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O presidente russo, Vladimir Putin, assina decretos para reconhecer as repúblicas de Lugansk e Donetsk
O presidente russo, Vladimir Putin, assina decretos para reconhecer as repúblicas de Lugansk e Donetsk| Foto: EFE/ Aleksey Nikolskyi/ SPUTNIK/KREMLIN

Os eventos da última segunda-feira (21) talvez entrem para os livros de História. Vladimir Putin, presidente da Rússia, fez um longo discurso de quase uma hora, televisionado, sobre a Ucrânia. Depois disso, anunciou que orientou o parlamento a reconhecer as regiões controladas por separatistas pró-Rússia no leste do país vizinho. O reconhecimento foi recebido com declarações de repúdio por outras potências e uma reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU. Junto com todos esses eventos, existe um novo dado que pode contribuir para a compreensão das ações do governo de Vladimir Putin.

Os mercados europeus abriram suas operações nesta terça-feira (22) em queda. Reino Unido e EUA, dentre outros, estão anunciando sanções contra a Rússia. Em Washington, o senador republicano Lindsey Graham, por exemplo, falou em “destruir o rublo” e “esmagar os setores de petróleo e de gás” da Rússia. Ou seja, o dia promete e uma coluna de política internacional que aborda apenas os desdobramentos recentes da crise corre o risco de ficar obsoleta em questão de horas. É importante um olhar mais amplo.

O fim da URSS

O discurso de Putin poderia ser um tema de coluna por si mesmo, já que, basicamente, ele busca uma justificativa histórica para as ações russas na Ucrânia. Putin, mais de uma vez, já chamou o fim da União Soviética de “maior tragédia geopolítica do século XX”. Muitas pessoas, erroneamente, consideram isso um julgamento moral ou ideológico, como se Putin fosse um comunista ou ferrenho apoiador do modelo de estado soviético. Suas críticas, em seu discurso, a Lênin e a Kruschev já são indicativos da resposta.

Quando Putin fala na “maior tragédia geopolítica do século XX”, ele se refere a uma visão nacionalista e irredentista russa, de que o fim da URSS foi um processo acelerado e desastrado, que modificou ou inaugurou fronteiras e legou uma série de pendências aos estados sucessores. Não é necessário ficarmos presos aos exemplos russos para observar isso, basta olhar para os diversos conflitos entre Armênia e Azerbaijão, ou às escaramuças entre Tadjiquistão e Uzbequistão. Parte do motivo desses conflitos é a herança de fronteiras internas soviéticas, com populações vivendo do lado “errado” da fronteira.

Quem aborda muito bem essa questão, e as identidades nacionais eslavas, é o historiador ucraniano Serhii Plokhy, autor da obra O Último Império. O fim da URSS, mais do que um evento ideológico ou o “fim da História” debilmente profetizado por Francis Fukuyama, foi o fim de um estado cuja existência territorial remontava ao século XVIII. O maior império em extensão contínua da História, já que, nas vésperas da Grande Guerra, o Império Russo era ainda maior do que a URSS. O fim do império Austro-húngaro Habsburgo também legou uma série de pendências fronteiriças, movimentos populacionais e irredentistas. Tais disputas estão em parte das origens da Segunda Guerra Mundial.

A narrativa histórico-nacional de Putin é, basicamente, uma maneira de justificar a incorporação de populações russas em outros estados ao território da Federação Russa. Modéstia de lado, nossos leitores estão bem informados sobre isso nos últimos anos, já que a coluna, mais de uma vez, explicou essa plataforma de política externa, a Doutrina Karaganov. Falamos disso tanto no último mês de dezembro quanto na primeira colaboração, no distante mês de março de 2018. Caso o leitor não conheça esse texto de 2018, permita a sugestão de leitura.

Pilar de política externa

Um dos pilares da política externa de Putin é consequência direta do que ele chama de “maior catástrofe geopolítica do século XX”. Formulada por Sergey Karaganov, ex-conselheiro presidencial tanto de Yeltsin quanto de Putin, a doutrina, pouco comentada no Brasil, busca a valorização do idioma russo, da nacionalidade russa e a proclamação da defesa de falantes de russo distribuídos pela ex-União Soviética. Trata-se da versão geopolítica de “Minha pátria é a língua” de Fernando Pessoa. Essa defesa, inclusive militar, de uma identidade russa, de uma “ideia russa”, foi usada para justificar a guerra contra a Geórgia, em 2008, e a anexação da Crimeia, em 2014.

E aqui cabe uma pergunta importante para compreender os próximos desdobramentos. Putin reconheceu a República Popular de Lugansk e a República Popular de Donetsk, ambos territórios controlados por separatistas pró-Rússia na fronteira entre Rússia e Ucrânia. Esse é um reconhecimento dos territórios de fato já controlados ou é um reconhecimento de todos os territórios que os separatistas reivindicam? Basicamente, a totalidade dos oblasts, regiões, de Lugansk e de Donetsk.

A diferença inclui dezenas de milhares de quilômetros quadrados, quase 2 milhões de pessoas e localidades estratégicas como o porto de Mariupol. Também pode significar que forças militares, a partir dos territórios já controlados, tomem à força o restante dos oblasts, escalando a guerra no leste da Ucrânia e concretizando uma invasão do país pelas forças armadas russas. A confusão sobre o que foi reconhecido pode ser intencional, para “forçar a mão” em um processo de negociação. Ainda não está claro.

Pandemia

Existe também outro possível ingrediente nos cálculos de Putin, que implicam em um esclarecimento da coluna. Em dezembro, foi escrito aqui em nosso espaço que não existiriam pautas internas russas que impulsionam um conflito com a Ucrânia e que, embora exista apoio à política externa de Putin e aos sucessos militares das últimas duas décadas, o risco de uma guerra arrastada contra uma população com laços históricos e culturais tão próximos da Rússia não é desejado.

Também foi comentado quando crises políticas internas fazem com que um conflito armado atenda aos interesses da ideia dominante ou do governo do momento. Foi dado o exemplo da Guerra das Malvinas, iniciada pela ditadura argentina em seu estertor, como maneira de tentar “unir” a população argentina em uma causa patriótica e distraí-la do declínio econômico e ético do regime. Pois bem, é necessário corrigir. Hoje sabemos que essa razão pode sim existir no caso russo e dos interesses do governo Putin.

O Serviço Federal de Estatísticas Russos, o Rosstat, publicou, em 29 de janeiro, um balanço do número de mortes no país em 2021. A população russa minguou naturalmente em 1 milhão em apenas um ano. Cerca de 215 mil russos morreram em dezembro de 2021, um número 42% maior do que o de dezembro de 2019, pré-pandemia. Ou seja, as mortes causadas pelo coronavírus podem ser muito maiores do que as oficialmente registradas, em um país com baixíssima densidade populacional e com uma população envelhecida. Em Belarus, que passa longe de ser um grande exemplo de combate ao vírus e onde várias forças russas estão estacionadas, há relatos de aumento de casos e transmissões para a população nativa.

Buscar o patriotismo russo, o sentimento de identidade nacional e um irredentismo territorial são, repete-se, pilares da política de Putin. Não é de hoje. Nesse caso, entretanto, pode-se especular também a influência dos impactos da pandemia do coronavírus na Rússia. O reconhecimento dos separatistas no leste da Ucrânia pode servir também como distração de problemas internos. Por outro lado, se o anúncio da anexação da Crimeia foi recebido com festas nas ruas, a reação de preocupação e amplo repúdio internacional podem indicar que ainda é uma aventura muito dispendiosa.

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