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Neville Chamberlain exibe a resolução assinada por ele e Adolf Hitler em Munique, em aeroporto de Londres, 30 de setembro de 1938. “Teremos paz em nossos tempos”
Neville Chamberlain exibe a resolução assinada por ele e Adolf Hitler em Munique, em aeroporto de Londres, 30 de setembro de 1938. “Teremos paz em nossos tempos”| Foto: WikiMedia Commons

Setenta e cinco anos atrás acabava parte do maior conflito já conhecido pela humanidade. No dia oito de maio de 1945, para a Europa Ocidental e a América, ou no dia nove de maio de 1945, para a Europa Oriental, pós-meia noite, se rendia a Alemanha nazista. A guerra ainda continuou por alguns meses, no Pacífico. Em 2020, as homenagens e festejos, infelizmente, não tiveram o tamanho merecido, por causa da pandemia do novo coronavírus. As três principais celebrações, em Londres, Paris e Moscou, tiveram seus tamanhos drasticamente reduzidos, sem grandes desfiles militares e aglomerações populares. Também faz 75 anos do início de uma propaganda criada por Churchill que acabou afetando duramente a reputação de um dos líderes do período do conflito.

A maioria das pessoas conhece ou já ouviu falar de Winston Churchill, premiê britânico em duas ocasiões, com décadas de vida pública e uma figura de ampla presença na cultura e na sociedade britânicas. Churchill foi alguém cuja liderança, sem dúvida alguma, foi crucial para seu país em momentos duros da Segunda Guerra Mundial e, por isso, tornou-se esse símbolo de resiliência e de verve inglesa. Existem diversas e vastas biografias sobre Churchill, abordando aspectos de sua vida pessoal, as controvérsias e fracassos de sua vida pública, os sucessos e vitórias. A coluna não teria como ser uma biografia apropriada de Churchill, e ele não é o tema principal deste texto, é o catalisador, a chave que gira e coloca um motor para funcionar.

Uma das características de Churchill era a de ser um ferrenho adversário político de seus antagonistas. Não era a melhor pessoa para ter contra você. Outra característica de Churchill era sua obsessão com seu legado, em como as pessoas o lembrariam. É registrado que, na década de 1930, ele "ameaçou" o então premiê Stanley Baldwin, também conservador, com o julgamento da História, "pois eu pretendo escrever essa história". Outra citação, essa mais especulada do que registrada, seria a de que ele disse que "a História será gentil comigo, pois eu que vou escrevê-la". Hoje, em 2020, não há mais lugar para o velho chavão de "a História é escrita pelos vencedores", com um campo do conhecimento estabelecido, métodos de pesquisa, novas fontes.

Ataques contra reputação

Ainda assim, as reputações dos adversários de Churchill sofreram com seus livros e suas memórias publicadas após a guerra. Talvez a maior e mais injusta vítima tenha sido a reputação de Neville Chamberlain, o premiê conservador que antecedeu Churchill e que governava o Reino Unido quando do início das hostilidades. Para a maioria das pessoas, até hoje, Chamberlain foi um ingênuo, um fraco, um "bundão", alguém que foi tapeado por Hitler. Tudo isso baseado especialmente na propaganda de Churchill contra um adversário político e que, hoje, 75 anos depois do fim do conflito, não cabe mais. História não é uma narrativa contada por vencedores ou um idealizado filme de Hollywood. Cabe então tentar desmontar essa narrativa, mostrar as contradições e interesses nela.

Neville Chamberlain, assim como Churchill, também teve décadas de vida pública. Para ficarmos no tema dessa coluna, pensemos no final do ano de 1931, quando Chamberlain se torna Chancellor of the Exchequer, o cargo equivalente ao Ministro da Fazenda no Reino Unido, um dos ministérios mais importantes, e que ele ocupou por quase seis anos, até 28 de maio de 1937, quando tornou-se primeiro-ministro, cargo que ocupou até 10 de maio de 1940. Ou seja, por mais de oito anos, Chamberlain esteve no mais alto escalão decisório do governo britânico. Oito delicadíssimos anos, que envolveram a morte de um rei popular e querido, a abdicação de seu sucessor, a ascensão de um príncipe pouco conhecido e a deflagração do grande conflito já citado.

Uma das acusações contra Chamberlain é a de que ele era "um pacifista". Sim, era, na medida que a maioria dos britânicos também eram. A Grande Guerra havia acabado tinha pouco mais de uma década, as memórias, os traumas, as mortes e a destruição econômica ainda estavam no cotidiano dos britânicos. Quase nenhum britânico desejava uma nova guerra europeia, já haviam experimentado uma, e saído com o gosto da vitória. Era suficiente. Uma de suas principais tarefas quando Chancellor foi a de renegociar as dívidas de guerra britânicas, com os EUA e com sua própria população, pela venda dos "bônus de guerra". Com a engenharia financeira, ele diminuiu os débitos britânicos em 23 milhões de libras por ano, algo como um bilhão e meio de libras hoje. Por ano.

Ao tentar evitar uma guerra, Chamberlain estava, primeiro, atendendo um desejo e uma incerteza de sua própria população. Quando ele retorna de Munique, após a partilha da então Tchecoslováquia, e famosamente diz "Teremos paz em nossos tempos", ele foi recebido por multidões nas ruas. A incerteza também envolvia os domínios da Coroa; em 1938, representantes da África do Sul e da Austrália afirmaram ao governo que suas populações não apoiariam uma guerra. Quando lembramos que, dos 8,5 milhões de britânicos que lutaram na guerra, mais de três milhões vieram do império, esse fator ganha ainda mais importância. O ponto aqui é: acusar Chamberlain de "pacifista" é apropriado, mas também é um pouco de comportamento de "engenheiro de obra pronta".

Ingenuidade?

E o mais importante, e é necessário frisar isso o máximo possível: além de tentar evitar uma guerra, Chamberlain estava também ganhando tempo, sabendo que seu país não estava pronto para uma guerra. A destruição da Grande Guerra e seu custo econômico, somado aos traumas, causaram grandes restrições orçamentárias nas forças armadas britânicas. "Se não há dinheiro, também não há necessidade de novos navios, já ganhamos a guerra". Chamberlain sabia disso. O contexto que proporcionou um rearmamento desenfreado para Hitler era o da revanche, sentimento que não existia entre os britânicos. Ali, vigorava o isolacionismo, a distância de uma guerra europeia. E aqui entra a mais injusta crítica contra Chamberlain, perpetuada por Churchill: a de que ele foi manipulado por Hitler.

Chamberlain foi um pacifista, mas não foi um ingênuo. Quando Chanceller, em 1933, o orçamento da Real Força Aérea britânica (RAF, na sigla em inglês) era de 16,7 milhões de libras. No início da guerra, com Chamberlain como premiê, era de mais de cem milhões de libras, seis vezes mais. Chamberlain brigou e brigou para expandir os orçamentos militares, especialmente da RAF, a com menos prestígio político. Por séculos, a famosa Marinha real teve a maior fatia do orçamento militar. Em 1937, o orçamento da RAF superou o do exército e, em 1938, pela primeira vez, a marinha real deixou de ter o maior orçamento em tempos de paz, superada pela RAF. Foram com esses milhões nesses anos todos que a RAF se expandiu e se modernizou.

Ou seja, Churchill ficou célebre pelos seus discursos de liderança durante a Batalha da Grã-Bretanha, a primeira batalha estratégica exclusivamente aérea da História, mas foi graças aos aviões construídos nos anos de Chamberlain que o Reino Unido triunfou. Principalmente, em 1938 foi colocado em operação o primeiro sistema de alerta aéreo por radar do mundo, o Home Chain Link, construído com explícito suporte financeiro e político por Chamberlain, enquanto muitos da velha guarda naval britânica, o ex-Lorde do Almirantado Churchill incluso, defendiam que eram uma geringonça nunca testada numa guerra. O dinheiro que Chamberlain economizou em sua engenharia da dívida de guerra foi aplicado diretamente na defesa do país.

Alguns leitores podem achar esse exemplo da RAF pouco, um caso isolado. Foi com Chamberlain no gabinete que foi publicado, em 1935, o Statement relating to Defence, um documento que dizia, basicamente, que o Reino Unido havia ficado para trás em temas bélicos. Em 1938 o governo britânico começou a enviar dinheiro e armamento para os chineses, que lutavam contra o Japão, sabendo da ameaça potencial que o expansionismo nipônico representava contra o império. Esse auxílio é raiz do incidente de Tientsin, quando o porto britânico foi cercado por uma esquadra japonesa em junho de 1939. Também em 1938, Chamberlain ordenou a nacionalização das reservas de carvão mineral. Por política econômica? Não, por segurança nacional, matéria-prima de material bélico.

Mobilização

Parênteses: também nesse período, Chamberlain promoveu o Factories Act de 1937, que acabou com o trabalho infantil e melhorou as condições de trabalho britânicas. E a ideia de "ganhar tempo" antes de uma guerra contra a Alemanha não foi uma ideia que brotou na cabeça de Chamberlain. Ele tinha apoio de parte considerável do comando militar. Em setembro de 1938, o general Sir Hastings Ismay, do Comitê de Defesa Imperial, recomendou cautela: "se a guerra com a Alemanha tiver que ocorrer, seria melhor lutar daqui de 6 a 12 meses do que aceitar as situações atuais". E, enquanto negociava publicamente com os alemães, em portas fechadas, com seu ministério, as ações e planejamentos eram outros.

Em outubro de 1938, o premiê Chamberlain disse: "Seria loucura o país parar de se rearmar até que estejamos convencidos de que outros países agirão da mesma maneira. Por enquanto, portanto, não devemos relaxar nenhum esforço até que nossas deficiências (de defesa) sejam sanadas." Para o ano de 1939, 40% do orçamento do governo britânico estava previsto para a defesa. Em fevereiro de 1939, o governo anunciou uma expansão do exército e a duplicação do Territorial Army, a reserva militar, de 13 para 26 divisões. Em março, Chamberlain forneceu as famosas "garantias" para a independência da Polônia. Em suma, Londres consideraria uma invasão polonesa como um ataque contra o Reino Unido. Ao mesmo tempo, criou uma pasta ministerial para logística bélica.

Em abril de 1939, pela primeira vez na História foi instaurado o serviço militar obrigatório em tempos de paz, com seis meses de treinamento para todos os jovens. E talvez o melhor exemplo de como Chamberlain nem de perto foi um "molenga" "manipulado por Hitler": ainda em abril de 1938 ele ordenou a preparação de uma força expedicionária para ser enviada ao continente em caso de guerra. O governo de Chamberlain declarou guerra à Alemanha nazista em três de setembro de 1939. No dia seguinte, dez divisões, com cerca de quatrocentos mil homens e um componente aéreo com quinhentos aviões estavam à caminho da França. Essa é uma mobilização que não pode ser feita do dia para a noite, por um premiê ingênuo e pacifista que distribui flores.

Mesmo com todos esses atos e momentos de liderança, a reputação de Chamberlain sofreu grandes prejuízos. Novamente, a principal fonte delas foi a narrativa construída por Churchill: seu antecessor era fraco, ele veio, liderou e o Reino Unido triunfou. Já fica estabelecido qual o principal motivo para os ataques de Churchill contra Chamberlain: se destacar pelo contraste. Só que não fica restrito aí, o diabo mora nos detalhes, diz o ditado da língua inglesa. Algumas contradições e disputas pessoais são importantes nessa saga toda. Tanto Neville quanto Winston vinham de famílias tradicionais; o uso dos primeiros nomes é intencional. Joseph Chamberlain, pai de Neville, foi figura importante na virada do século XIX para o XX, causando um racha nos conservadores.

Rachas e disputas

Nesse racha, muitos políticos migraram dos conservadores para os liberais, e vice-versa, ambos vendo a ascensão dos trabalhistas como grandes rivais. Tanto Joseph Chamberlain quanto Winston Churchill mudaram entre os partidos, de acordo com as circunstâncias. Neville não, ficou a vida toda com os conservadores, e ele e Churchill lideravam facções internas diferentes e rivais pelo protagonismo do partido. A ascensão significava a queda do outro, e vice-versa. O grande golpe nessa disputa veio com a crise da Abdicação, em 1936. Ao contrário do que o filme O Discurso do Rei mostra, Churchill perdeu muito prestígio com a crise, enquanto Chamberlain se destacou. Foi ele que deu o ultimato ao rei, ameaçando uma renúncia coletiva do gabinete. No ano seguinte, virou premiê.

Churchill nunca engoliu essa derrota política da crise da Abdicação. Outro fator que explica a imagem de Chamberlain é que era necessário "culpar" alguém pela "demora" em entrar em guerra com a Alemanha. Afinal, por qual motivo, em 1938, não foi criada uma grande aliança para conter o avanço alemão? Pois a Tchecoslováquia tinha um pacto de defesa coletiva com a União Soviética, alvo de desconfiança tanto de Chamberlain quanto de Churchill. Quando os britânicos ofereceram negociar uma aliança com os soviéticos, o fizeram de forma fraca, indecisa e tardiamente, como já abordado em outro texto nesse espaço. Parte dos motivos da falta de uma aliança com a Tchecoslováquia está na resistência de Churchill.

Curiosamente, chega-se numa situação paradoxal. Chamberlain é criticado por sua suposta inação ou ingenuidade, mas não pelo verdadeiro crime que cometeu nesse processo de ganhar tempo para uma guerra: o de fatiar um país soberano contra sua vontade. A Tchecoslováquia era um país neutro, soberano, membro da Liga das Nações, e foi retalhada na mesa de negociação em Munique, onde sequer foi convidada a estar. Quando a Alemanha anexou os Sudetos com anuência das potências, também anexou o território montanhoso com diversas fortificações modernas que poderiam dificultar um eventual avanço alemão. A Tchecoslováquia serviu de peão de sacrifício no tabuleiro de xadrez pré-Segunda Guerra Mundial.

Legado

Finalmente, um aspecto que une todos os citados. O suposto pacifismo, as questões orçamentárias, as disputas políticas entre Churchill e Chamberlain. A limitação orçamentária das forças armadas britânicas começou já em 1919, logo após a Grande Guerra. O mecanismo legal para isso foi a Ten Year Rule, uma lei que estabelecia que o orçamento militar seria calculado "na presunção de que o império não enfrentará um grande conflito pelos próximos dez anos". O orçamento militar foi de 766 milhões de libras em 1919 para 102 milhões em 1932, antes de se recuperar com Chamberlain. O leitor tem uma chance para adivinhar o proponente da Ten Year Rule. Sim, Churchill. Mais ainda: em 1928, Churchill articulou para que a Ten Year Rule se auto-renovasse.

Ou seja, se não fosse pela posterior resistência de Chamberlain, as forças armadas britânicas teriam chegado muito mais fracas ao conflito! E, para isso, ele teve que enfrentar Churchill diretamente! E outra ironia do destino. O voto que causou a substituição de Chamberlain por Churchill, em maio de 1940, não foi dos conservadores. Foi dos trabalhistas, que odiavam Chamberlain; um sentimento mútuo, diga-se, Chamberlain dizia que era o "partido da estupidez". Como consequência da formação de um governo de coalizão nacional para a guerra, foi criada a figura do vice-primeiro-ministro, ocupado pelo líder trabalhista Clement Attlee, que derrotaria Churchill nas urnas em 1945. Ainda assim, Chamberlain era respeitado e não foi jogado aos leões.

Ele continuou no gabinete de guerra, ocupando o cargo de Lord President of the Council, de importância razoável. Outro motivo da troca era o de buscar um premiê mais enérgico, coisa que Churchill sem dúvida era. Chamberlain já não estava com a saúde perfeita, embora não soubesse. Ele faleceu seis meses depois de deixar de ser premiê, em novembro de 1940, aos 71 anos, de um câncer diagnosticado já em estágio terminal. Tudo isso soa muito incomum 75 anos depois, sabendo da figura de guerra que Churchill se tornou, da aliança com Stálin que ele aceitou e da constante reafirmação da narrativa de suas memórias, e não será essa coluna que vai "reabilitar" Chamberlain para o mundo. Apenas uma correção de grave injustiça e um lembrete de que a História não possui monopólio.

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