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Bandeiras do Brasil e do Mercosul tremulando em Brasília. Foto: Jane Araújo/Agência Senado
Bandeiras do Brasil e do Mercosul tremulando em Brasília| Foto: Jane Araújo / Agência Senado

Pode haver algo de podre no reino do Mercosul. O ano de 2019 pode terminar tenso, realmente tenso, para as relações entre os países do Cone Sul, com um possível efeito dominó de distensões, crises e mudanças eleitorais. Tudo isso poucos meses após as boas notícias da assinatura do acordo comercial entre o bloco sul-americano e a União Europeia; claro que nenhum acordo será perfeito, mas ainda assim os prospectos são positivos.

O começo dos problemas está, por coincidência, no próprio berço do Mercosul, em Assunção. No último dia 29, o então ministro de Relações Exteriores paraguaio, Luis Castiglioni, o chefe da estatal paraguaia de energia Ande, Alcides Jiménez, o diretor paraguaio de Itaipu, José Alderete, e o embaixador do país no Brasil, Hugo Saguier, todos renunciaram aos seus cargos.

Crise no Paraguai

As renúncias foram consequência direta da exposição dos termos assinados entre Brasil e Paraguai em maio, quando o presidente brasileiro elogiou o legado de Alfredo Stroessner, algo que foi tema de uma coluna nesse espaço. Detalhe que o diretor da Ande estava no cargo tinha pouquíssimos dias, já que seu antecessor, Pedro Ferreira, se recusou a assinar os termos do acordo com o Brasil.

O que movimentou as renúncias foi, basicamente, a revolta popular, que viu no tratado uma traição aos interesses do país; Itaipu é parte enorme não apenas da economia paraguaia, mas também do próprio orgulho nacional do país. O Brasil é visto, nesse tema, como o vizinho maior, mais rico, mais poderoso, cujos interesses precisam ser resistidos, uma espécie de Davi contra Golias.

Segundo a imprensa paraguaia, os novos termos representariam um custo total extra de mais de US$ 200 milhões entre 2019 e 2022; o Brasil alega que o Paraguai está dando uma “pedalada” na quantidade que deve pagar e, por isso, deveria pagar mais. Já o Paraguai justifica dizendo que esse foi o preço da expansão da geração de energia na usina, realizada em 2007.

Além das renúncias, o governo paraguaio anulou o novo acordo para evitar um pedido de impeachment contra o presidente, que já caminhava no parlamento vizinho. A crise parecia resolvida, até o jornal paraguaio ABC Color divulgar mensagens do ex-diretor da Ande, na terça-feira, 6 de agosto. As mensagens mostram que o presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, estava ciente dos termos do acordo energético de Itaipu.

Pensando na integração regional, esse escândalo pode resultar em dois desdobramentos. Primeiro, pode derrubar o governo paraguaio, o que resultaria em atrasos em negociações e votações; não que isso seja motivo para manter um governo que eventualmente não seja do desejo da população paraguaia. O ponto é apontar a consequência direta, sem julgamento de valor, independente de qual for.

Endurecimento com o Brasil

Segundo, um novo governo paraguaio poderia querer “mostrar serviço” endurecendo a postura bilateral com o Brasil, podendo até se virar contra o acordo com a UE, com uma retórica de que ele beneficia o Brasil, não é do interesse paraguaio, etc. O fato de o Itamaraty ter reagido à crise paraguaia com nota oficial louvando as relações pessoais entre os dois presidentes e suas convergências serviria de combustível para essa postura.

O fato é que a nota foi personalista, vinculou as relações estratégicas entre Brasil e Paraguai aos dois governantes. Claro que é desejável uma relação próxima entre governantes, mas torna-se um fator partidário. Finalmente, existem também as denúncias na imprensa paraguaia de que parte do acordo seria consequência de interferência direta do presidente brasileiro.

Uma das razões da recusa do diretor Pedro Ferreira em assinar os termos do acordo com o Brasil foi a retirada de um artigo que dava total liberdade ao Paraguai para vender o excedente de sua energia elétrica para empresas brasileiras. Ao suprimir o artigo, abriu-se a possibilidade de um contrato de exclusividade. Ao mesmo tempo das conversas entre os dois países, existiam conversas com uma empresa brasileira.

O vice-presidente paraguaio, Hugo Velázquez, figura conhecida da política vizinha, via seu assessor jurídico, o advogado José Rodríguez, mediou conversas para a compra da energia por parte de representantes da empresa brasileira Léros. Segundo o jornal Telefuturo, nas mensagens é mencionado que os representantes da empresa falam pelos interesses da “família presidencial do país vizinho”; referência a Jair Bolsonaro.

Nas conversas é mencionado Alexandre Giordano, empresário que é suplente do senador Major Olímpio, do PSL de São Paulo e da base do governo. O empresário seria o receptor da carta de intenções relacionada à venda de energia ao Brasil; na imagem publicada pelo veículo, a carta foi enviada pelo serviço DHL ao empresário, que a recebeu em endereço que fica no mesmo edifício do diretório regional do PSL.

O empresário negou envolvimento com a empresa Léros em relação ao Paraguai. O fato é que, no nosso vizinho, a imagem é de que o governo assinou um acordo prejudicial ao próprio país por pressão do governo brasileiro para beneficiar, de maneira direta ou indireta, uma empresa com ligações com o Planalto. O assunto inclusive será investigado na Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro.

Eleições vizinhas

Junto com a crise paraguaia, dois cenários eleitorais em 2019 podem afetar as relações do Mercosul. No dia 27 de outubro, uruguaios e argentinos irão às urnas renovar seus parlamentos e escolher novos presidentes. No Uruguai o favorito é Daniel Martínez, da Frente Ampla de esquerda, ex-prefeito de Montevidéu, em um país com histórico recente marcado por estabilidade e pragmatismo em sua economia e em suas relações exteriores.

Ainda assim, as polêmicas brasileiras sobre as ditaduras militares sul-americanas durante a Guerra Fria têm influenciado a discussão política uruguaia. Esse centrismo uruguaio foi afetado à direita, com um novo partido, o Cabildo Abierto, liderado pelo ex-comandante do exército nacional, e também por um distanciamento à esquerda de posturas do governo brasileiro, incluindo o Grupo de Lima sobre a Venezuela.

Na Argentina tivemos as primárias da eleição presidencial. As primárias são obrigatórias e ajudam na definição de candidaturas em partidos que apontem mais de um candidato. Como não foi o caso nesse ano, com candidaturas já escolhidas, muitas pessoas ficaram confusas com a função das primárias. Outro papel desse voto preliminar é a imposição do piso eleitoral de 1,5% dos votos.

Caso um candidato não obtenha ao menos essa porcentagem de votos, ele está excluído da eleição, uma espécie de eliminatória. Como curiosidade, se pegarmos os resultados brasileiros do pleito de 2018, se fossem nas primárias argentinas, os candidatos Cabo Daciolo, Henrique Meirelles, Marina Silva, Álvaro Dias, Guilherme Boulos e demais teriam sido retirados do pleito final.

Os resultados das primárias foram de 47% a 32% para Alberto Fernández contra o atual presidente Maurício Macri, que tem dez semanas para eliminar uma distância que coloca como plausível até uma vitória de Fernández em primeiro turno. A chapa de Fernandéz, como vice, conta com Cristina Kirchner, motivo de debates eleitorais e ideológicos sobre a Argentina no Brasil.

Novamente o governo brasileiro incorreu no erro de personalizar essas relações. Jair Bolsonaro disse que não quer “argentinos no Rio Grande do Sul”; que um governo Fernández poderia ser uma “situação bastante conflituosa”, citando o fato do candidato argentino ter visitado o ex-presidente brasileiro Lula na prisão; o próprio Fernández, como parte de sua retórica eleitoral, alertou que pode “revisar” o acordo com a UE.

Tais declarações pegaram mal na Argentina, vistas desde como uma tentativa de interferência eleitoral até como piada, na linha “se o Brasil quer Macri, vamos votar no contrário”, como se rivalidade futebolística. A reação negativa dos mercados aos resultados das primárias também se tornou parte da discussão política. Principalmente, tal como no Uruguai, torna-se complicada a imagem de Bolsonaro quando o tema é a ditadura militar.

A Argentina não passou por uma, mas por três ditaduras militares durante a Guerra Fria, com uma sequela social amplamente debatida e dezenas de milhares de casos de violência. Pode-se somar ainda a Guerra das Malvinas nesse trauma da História recente argentina. Quando Bolsonaro relativiza esses eventos gera polêmica no Brasil; nos nossos vizinhos, gera repulsa, como na visita do presidente ao Chile.

Dos três parceiros brasileiros no Mercosul, dois passarão por eleições e o outro passa por crise política. Todos esses eventos possuem ligações, como seria de se esperar, com o Brasil, o gigante da região. A euforia do acordo com a UE pode, infelizmente, dar lugar a um novo congelamento regional. Cabe ao governo brasileiro, dentro do respeito às vontades populares e às democracias dos nosso vizinhos, mediar e evitar que isso aconteça.

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