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Palácio real coreano de Gyeongbokgung| Foto: Reprodução/Pixabay

O Japão e a Coreia do Sul são aliados indiretos desde o final da Segunda Guerra Mundial. “Indiretos” pois ambos são aliados dos EUA e contavam com a proteção da superpotência americana durante a Guerra Fria, contra a vizinha União Soviética. E também pois, se dependesse exclusivamente da vontade das duas populações, uma aliança formal entre os dois dificilmente existiria, fruto das cicatrizes históricas da dominação japonesa na península coreana. E o início dessas cicatrizes aniversaria justo hoje, um lembrete de que a distensão não ficou no passado.

No dia 26 de fevereiro de 1876 foi assinado o Tratado da Amizade entre Japão e Coreia, na época o reino de Joseon. Naquela circunstância, o Japão basicamente emulou o comportamento dos EUA perante os próprios japoneses, anos antes. Em 1853, uma esquadra da Marinha dos EUA, sob comando do comodoro Matthew Perry, chegou na baía de Edo, no Japão. A “frota negra”, termo usado pelos japoneses para se referir ao aço sem polimento dos navios, tinha uma oferta bem simples. O xogum deveria aceitar o estabelecimento de relações formais, a abertura dos portos japoneses aos produtos e aos navios dos EUA e garantir aos cidadãos americanos extraterritorialidade jurídica.

Caso o xogum não aceitasse, os novíssimos canhões dos navios devastariam a capital Edo, e uma demonstração dos armamentos foi feita. O Japão, sem governo nacional, sem marinha moderna, apenas com juncos de madeira e mosquetes baseados em projetos portugueses de trezentos anos antes, não tinha como recusar. Em 1854, a assinatura da Convenção Kanagawa iniciou a era dos “tratados desiguais”, quando potências mais fortes, usando a ameaça da força, submetiam os países asiáticos a termos extremamente desfavoráveis ou, ao menos, sem reciprocidade. Nesse contexto, o império chinês da dinastia Qing concede Hong Kong aos britânicos e Qingdao aos alemães, por exemplo.

De agredido a agressor

A humilhação sofrida nas mãos da diplomacia da canhoneira dos EUA incentiva a unificação e a modernização do Japão, concretizada na revolução Meiji de 1868. Na década seguinte, o agredido torna-se o agressor. Desejando antecipar as potências europeias e os EUA, o Japão submete o reino de Joseon ao seu primeiro tratado desigual. Uma crise é forçada pelos japoneses, que então exigem um pedido de desculpas sob a ameaça do uso de força naval superior. Os termos do tratado são similares aos de 1854: o estabelecimento de relações diplomáticas, a abertura dos portos coreanos aos produtos e aos navios do Japão e garantir aos cidadãos japoneses extraterritorialidade jurídica.

No cenário internacional, a península coreana deixa de ser um protetorado da dinastia Qing e torna-se zona de influência japonesa. Progressivamente, a presença do Japão vai se expandir e consolidar na península, iniciando quase setenta anos de dominação japonesa da Coreia. Cinco atores estavam em disputa. De um lado, os japoneses. Do outro, o reino Joseon e os nacionalistas coreanos. Entre eles, chineses, russos e os EUA, todos influenciando os eventos e servindo como aliados de ocasião dos coreanos. Obviamente, isso é um resumo extremamente conciso.

Alguns fatos na linha do tempo, entretanto, merecem ser mencionados. A Primeira Guerra Sino-Japonesa, quando o Japão emergiu vitorioso em 1895, ocupando os territórios de Taiwan, ilhas Pescadores e a península de Liaodong. A dinastia Qing também é obrigada a reconhecer a “independência” coreana, na prática aceitando o protetorado japonês. No mesmo ano, agentes japoneses invadem o palácio real coreano de Gyeongbokgung e assassinam a rainha Myeongseong, cujo cadáver é violado e queimado. O rei Gojong, temendo o mesmo destino, busca refúgio na embaixada russa, que torna-se a sede da monarquia Joseon.

A influência russa na Coreia termina com a guerra contra o Japão, em 1905, a primeira vez em que uma potência europeia é derrotada por uma potência asiática. Cinco anos depois, é consolidada a anexação da península coreana pelo Império do Japão. De 1910 a 1945, a Coreia foi uma colônia japonesa, administrada por um governador-geral, quase sempre um militar, com enormes poderes. Movimentos de resistência coreanos eram combatidos e ocorria uma niponização cultural, com uso de termos em japonês em detrimento do coreano, a abolição de práticas culturais coreanas e censura de obras impressas.

Terras foram distribuídas a colonos japoneses e, na véspera da Segunda Guerra Mundial, mais da metade das terras aráveis da península estavam ocupadas por japoneses. A indústria japonesa se expandiu na península, com a construção de infraestrutura que permitisse que o carvão mineral coreano servisse a indústria bélica japonesa. Com a segunda guerra sino-japonesa, em 1937, e o ataque à Pearl Harbor, em 1941, o esforço de guerra nipônico exigiria preços ainda mais altos dos coreanos.

Exploração colonial

Sob o governador-geral Kuniaki Koiso, general condenado à prisão perpétua por crimes de guerra, mais de cinco milhões de homens coreanos foram enviados para o Japão para servirem como mão-de-obra, a maioria deles em trabalhos pesados forçados. Outros 250 mil coreanos serviram nas forças armadas japonesas voluntariamente, com algumas centenas de oficiais, incluindo Park Chung-hee, futuro general e ditador da Coreia do Sul, e o príncipe herdeiro da coroa coreana, Yi Un, que foi banido de ambas as repúblicas coreanas após a guerra.

O caso mais infame da exploração japonesa, entretanto, é o das “mulheres de conforto”. Dezenas de milhares de mulheres coreanas submetidas à escravização sexual servindo numa vasta rede de “bordéis de campanha”. O número exato é virtualmente impossível de ser determinado e o fenômeno se repetiu em diversos territórios ocupados pelos japoneses, como nas Filipinas e na Indonésia. O estupro em massa é um dos elementos que pode até tipificar um genocídio. Com o fim da guerra e o desejo dos EUA de varrer a poeira para debaixo do tapete em nome das alianças da Guerra Fria, a maioria dos abusos coloniais japoneses ficou em segundo plano.

Ocorreram acordos para indenizações e pedidos de desculpas oficiais, entretanto, genéricos, sem especificar a natureza dos pedidos de desculpas e usando terminologias vagas. Algo como a expressão brasileira “desculpe aos que se ofenderam por alguma coisa”, numa analogia simples. O fato é que o Japão, ao contrário da Alemanha, não passou por um processo de renovação ideológica após a guerra, e de exposição de seus crimes. Todos conhecem as atrocidades de Josef Mengele e de Auschwitz, poucos conhecem Shirō Ishii e a Unidade 731, igualmente atrozes. O imperador e sua linhagem foram mantidos, e seria impossível ver nomes como o de Hermann Goering em um memorial de guerra alemão, entretanto, Hideki Tojo é homenageado no templo Yasukuni.

Traumas atuais

Novamente, isso é explicado pela lógica da Guerra Fria, mas ela já acabou. Tanto que o tema voltou ao discurso público em 1991, quando três mulheres sul-coreanas que foram escravizadas sexualmente entraram com um pedido judicial de indenização. Desde então, a retórica sobre esses e outros abusos coloniais japoneses esquentou, com polêmicas sobre livros escolares japoneses omissos, o crescimento do revisionismo militar japonês, que tinha no ex-premiê Abe Shinzo um simpatizante, e o sentimento nacionalista coreano. Intercoreano, no caso, já que, como já explicado aqui nesse espaço, algo que aproxima as duas populações da península é o passado traumático comum em relação ao Japão. Mais da metade dos sul-coreanos apoiaria o norte numa guerra contra o Japão.

Do outro lado, pesquisa publicada no último 20 de fevereiro pelo jornal Japan Times, afirma que 40% dos japoneses não enxergam a Coreia do Sul como um parceiro importante e 80% afirmaram que as relações não são boas. Pois não existe botão de reset na História. Nada escrito aqui ficou num passado distante, são histórias contadas por avós, que passam por gerações, com pendências legais reminiscentes de uma guerra que, de certo modo, ainda não acabou. O contraste entre a guerra na Europa e a guerra na Ásia, nesse sentido, é marcante.

Também nesse mês de fevereiro, no dia 16, a sul-coreana Lee Yong-soo, de 92 anos de idade, afirmou que pretende levar a questão das “mulheres de conforto” para a Corte Internacional de Justiça. A senhora sul-coreana afirma não estar interessada em dinheiro ou indenização, mas apenas que o governo japonês reconheça que executou uma política de escravização sexual em massa. Abe chegou a sugerir que as “prostitutas” eram todas “voluntárias”. E, quando ela fala de governo japonês, é muito claro que a Coreia não quer mais desculpas evasivas de premiês. Querem ouvir isso do imperador, Naruhito, neto de Hirohito, o imperador que chancelou a política colonial e viveu até 1989.

No último mês de janeiro, uma corte sul-coreana ordenou o pagamento de cem milhões de won para cada uma das doze mulheres que entraram com um processo contra o governo japonês em 2013. Como não há mais recurso possível e a sentença transitou em julgado, isso significa que bens e valores do governo japonês na Coreia do Sul poderiam ser confiscados para o pagamento, o que geraria uma enorme crise diplomática. O ministro de relações exteriores japonês afirmou que não reconhece a sentença e que ela viola a soberania dos países, enquanto sul-coreanos lembram que uma corte japonesa decidiu, e agiu, de maneira similar em relação ao Paquistão, anos atrás.

Em 2019 e em 2020, Coreia do Sul e Japão entraram em rota de colisão sobre o comércio de tecnologias sensíveis e, brevemente, o governo japonês tirou Seul da sua lista de aliados que poderiam receber os mais altos níveis de cooperação em inteligência. Para mostrar de uma vez por todas que esses problemas não ficaram no passado, o novo Livro Branco da defesa sul-coreana, divulgado no início do mês, “rebaixou” o nível das relações com o Japão. Como esse colunista afirmou no curso sobre os prognósticos para as relações exteriores de Joe Biden, um dos desafios do novo presidente dos EUA será conseguir reforçar as relações entre esses dois importantes aliados, mas décadas de problemas não serão solucionadas em um simples “o amigo do meu amigo é também meu amigo”.

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