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Membros do movimento Boogaloo seguram armas em frete ao capitólio do estado americano do Kentucky, em Frankfort, 17 de janeiro, durante protesto anti-governo
Membros do movimento Boogaloo seguram armas em frete ao capitólio do estado americano do Kentucky, em Frankfort, 17 de janeiro, durante protesto anti-governo| Foto: AFP

“Quem gosta de passado é museu”. Essa e outras piadinhas similares são frequentes na vida de um estudante e de um profissional de História, como esse colunista. Na maior parte do tempo são comentários amigáveis, jocosos. Ainda assim, infelizmente, existem pessoas que acham que História, e outras áreas do conhecimento, não possuem tanta importância, ou não fazem diferença no presente, “já foi, já aconteceu”. Isso é um grande engano, pois não apenas a História contribui decisivamente para compreensão das sociedades atuais, mas também faz diferença e impacta a maneira como a História é tratada e abordada. E um problema atualíssimo nos EUA é fruto direto da abordagem romanceada do passado que é bastante comum pelos EUA. Existe uma ligação direta entre o romantismo da Revolução dos EUA e as milícias armadas extremistas atuais do país.

A Revolução dos EUA é muitas vezes retratada como um levante de colonos apaixonados e patriotas contra o abusivo governo inglês. Esses colonos, pela força das armas e movidos pelo seu espírito determinado, derrotaram uma das maiores potências da época e conquistaram sua liberdade. O novo país, seria, então, um farol de liberdade para o mundo todo. Um grande exemplo recente dessa visão romanceada é o filme O Patriota, de 2000, estrelado por Mel Gibson. No filme, o personagem de Gibson, movido por atrocidades inglesas, se junta aos defensores da independência, com colonos formando milícias e também parte do Exército Continental. Há um oficial francês que contribui com a instrução das milícias. Os colonos derrotam os ingleses e, ao final, uma força naval francesa chega após a rendição do comandante britânico, Lord Cornwallis.

Isso não é exclusivo do filme. Essa visão de que foram pessoas comuns armadas que realizaram um levante popular e conquistaram a independência é presente em vários aspectos da cultura dos EUA, ao ponto de ter se tornado uma espécie de dogma patriótico, algo que não pode ser contestado. Outro elemento que colabora para esse dogma é a interpretação de que a segunda emenda da constituição dos EUA, a que autoriza a posse de armas pelos cidadãos, seria para combater uma tirania do próprio Estado nacional. Não, o texto fala da formação de “milícia bem regulamentada”, ou seja, um exército, para a “segurança de um Estado livre”. Não há menção de defesa contra uma eventual tirania do próprio Estado. O que não significa que esse direito de defesa, ou direito à revolução, como escreve Locke, não exista, o ponto é que ele não é presente no texto da emenda.

Ideologia e revolução

E esse pensamento embasa, em maior ou menor grau, a ideologia das milícias paramilitares nos EUA. Em alguns casos, a inspiração é direta, como no exemplo da milícia Three Percenters, “Os 3%”. O nome seria uma referência ao número de colonos que pegaram em armas contra os ingleses e fizeram a revolução. Bandeiras e símbolos do grupo foram vistas no último dia seis de janeiro, quando o Capitólio foi invadido em Washington, e um integrante do grupo já foi preso por terrorismo doméstico, enquanto planejava um atentado similar ao de Okhlahoma, em 1995. Um dos líderes do grupo chegou ao ponto de dizer que o ataque ao Capitólio era uma “segunda revolução” e estavam “seguindo os passos dos Pais Fundadores”, os líderes da independência, em 1776. Outro grupo com retórica similar é o Oath Keepers (“Guardiões do Juramento”), formado em sua maioria por ex-policiais e ex-militares das forças armadas.

Note-se que a coluna não está falando de elementos de supremacia branca, racismo e anti-semitismo, coisas reprováveis e desprezíveis por si, mas da romantização da História, que serve para fundamentar grupos e ações radicais. Uma fundamentação baseada em premissas erradas. Em uma fantasia, para maior precisão. Toda essa ideia de que a independência dos EUA foi construída por valentes colonos que derrotaram os ingleses numa luta de Davi contra Golias, por cidadãos comuns portando armas de uso doméstico ou para caça, de que foi meramente o cidadão armado que fez a revolução, é uma fantasia, muito distante da realidade. E a maior das ironias é que os grupos que ameaçam com armas o governo dos EUA são alimentados por uma perspectiva romanceada do passado que foi, por dois séculos, difundida pelo próprio governo.

Não é possível resumir ou explicar completamente a Revolução dos EUA em um texto. Trata-se de um dos eventos definidores da História contemporânea. Ainda assim, as ilusões da visão ideológica citada podem ser apontadas. Algumas dessas ilusões são detalhes, como a ideia de que eram “cidadãos comuns” lutando contra os ingleses. Na verdade, parcela razoável dos colonos homens possuía treinamento militar formal, por causa da Guerra dos Sete Anos, que também foi travado na América do Norte, opondo ingleses aos franceses, com diferentes nações indígenas em ambos os lados do conflito. A guerra fez com que muitos colonos tivessem que combater e, posteriormente, a presença militar inglesa se tornou mais expressiva, com funções cumpridas parcialmente pelos colonos.

Briga entre potências

O grande líder militar da revolução, George Washington, era um coronel das forças coloniais britânicas, por exemplo. Além disso, não foram apenas 3% dos colonos que pegaram em armas, assim como não houve um levante generalizado contra a Inglaterra. Cerca de um terço dos colonos aderiram à revolução, enquanto outro terço se manteve leal à coroa e outro terço se manteve, na falta de palavra melhor, indiferente. O ponto principal, entretanto, é que a guerra pela independência dos EUA foi, militarmente falando, um teatro localizado parte de uma guerra maior de revanche entre França e Inglaterra, as duas potências mundiais da época.

Os franceses desejavam se vingar da derrota na citada Guerra dos Sete Anos e conseguiram cortejar a terceira potência do período, a Espanha, que também entra na contra os ingleses. Constatar isso não é exatamente lisonjeiro nem romântico para o nacionalismo dos EUA. De qualquer maneira, é a verdade. Não foi uma guerra de Davi e Golias, foi uma guerra entre Golias, com um deles apoiado por Davi. De abril de 1775 a fevereiro de 1778, os colonos lutaram sozinhos contra os ingleses, com alguns ganhos e alguns reveses. O valor dos colonos esteve no fato de conseguirem, por quase três anos, manter um impasse que proporcionou uma intervenção externa. Mesmo nessa fase, entretanto, o apoio francês foi essencial para o sucesso dos colonos.

Dezenas de milhares de uniformes e mosquetes usados pelos continentais foram fornecidos pela França, assim como virtualmente todos os canhões dos revolucionários e 90% de toda a pólvora usada pelos colonos. As fábricas de pólvora nas então Treze Colônias eram pequenas. Suprir a necessidade de munição para caçadores ou para segurança domiciliar é muito, mas muito distante de suprir munição para uma guerra. Além disso, oficiais franceses e prussianos profissionais serviram como consultores, treinando as tropas dos colonos. No mar, a marinha real britânica não foi desafiada apenas por John Paul Jones e nascente marinha dos EUA, mas também por duas das maiores frotas navais do período. A marinha francesa derrotou os britânicos e conseguiu furar o bloqueio dos portos para levar soldados, armas e suprimentos para os colonos em guerra.

A principal batalha naval de toda a guerra, de Chesapeake, opôs 24 navios de guerra franceses contra 19 navios ingleses. Quase três mil canhões soando, e nenhum deles era de um mero colono comum. O envolvimento franco-espanhol na guerra também transformou o conflito em uma disputa global, afastando possíveis reforços britânicos da América do Norte. Por exemplo, obrigando os ingleses a manter uma presença militar notável em Gibraltar, para evitar uma tomada espanhola. E isso pode ser atestado nos tratados finais da guerra. O reconhecimento da independência dos EUA não foi a única coisa a que Londres foi submetida. Os ingleses também perderam a  Flórida e a ilha de Minorca para a Espanha, e Tobago e o Senegal para a França.

Não se trata de desmerecer o país EUA, ao contrário, é atestar a riqueza e a complexidade de sua História. É claro que os colonos foram importantes também no aspecto militar, especialmente em operações de guerrilha, em um primeiro momento, e, após serem abastecidos por seus aliados europeus, em batalhas abertas na segunda fase do conflito. A ideia de que foram homens comuns com suas armas domésticas que conquistaram a independência, entretanto, é fantasiosa. E, mais do que fantasiosa, é perigosa, motiva extremistas que desejam a violência e que eles terão sucesso com essa violência, quando a História mostra o contrário. Narrativas sobre combatentes obstinados e oprimidos fazem muito sucesso e instigam nossos sentimentos, mas não são suficientes para ganhar uma guerra por si só, ainda mais sem pólvora.

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