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Sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, Suíça
Sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, Suíça| Foto: Fabrice COFFRINI / AFP

O presidente Jair Bolsonaro ameaçou retirar o Brasil da Organização Mundial da Saúde. A frase foi dita em entrevista na porta do Palácio da Alvorada, na última sexta-feira, dia cinco de junho. A frase completa foi "Adianto aqui: os Estados Unidos saíram da OMS, a gente estuda no futuro. Ou a OMS trabalha sem o viés ideológico ou a gente vai estar fora também. Não precisamos de gente lá de fora para dar palpite na saúde aqui dentro". E uma decisão como essa, hoje ou no futuro, seria uma tolice.

Esta coluna será breve, objetiva ao ponto. Quatro aspectos fazem uma eventual saída do Brasil da OMS ser um erro. O primeiro é ligado ao momento, de curto prazo, e poderia se dissipar, mas é notável a “coincidência” de que o governo Trump tenha anunciado um “rompimento” com a OMS no dia 29 de maio e, uma semana depois, o governo brasileiro reverbere a mesma ideia. As aspas são devidas ao fato de que ninguém sabe exatamente como seria esse rompimento e em qual prazo.

De qualquer maneira, a “coincidência” coloca o Brasil em posição de papagaio de Washington, em uma ideia que, novamente, é incerta e não ganhou ressonância com outros aliados, como a Austrália. País que passa por forte distensão em suas relações com a China e foi o principal articulador de uma resolução na OMS para investigação do novo coronavírus e pedindo por mais autoridade da organização, como abordado na coluna Globalismo, OMS e uma briga de cachorro grande.

Um movimento por reforma é diferente de ameaçar um rompimento. Comentou-se até que a ação de Washington poderia ser um prenúncio de uma saída em escala e a formação de uma “nova OMS”, paralela à atual, que seria “controlada pela China”. Oras, como fazer organizações redundantes, até concorrentes, em questões sanitárias? Doenças não respeitam fronteiras, vírus e bactérias transitam por todos os países. Nem no auge da Guerra Fria isso aconteceu.

Ao contrário, era um dos poucos órgãos onde havia algum grau de cooperação entre os dois blocos da disputa geopolítica. E, voltando ao presente, o Brasil poderia ter um papel muito maior e mais notável servindo como mediador entre os “dois blocos” do que ser mera caixa de ressonância para as ações de Trump. Novamente, essa é uma percepção que pode dissipar com o tempo mas, essa fala, nesse momento, passa essa sensação ao mundo, de que o Brasil muda de acordo com os ventos de Washington.

Luxos que o Brasil não possui

Os próximos três aspectos não dependem dos governos da ocasião. Tanto os governos Trump quanto Bolsonaro diminuíram o possível impacto do novo coronavírus em seu primeiro momento. Washington deu meia volta e buscou o tempo perdido. Porque pode se dar ao luxo. Trata-se de um país que é centro tecnológico, com capacidade de produzir a maioria dos insumos de saúde; é também centro científico, pesquisando novos agentes e com vários dos laboratórios buscando uma vacina.

Mais que isso, é a maior economia do mundo, controlando a moeda mais influente do mundo. Seu governo pôde, de acordo com a necessidade, ordenar que um gigantesco parque fabril produzisse respiradores e outros produtos. Gastaram centenas de milhões de dólares comprando todos os insumos disponíveis no mercado global, ao ponto de termos pequenas crises diplomáticas; representantes do governo dos EUA compravam produtos na pista dos aeroportos na China, com dinheiro vivo, “atropelando” outros países.

Colocaram o maior navio hospital do mundo à disposição de Nova Iorque, dentre uma série de medidas que poderiam ser citadas. Conseguiu reverter a situação e Trump disse, também no dia cinco de junho: "Se você olhar para o Brasil, eles estão passando por dificuldades. A propósito, eles estão seguindo o exemplo da Suécia. A Suécia está passando por um momento terrível. Se tivéssemos feito isso, teríamos perdido 1 milhão, 1 milhão e meio, talvez até 2 milhões ou mais de vidas".

O ponto é: o Estado mais rico e poderoso do mundo pode se dar ao luxo de cometer erros ou romper com a cooperação internacional. Esse, nem de longe, é o caso do Brasil. O país não tem como pesquisar uma vacina sozinho e, quando ela surgir, provavelmente ao menos parte de seus agentes teriam que ser importados. Sem falar que o Brasil não possui capacidade fabril para atender toda a demanda doméstica. Vai apenas “comprar” a vacina? Fim da fila, ou preços exorbitantes.

Inicialmente o Brasil ficaria de fora até de um mecanismo internacional liderado pela OMS e proposto pela União Europeia para garantir a produção e acesso à vacina. Sim, garantir a produção, já que, em curto prazo, uma vacina terá que ser produzida para atender, virtualmente, a população mundial; ao menos 70% dela. É da OMS que o Brasil tem comprado seus testes do novo coronavírus e organização tem papel crucial na cooperação com o Brasil em campanhas de vacinação.

Dívida e Belíndia

O que leva ao próximo ponto: o Brasil perde mais do que ganha numa saída da OMS. Inclusive, literalmente. Enquanto Washington contribui com 12% do orçamento da OMS, o Brasil está com saldo devedor com a organização, na casa de trinta milhões de dólares. Quando Bolsonaro diz "não precisamos de gente lá de fora para dar palpite na saúde aqui dentro", ele pode até estar correto sobre palpite, mas não é razoável o presidente do Brasil se comportar como se o país fosse autárquico nessa área. Não é.

Não se trata de “palpite”, se trata de cooperação e de recomendações. Aos que buscam, muitas vezes por razões ideológicas, desacreditar a OMS, é bom lembrar que  organização possui uma série de sucessos em seu currículo. A varíola não foi erradicada por um acidente natural, foi necessária uma enorme cooperação internacional. Casos mais recentes? Ok, foi com a cooperação internacional que alguns dos países mais pobres do mundo, como a Libéria, lidaram com o ebola, uma das doenças mais mortais do mundo.

Pessoas ainda morrem de ebola? Sim, só que a mortalidade de cada surto tem diminuído e, principalmente, a epidemia regional nunca virou uma pandemia. Novamente, defender uma reforma da OMS ou criticar a gestão da pandemia do novo coronavírus é uma coisa; abandonar os possíveis aprendizados e implodir toda a estrutura, é outra. Finalmente, o Brasil perderia muito no campo político internacional e na sua própria capacidade de articular agenda diplomática.

A OMS é um dos fóruns internacionais onde o Brasil mais brilhou e se destacou. A própria criação da organização teve um decisivo papel do Brasil, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Por duas décadas a organização teve um diretor-geral brasileiro, Marcolino Candau, médico pela brasileira UERJ e que estudou Saúde Pública na Johns Hopkins, nos EUA. Um efeito disso no bolso do leitor: A cooperação internacional possibilitou a chamada “quebra de patentes” e medicamentos mais baratos para a população brasileira.

Foi via OMS que o Brasil conseguiu transformar suas contradições internas em ferramentas diplomáticas. O economista brasileiro Edmar Bacha criou a fábula da “Belíndia”, em 1974, apontando que parte do Brasil vivia em condições dignas da Bélgica enquanto uma grande parte do nosso mesmo país tinha um padrão de vida similar ao da Índia de então. Essa “Belíndia”, curiosamente, favorece posições de liderança do Brasil na ordem internacional. Países mais pobres enxergam no Brasil um exemplo, um país que, mesmo também sofrendo com as mazelas da pobreza, também produz e inova na área sanitária.

Quando um país como Moçambique ou a Namíbia procuram uma parceria na área de saúde, muitas vezes o Brasil é envolvido ou encabeça esse diálogo. Nessa situação, frequentemente, países ricos são vistos com desconfiança, enquanto outros países pobres não possuiriam muito para oferecer. O Brasil supera a desconfiança e consegue fornecer expertise, consultoria e produtos de baixo custo. E essas parcerias abrem portas para outras e para melhores relações comerciais.

Um governo brasileiro, qualquer deles, ameaçar ou veicular a possibilidade de sair da OMS é um problema pois, essencialmente, vai contra os próprios interesses brasileiros. O Brasil, seja como Estado, seja como nação, só tem a perder com uma decisão dessas. E a lição número um de qualquer pensamento de relações internacionais é evitar perdas. Você pode até ceder em um ponto, desde que ganhe em outro. Perder em absoluto nunca é uma escolha racional. Assim como não é racional o Brasil sair da OMS no futuro próximo.

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