. Como vou convencer alguém em tomar uma linha de ação sem ter influência e cartas na manga?

Em inglês isso é muitas vezes chamado de “leverage”, alavanca, no sentido de ser uma ferramenta que imprime ação ou carrega peso. Sem uma relação estabelecida, não há como influenciar o outro. Em outras palavras, um país pode ter prejuízos caso siga um caminho que desagrade totalmente seu sócio e parceiro. Com um eventual crescimento nas relações econômicas entre Israel e os EAU, agora o governo de Abu Dhabi pode ter, caso deseje, uma moeda de barganha com os israelenses para representar a Palestina.

EUA e Líbia

Muito se falou do papel do governo dos EUA em facilitar as conversas e o acordo, o que é inegável, tanto que o texto final será assinado provavelmente em Washington, mas outro ator precisa ser citado. Especificamente, o Egito, o primeiro país árabe que normalizou suas relações com Israel. Egípcios e israelenses cooperam militarmente para lutar contra grupos islamistas na península do Sinai, cuja presença militar egípcia depende de acordo com Israel, e receberam inteligência e cooperação emiradense nessas operações.

Além disso, os três países estão do mesmo lado na guerra civil da Líbia, apoiando o governo de Tobruk e o exército do marechal Khalifa Haftar. Enxergam o governo de Trípoli como influenciado por grupos islamistas e defendem um eventual governo de “segurança nacional” sob Haftar para estabilizar a Líbia. O termo, cunhado por Henry Kissinger, é um eufemismo para uma ditadura militar que mantenha um governo com autoridade, mesmo que sob o prisma da repressão e da mão de ferro.

Países árabes

Curiosamente, essa posição na Líbia coloca os EAU e Israel no lado oposto dos países europeus e dos EUA, que apoiam Trípoli. Além disso, tem sido a mais ambiciosa presença emiradense no cenário internacional. Os EAU são aliados dos sauditas na aliança do golfo e, por décadas, ficaram eclipsados por seus vizinhos maiores. Isso está mudando progressivamente, com Abu Dhabi tomando a dianteira em diversas iniciativas, mesmo que às custas de suas relações com os sauditas.

Isso é explícito na guerra no Iêmen, iniciada em 2015 pelos sauditas, com apoio emiradense. Hoje, entretanto, os dois países árabes possuem pautas e interesses diferentes no conflito, o que já foi abordado nesse espaço. O que leva ao presente tratado com Israel. Por duas décadas, os países árabes aguardaram um acordo saudita com os israelenses. Ao estabelecer relações, Abu Dhabi colocou-se na frente dos sauditas pela liderança dos países árabes nessa pauta, podendo incentivar outros, como o Marrocos.

Tecnologia e pandemia

Outro aspecto que faz dos EAU um país interessante nesse momento é o fato de ter se tornado o principal centro tecnológico dos países árabes. Nos últimos meses, o país inaugurou a primeira usina nuclear em um país árabe, com tecnologia sul-coreana, e lançou a primeira missão espacial de um país árabe, numa parceria com o Japão. Como qualquer país que aspire destaque no cenário internacional, Israel mantém prioridades na área nuclear e na espacial.

Isso se relaciona ao ponto anterior, já que os sauditas estariam buscando concluir suas usinas nucleares agora com parcerias chinesas, o que pode desagradar os EUA. Além disso, a pandemia do novo coronavírus fez com que os dois países cooperassem. Israel comprou, por intermediários, equipamentos médicos dos EAU, e um avião emiradense pousou pela primeira vez em Tel Aviv para levar suprimentos para o combate ao vírus na Palestina. Os dois governos já anunciaram cooperação contra o vírus.

Esporte

Finalmente, algo que muitas vezes é tratado como algo menor, mas possui relevância no estabelecimento ou melhoria de relações é o esporte. Nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, ficou infame o episódio em que um judoca egípcio se negou a cumprimentar um rival israelense. Após vaias e a ameaça de reprimenda pelo árbitro, ele timidamente cumprimentou o atleta. O boicote árabe aos atletas israelenses não é algo novo, e não deveria acontecer sob bandeira olímpica.

O judô é bastante popular nos países que formavam a antiga União Soviética, e foi introduzido no Oriente Médio por consultores militares soviéticos enviados para treinar soldados da região. Embora não tenha se tornado muito popular fora desse círculo, é bastante praticado, especialmente no Egito e nos EAU. Em Israel também é uma arte marcial popular, especialmente após a migração de judeus da ex-URSS nos anos 1990, e o país já conquistou cinco medalhas olímpicas no judô desde 1992.

Pelo prestígio do esporte e pela capacidade de investimento, atualmente os EAU sediam um dos grand slam de judô. Em 2017, após o ouro de um judoca israelense, a bandeira de Israel não foi hasteada, nem o hino tocado, substituídos pela bandeira da Federação Internacional de judô. Após protestos, entretanto, no ano seguinte, os judocas israelenses puderam usar os símbolos de seu país e o hino foi tocado após o ouro do judoca Sagi Muki, que também esteve na Olimpíada de 2016.

Um detalhe que não pode passar despercebido é que a então ministra de Cultura e Esportes de Israel, Miri Regev, estava presente no evento, apenas a terceira vez em que uma visita desse nível ocorreu. Na ocasião, foi acordada a inédita participação israelense na organização de eventos esportivos nos EAU em 2019, um embrião do atual acordo. Um lembrete de que o papel do esporte em conectar pessoas não pode ser desconsiderado mesmo quando falamos de relações internacionais e do pragmatismo da geopolítica.

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