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O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, 21 de setembro de 2021
O presidente dos EUA, Joe Biden, discursa na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, 21 de setembro de 2021| Foto: EFE/EPA/TIMOTHY A. CLARY

Joe Biden fez seu primeiro discurso como presidente dos EUA perante a Assembleia Geral da ONU na última terça-feira, dia 21 de setembro. Como sempre, o presidente dos EUA seguiu o discurso brasileiro, que abre o chamado debate geral do órgão, quando cada país-membro da ONU pode expor suas prioridades, perspectivas e propostas. O recomendado é que cada líder fale por cerca de quinze minutos, mas o presidente dos EUA costuma sempre passar desse limite. No caso de Biden, ele falou por cerca de trinta minutos, e seu discurso pode ser dividido em duas partes que caminhavam juntas.

Não são “partes” no sentido de dividir o discurso ao meio, por exemplo. Praticamente todo tópico abordado por Joe Biden era composto de uma parte propositiva, muitas vezes laudatória do próprio governo e do próprio país, e de uma parte conflituosa, mirando a China. Considerando que os chineses foram seu principal alvo e um dos maiores temas abordados, é absolutamente espantoso que, em um discurso de exatas 4349 palavras, nenhuma delas tenha sido “China”. Para alguns, isso pode ser sinônimo de política inteligente, de vocabulário e até de finesse, como se um tapa de luva de pelica. Para outros, soa mais como cinismo, quase como indiretas adolescentes. A coluna tende ao segundo caso, embora não chegue ao ponto da comparação púbere.

Alguns pontos do discurso de Biden não foram tão afetados por essa lógica, sendo mais objetivos ou breves. Por exemplo, foi direto ao ponto ao falar do programa nuclear iraniano. “Os Estados Unidos continuam comprometidos em evitar que o Irã obtenha uma arma nuclear” e que o país “está trabalhando” para um retorno ao acordo nuclear negociado durante o governo Obama e descartado pelo governo Trump. Ponto final. Outro exemplo de objetividade foi ao falar de Israel. “O compromisso dos Estados Unidos com a segurança de Israel é indiscutível. E nosso apoio a um Estado judeu independente é inequívoco.”. Em outra mudança frente ao governo anterior, Biden também sinalizou apoio a Solução de Dois Estados, com uma Palestina independente.

Direitos humanos

Partindo do início do discurso, Biden buscou apresentar que o mundo passa por um momento decisivo. Um cenário que precisaria servir de base para a definição do futuro. Aprender com a atual pandemia para prevenir e mitigar as próximas. Enfrentar o desafio das mudanças climáticas, “ou sofreremos a marcha impiedosa de secas e inundações cada vez mais intensas, incêndios e furacões mais intensos, ondas de calor mais longas e mares subindo?”. E a defesa dos Direitos Humanos, citando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “ou permitiremos que esses princípios universais sejam pisoteados e distorcidos na busca puramente por poder político?”.

Aqui temos a primeira alfinetada na China, que já foi acusada, de maneiras mais explícitas, da prática de ignorar questões de Direitos Humanos por conveniência, sob a justificativa de “não-interferência em assuntos internos”, desde que seja bom para negócios e investimentos. Essa acusação procede? Sem dúvida, vide a situação atual de Mianmar, cuja junta militar tem na China seu principal aliado. O problema desse tipo de acusação é que ela costuma ser sempre acompanhada de um telhado de vidro. No caso dos EUA, o maior deles é a aliança do país com a Arábia Saudita, país também violador da Declaração Universal dos Direitos Humanos e com quem Washington possui uma balança comercial na casa das dezenas de bilhões de dólares.

Outro exemplo de comentário mirando a China foi no contexto da pandemia. Biden defendeu ações de seu governo, como distribuição de vacinas a países mais pobres, lamentou os milhões de mortos e afirmou que, para se precaver, é necessário “um novo mecanismo para financiar a segurança da saúde global” e um “Conselho Global de Ameaças à Saúde” que seja “capacitado com as ferramentas de que precisamos para monitorar e identificar pandemias emergentes para que possamos tomar ações imediatas.”. Parece tudo muito razoável e a disputa com a China pode parecer despercebida ao leitor casual, mas o recado é direto.

Países como os EUA e a Austrália defendem que a OMS possa criar uma missão de investigação com grande autoridade para desvendar as origens da atual pandemia de Covid-19. Essa missão deveria, para eles, poder inspecionar as instalações de pesquisa em Wuhan, e contar com a cooperação das autoridades chinesas. A China, obviamente, protesta, alegando que isso seria uma violação de soberania ou até mesmo espionagem de suas instalações. Como não há nada que obrigue aos chineses aceitar essa eventual missão, cria-se um impasse, que poderia ser solucionado com a criação de um eventual conselho com tal autoridade.

Surgiriam dois pontos de contenção com esse conselho. Primeiro, se ele teria autoridade retroativa e, segundo, a China vai desejar reciprocidade. Se pesquisadores dos EUA poderiam investigar os laboratórios chineses, então, pesquisadores da China deveriam poder investigar os laboratórios dos EUA. O mesmo raciocínio das missões de desarmamento nuclear entre EUA e Rússia. Chegar em um parâmetro comum será difícil, como sempre costuma ser nesse tipo de negociação. Por exemplo, quando a Agência Internacional de Energia Atômica quis inspecionar as instalações brasileiras em Resende, foi necessário negociar como essa inspeção poderia ser realizada.

Infraestrutura e economia

Biden também defendeu com veemência seu projeto de grandes investimentos em infraestrutura, o Build Back Better. E anunciou sua intenção de expandir tal projeto, com o desenvolvimento de infraestrutura pelo mundo. E adivinhem qual foi o contraste entre o modelo bom dos EUA e um eventual modelo ruim? Novamente, sem citar nomes, “há uma enorme necessidade de infraestrutura nos países em desenvolvimento, mas uma infraestrutura de baixa qualidade, ou que financia a corrupção, ou que exacerba a degradação ambiental, pode acabar contribuindo para desafios ainda maiores para os países ao longo do tempo.”

Ao mesmo tempo, “feito da maneira certa, no entanto, com investimento transparente e sustentável em projetos que atendam às necessidades do país e envolvam seus trabalhadores locais para manter altos padrões ambientais e de trabalho, a infraestrutura pode ser uma base sólida que permite sociedades em países de baixa e média renda crescer e prosperar.”. Talvez fosse mais fácil Biden simplesmente falar “a China alimenta corrupção na África, constrói uma infraestrutura de qualidade questionável e transporta trabalhadores chineses para isso, e nós queremos fazer o contrário”. Talvez fosse ofensivo demais, mas certamente seria mais breve. E diria a mesma coisa.

Claro, não que empresas dos EUA ou da Europa não tenham se envolvido em episódios de corrupção pelo mundo. E sim, Biden teve seus momentos mais explícitos, como quando falou de interesses estratégicos no Indo-Pacífico, da competição entre potências ou da Parceria Quad, “entre Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos para enfrentar desafios que vão desde a segurança da saúde ao clima e tecnologias emergentes.”. E quando se diz que Biden mirou na China em quase todo tema, é importante notar que praticamente todos os assuntos principais da atualidade e do futuro próximo estavam em seu discurso. Pandemia, terrorismo, comércio e sua governança global, mudanças climáticas, cibernética, inteligência artificial, 5G, até computação quântica, estava tudinho lá. Isso é notável, no sentido positivo da palavra.

Contradições e imagem

E não se trata também de dizer que Biden esteja errado em usar a China como exemplo negativo. O ponto é que, para quem também disse que "nós não estamos buscando uma nova Guerra Fria ou um mundo dividido", Biden soa contraditório ao pontuar praticamente todo tema como uma competição, ou alfinetada, entre EUA e China. E essa é a palavra que tem definido a política externa e a imagem do governo Biden: contraditório. Biden quer se apresentar como um “anti-Trump”, o “America is back”, mas adota políticas migratórias repressivas que, se fossem feitas sob o signo de Trump, seriam alvo dos maiores protestos possíveis. Diz defender o Atlantismo, mas age pelas costas da França.

Biden nega uma política de confronto com a China, mas passa quase meia hora fazendo exatamente isso. Não há nenhum problema em manter as políticas de realinhamento geopolítico dos EUA, porém Biden quer passar um verniz de civilidade e de “cara legal” por cima. E, sinceramente, tal contradição de sua imagem não deveria pegar alguém de surpresa. No curso Joe Biden e as relações com o Brasil e o mundo, aqui na Gazeta do Povo, esse colunista já avisou que as mudanças entre Trump e Biden seriam muito mais de forma, de imagem, do que de matéria, de conteúdo. Ainda assim, mesmo que não seja surpresa, a contradição uma hora cansa.

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