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Em protesto em frente à embaixada francesa em Londres, em 2016, manifestantes seguram um cartaz onde se lê "Islamofobia não é liberdade". FOTO:  AFP/JUSTIN TALLIS
Em protesto em frente à embaixada francesa em Londres, em 2016, manifestantes seguram um cartaz onde se lê "Islamofobia não é liberdade". FOTO: AFP/JUSTIN TALLIS| Foto:

A ideia de uma “islamização” da França é muito presente em certos círculos políticos. O país estaria sendo corroído pela imigração desenfreada de muçulmanos radicais que chegaram de maneira irregular, ou algo assim. Recentemente, o presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro falou, via vídeo em sua página em uma rede social, contra o Pacto de Migração assinado pelo atual governo brasileiro. Para basear sua argumentação, usou o exemplo francês: “Está simplesmente insuportável viver em alguns locais da França.”

Bolsonaro continuou. “E a tendência é aumentar a intolerância. Os que foram para lá, o povo francês acolheu da melhor maneira possível. Mas vocês sabem da história dessa gente, né? Eles têm algo dentro de si que não abandonam as suas raízes e querem fazer valer a sua cultura, os seus direitos lá de trás, e os seus privilégios”. Nesse ínterim, levou um puxão de orelha do embaixador francês nos EUA, Gérard Araud, que citou Bolsonaro e tuitou “63.880 homicídios no Brasil em 2017, 825 na França. Sem comentários”.

Claro, mesmo que se coloque os números em perspectiva do tamanho das duas populações, a taxa de homicídios por cem mil habitantes no Brasil é 22 vezes maior que a taxa francesa. E não é a primeira vez que Bolsonaro fala “dessa gente” para se referir especialmente à imigrantes e refugiados de países árabes ou africanos, especialmente muçulmanos. Também não é novidade que ele já anunciou que retirará o Brasil do pacto. A questão é que, para evitar futuros puxões de orelha, usando uma expressão popular, é bom saber que o buraco francês é bem mais embaixo.

Imigrantes e refugiados

Primeiro é importante lembrar que imigrantes e refugiados são conceitos diferentes, situações bem díspares. Um brasileiro que resida no Chile ou nos EUA por razões profissionais, pois foi buscar uma oportunidade financeira ou por laços familiares é um imigrante. Ou seja, é uma pessoa que se deslocou de maneira voluntária e que busca se estabelecer, ao menos por um período, no Estado de destino. Já o refugiado é uma pessoa que foge, contra sua vontade, buscando preservar sua vida e sua integridade física.

Uma frase presente em leis brasileiras e internacionais define o que motiva a chegada de um refugiado: fundados temores de perseguição. Isso pode ocorrer devido à cor de sua pele, sua religião, associação a determinado grupo social ou opinião política, um conflito seja interno, seja uma guerra entre Estados. Um refugiado também pode fugir de uma catástrofe natural, como um terremoto ou uma erupção vulcânica; muitas vezes esses deslocados são acolhidos dentro de seu próprio Estado, mas, não raramente, essas catástrofes transbordam as fronteiras nacionais.

Ao contrário da figura do asilo político, que é uma relação entre um Estado e um indivíduo protegido, o refugiado faz parte de um grupo que sofre perseguição. Se essa perseguição é reconhecida no caso do grupo, o Estado se compromete a acolher todas as vítimas daquela situação de risco. E o que regula tais relações internacionais antecede bastante algumas discussões atuais. Por exemplo, o refúgio é baseado principalmente na Convenção de Genebra de 1951. Ela garante aos refugiados o direito de não serem expulsos ou devolvidos enquanto os riscos que motivaram seu refúgio continuarem existindo. O contexto histórico dessa convenção foi o de proteger refugiados europeus no pós-Guerra.

Quem e quantos são os estrangeiros na França

Entre 2013 e 2016, a França recebeu 295.900 pedidos de permanência no país por motivos de perseguição ou de refúgio; cerca de 9% de todos os pedidos feitos na União Europeia. Desses pedidos, 75.290 foram aceitos. Ou seja, mais de 220 mil foram rejeitados em quatro anos. Quando 74% dos pedidos de permanência são rejeitados fica complicado crer em um processo de imigração desenfreado e fora de controle. No caso francês, os principais países de origem foram Congo, Sudão, Bangladesh e Síria. Os recordistas de rejeição, entretanto, são bem mais próximos, os albaneses.

Além dos refugiados, existem os imigrantes. Eles se dividem em duas categorias: os originários da União Europeia e os extra-União Europeia. Segundo o Institut national d’études démographiques (Ined, Instituto Nacional de Estudos Demográficos), cerca de um milhão e novecentos mil cidadãos de outros países da UE residem permanentemente na França. No caso dessa comunidade, o maior número é o de portugueses, cerca de 530 mil. A maior comunidade estrangeira na França. Sim, a maior comunidade de estrangeiros na França, no total, é a de portugueses. Bem longe da imagem que o leitor tinha em mente, não?

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Qual o total de estrangeiros na população francesa, então? Exatos 4.078.093 pessoas em 2016, ano do último censo. Cerca de 6.3% de uma população de mais de 64 milhões de pessoas. Outra conta pode ser feita somando aos estrangeiros os 2,8 milhões de indivíduos com nacionalidade francesa por aquisição, para uma proporção de 10,8% da população. Pouco mais de dois milhões de estrangeiros são de países de fora da UE. Argelinos e marroquinos são as duas maiores comunidades, com 480 e 440 mil indivíduos, respectivamente.

Finalmente, outro caso é o dos imigrantes irregulares. Nos últimos quatro anos, a França determinou que mais de 330 mil saiam do país; desses, 71 mil foram retirados do país pelas autoridades, inclusive com o uso da força. Outros cem mil foram barrados nas fronteiras do país. Em suma, a França é um país cuja maior comunidade estrangeira é de portugueses, que rejeitou mais de 70% dos pedidos de asilo, que expulsou 71 mil imigrantes irregulares e onde estrangeiros correspondem a 6% ou 10% da população, longe dos 27% da Austrália ou dos 20% do Canadá. E longe de ser um cenário de imigração descontrolada.   

E os muçulmanos do norte da África?

O leitor ou leitora pode se perguntar: “E os milhões de muçulmanos do norte da África? Esses números aí estão muito pequenos”. A percepção pode ser motivada também por celebridades, já que algumas das principais figuras francesas em tempos recentes são muçulmanos cujas origens estão na Argélia, na Tunísia, no Marrocos, dentre outros. O maior atleta de futebol francês é Zidane, um muçulmano de origem argelina. Um dos rostos mais conhecidos da França é o de Leïla Bekhti, atriz e modelo. Um dos atuais ministros de governo é o empresário Mounir Mahjoubi, muçulmano homossexual descendente de marroquinos.  

É ilegal que o censo francês pergunte a religião das pessoas, para garantir a igualdade perante a laicidade do Estado. Estimativas extra-oficiais colocam o número de muçulmanos na França na casa de oito milhões de pessoas, em torno de 12% da população. Desses, metade seria praticante, o que explica outras estimativas, que colocam os muçulmanos como 6% da população francesa. Caso a prática da fé, não apenas sua declaração nominal, for o critério, o catolicismo ainda é a maior religião na França, seguido pela falta de religião de 35% dos franceses; um número altíssimo para os padrões ocidentais. É nesse momento que se nota que a sociedade francesa é mais complexa do que slogans ou declarações superficiais sobre islamização, imigração e teorias da conspiração.

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Os muçulmanos franceses não são imigrantes, são cidadãos franceses. A grande maioria deles desde quando nasceram! Até décadas atrás, a França controlava um vasto império colonial. Antes da Segunda Guerra Mundial, de cada 20 pessoas no mundo, uma vivia no império francês. Enquanto 40 milhões de franceses viviam na França, outras 70 milhões de pessoas viviam nas posses do império. Onze países atuais de larga maioria muçulmana foram posse francesa. Pelas leis francesas, qualquer pessoa nascida nas colônias durante a dominação francesa e seus filhos nascidos até 1994, serão cidadãos franceses.

Por exemplo, qualquer pessoa que nasceu na Argélia até 1962, e seus filhos pelos próximo trinta e dois anos, são cidadãos franceses e, pelas leis francesas, essas pessoas não podem ser tratadas de forma diferente por sua religião ou etnia. Possuem os mesmos direitos que Macron ou que Le Pen. Por isso que, embora a proporção de estrangeiros na França seja baixa, como visto, a proporção de pessoas nascidas fora da França é de um terço da população com até cinquenta anos de idade. Cerca de quatro milhões de franceses são originários do Magrebe; Tunísia, Marrocos e Argélia, principalmente.     

A Grande Mesquita de Paris e a identidade nacional

A Grande Mesquita de Paris é a mais antiga mesquita francesa. Ela foi construída em 1926 como reconhecimento aos 60 mil muçulmanos, principalmente argelinos, que morreram na Primeira Guerra Mundial ao combaterem pela França. No total, 450 mil soldados africanos combateram nas forças francesas na Grande Guerra. Na Segunda Guerra Mundial, cerca de 10% do exército francês era composto de africanos, especialmente argelinos e senegaleses.

As guerras mundiais são importantíssimas para a formação na nacionalidade dos países protagonistas. A ideia de que alguém derramou sangue, arriscou a vida, ou até mesmo foi morto, pela sua bandeira. Por isso, tal pessoa não pode ser tratada como “segunda classe”, ela merece, ela deve receber todo o reconhecimento possível. Esse sentimento, por exemplo, motivou diversos aspectos do movimento pelos direitos civis dos afro-americanos nas décadas do pós-guerra. Não foi diferente na França. Se essas pessoas, essas comunidades, colocaram-se na linha de tiro pela França, isso deve ser reconhecido.

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Por isso as discussões sobre muçulmanos, terrorismo religioso e “imigrantes” como sinônimo para qualquer pessoa que não pareça Gerard Depardieu é extremamente delicada no caso francês. A questão jurídica é a que mais salta aos olhos, embora menos lembrada. Caso um estrangeiro seja suspeito de terrorismo ou cometa um crime, ele pode ser expulso, pode ser preso e extraditado ao seu país natal. E no caso de um compatriota? De um nacional do país? Como nos terroristas do ataque ao jornal Charlie Hebdo, cidadãos franceses.

A França não pode expulsar cidadãos franceses. O Estado não pode, nem deve, regular a religião de seus cidadãos. Inclusive para evitar abrir exceções perigosas. Hoje só é francês quem não for muçulmano; amanhã os judeus perdem suas nacionalidades, depois os cristãos não-católicos? Por questões legais e éticas o Estado, seja o francês, seja o brasileiro, seja qual for, não pode agir de forma que discrimine seus próprios nacionais. Toma-se a prática religiosa ou a cor da pele como definidora do caráter e da cidadania do indivíduo, ainda mais por não ser uma religião “nativa”. Como se os brasileiros adorassem à Tupã.  

Chega-se na discussão que toma a França desde a virada do milênio, e que não será em uma coluna que ela será respondida. O que é ser francês? Porque existem cidadãos franceses que não são totalmente inseridos na sociedade francesas? O que fazer com esses franceses que não se definem como franceses, mas ainda como argelinos ou marroquinos? É a cor da pele, embora Alexandre Dumas fosse negro? É a religião, no país do ateu Diderot, do deísta Voltaire, do católico Descartes, do muçulmano René Guénon? É sangrar pela bandeira francesa em um campo de batalha?

Um dos caminhos da resposta são os valores. O que faz de alguém um francês são os valores franceses. Isso pôde ser visto, curiosamente, nas celebrações dos jogadores franceses ao vencerem a última Copa do Mundo. De diferentes origens étnicas e religiosas, mesmo assim vários celebravam e davam entrevistas com o lema “Vive la France, vive la Republique”, Viva à França, Viva à República. Os valores republicanos de igualdade, liberdade e fraternidade. Os mesmos que fundamentam os Estados Unidos e que inspiraram os praieiros pernambucanos e os conjuradores mineiros no Brasil. A França lida não com uma crise de imigrantes, mas com uma discussão sobre a definição de sua própria identidade e com o legado de um gigantesco império colonial que existiu por séculos.   

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