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A caixa de Pandora que o Brexit está abrindo
| Foto: Unsplash

A crise de coesão nacional no Reino Unido se espalha. Nos últimos meses, a Irlanda passou, e passa, por problemas e instabilidades, abordados na mais recente coluna nesse espaço. No último dia seis de maio foram realizadas eleições regionais no país, para prefeituras, conselhos e assembleias locais, comissariados de segurança pública e também para os parlamentos da Escócia e do País de Gales. As principais vitórias ficaram para os trabalhistas e para os independentistas escoceses, com um novo referendo pela independência como principal bandeira de campanha, ambos sinais de alerta para Boris Johnson e o seu partido conservador, que também teve vitórias.

Nas eleições municipais, o óbvio destaque vai para Londres, onde o trabalhista Sadiq Khan foi reeleito prefeito no segundo turno, com 55% dos votos. O conservador Shaun Bailey ficou em segundo lugar e a verde Siân Berry, em terceiro com 7,8% dos votos, teve o melhor desempenho da História do partido na capital. No modelo do voto suplementar, cada eleitor escolhe a sua primeira opção e a sua segunda na mesma cédula. Caso nenhum candidato seja a primeira opção de mais da metade dos eleitores, os dois primeiros disputam um segundo turno simultâneo, onde são contabilizadas as “segundas opções”. Um modelo interessante que acelera o processo e diminui o chamado “voto útil”.

Eleições locais

Sadiq Khan, um muçulmano de origem britânico-paquistanesa, cumprirá um mandato de apenas três anos, já que a eleição era prevista para o ano de 2020, mas foi adiada por causa da pandemia. Outras doze prefeituras executivas estavam em jogo. No Reino Unido, apenas as grandes cidades ou zonas metropolitanas, as “autoridades combinadas”, possuem um prefeito executivo, análogo ao que existe no Brasil. No restante do país o modelo é “parlamentarista”, por assim dizer, com o chefe da administração escolhido dentre o conselho regional eleito. Dessas doze eleições, os trabalhistas levaram dez, incluindo duas viradas em regiões previamente administradas pelos conservadores.

Em números gerais, entretanto, os conservadores receberam mais votos pelo país, com 36% da preferência do eleitorado e 2345 parlamentares locais, contra 29% e 1345 dos trabalhistas, respectivamente. Os trabalhistas foram melhores nas grandes cidades e distritos urbanos, enquanto os conservadores venceram nas cidades pequenas e distritos com maior perfil rural. É um clichê dizer isso, mas não se pode fazer nada se também foi a realidade da eleição. Os conservadores também elegeram mais comissários de segurança pública, 30 a 8, além de um do partido nacionalista galês Plaid Cymru.

O comissário é um representante eleito responsável pelo orçamento de segurança pública e também por supervisionar e fiscalizar as atividades policiais e dos chefes de policiamento. E outra vitória dos conservadores foi importantíssima, quebrando um tabu histórico no distrito de Hartlepool. Parte do chamado “Muro Vermelho”, o conjunto de distritos no noroeste e norte inglês que tradicionalmente votam em trabalhistas, o distrito precisava eleger um parlamentar nacional para substituir o trabalhista Mike Hill, que renunciou ao cargo. Com mais de 50% dos votos, a conservadora Jill Mortimer foi eleita para a Câmara dos Comuns, “virando” uma cadeira do parlamento e dando maior vantagem para Boris Johnson.

Gales e Escócia

No País de Gales, a eleição para o Senedd Cymru, o parlamento regional, resultou em mais uma vitória dos trabalhistas, com Mark Drakeford liderando o partido. Foram 39,9% dos votos, conseguindo 30 das 60 cadeiras do parlamento. Os conservadores ficaram com 26,1% e os nacionalistas com  20,3%. Os liberais-democratas conseguiram um assento, ficando com menos de 5% dos votos totais. Desde a criação do parlamento devoluto, em 1999, os trabalhistas ganharam todas as eleições galesas. Foi também em 1999 que os nacionalistas conseguiram seus melhores resultados, e o  Plaid Cymru costuma ficar entre 12 e 15 cadeiras desde então. O suficiente para fazer barulho na oposição, mas longe de conseguirem articular um eventual divórcio galês.

Cenário bem distinto aconteceu na Escócia. Com o maior comparecimento eleitoral para o pleito regional, também estabelecido em 1999, os independentistas do Partido Nacional Escocês, liderados por Nicola Sturgeon, levaram 47,7% do voto total, conquistando 64 assentos dos 129, ou seja, apenas um abaixo da maioria absoluta sem necessidade de coalizão. Conservadores ficaram em segundo, com 31 assentos, trabalhistas em terceiro, com 22, verdes, outros ganhadores do pleito, com oito e liberais-democratas com quatro. O novo partido nacionalista Alba, o nome medieval da Escócia, teve apenas 1,66% dos votos e não elegeu representantes.

Oras, se faltou um assento, o que garante maioria pró-independência? O fato de que o partido verde escocês também é independentista. Nicola Sturgeon já declarou que "Aparentemente, não há dúvida de que haverá uma maioria pró-independência neste Parlamento" e que “Simplesmente não há justificativa democrática para Boris Johnson, ou quem quer que seja, tentar bloquear o direito do povo escocês de escolher seu próprio futuro”. Uma referência ao fato de que Boris Johnson é contra um novo referendo pela independência escocesa e que isso seria “rasgar o país”.

O voto escocês é clivado regionalmente, com a maioria dos votos dos dois partidos tradicionais contra a independência, conservadores e trabalhistas, concentrados ao sul, na região da fronteira e alvo de colonização inglesa nos séculos XVI ao XVIII. Sturgeon, prevenida, já avisou que um referendo somente será organizado após a pandemia. Boris afirma que apenas juntos os países do Reino Unido conseguem superar os desafios do pós-pandemia. De um lado, estão os escoceses que se sentem traídos pelo Brexit, já que votaram contra a separação escocesa em 2014 justamente para continuar na União Europeia. Do outro, os unionistas, tanto escoceses quanto ingleses, que defendem essa bandeira por tradição, por questões econômicas e também estratégicas.

O fato é que o Brexit abriu uma caixa de Pandora no destino do Reino Unido e seus domínios. Contextos que pareciam apaziguados foram trazidos novamente à tona, aos gritos engasgados, seja por pessoas se sentirem prejudicadas, seja por pessoas querendo aproveitar a situação. O conflito na Irlanda, o independentismo escocês, a disputa com a Espanha por Gibraltar, a fronteira marítima no canal da Mancha, dentre outros. Nos domínios britânicos, o republicanismo cresce, desde Barbados até a Nova Zelândia. Até a situação se estabilizar, serão muitos percalços, e o preço talvez não valha a pena.

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