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Os cálculos frios por trás da bomba de Hiroshima
| Foto: AFP PHOTO / HIROSHIMA PEACE MEMORIAL MUSEUM

O próximo dia seis de agosto marca os setenta e cinco anos da primeira vez que uma arma nuclear foi utilizada em um conflito. Às oito horas e quinze minutos, horário local de Hiroshima, no Japão, o bombardeiro batizado Enola Gay, modelo B-29, soltou a bomba nomeada de Little Boy. Desde então, o uso das armas nucleares pelos EUA contra os japoneses está no cerne de diversos debates, muitos deles sensíveis, como o trauma social no Japão e as sequelas na população afetada pelo ataque.

Essas são, certamente, questões extremamente importantes. Cerca de 170 mil civis japoneses morreram nos ataques e outras dezenas de milhares sofrem com consequências até hoje. Radiação, queimaduras, chuva radioativa. Mais de meio milhão de pessoas foram reconhecidas como Hibakusha, pessoas afetadas pelos ataques. O Japão como um todo também precisou lidar com o trauma de ser o único povo, até hoje, vítima de um ataque nuclear e dessas sequelas.

Não é coincidência que o tema esteja tão presente na cultura japonesa contemporânea, como o famoso monstro Godzilla, concebido na década de 1950 originalmente como uma metáfora para as sequelas radioativas. Outro debate é sobre a validade dos alvos escolhidos, ambas cidades grandes e densamente povoadas, o que fica notável no altíssimo número de mortes civis, muito maior do que as mortes militares nos ataques. Ainda assim, é bom destacar, os alvos tinham importância militar.

Alvos militares

Hiroshima é um porto importante e centro logístico do exército japonês, para o trânsito de tropas entre as ilhas e o continente. Nagasaki, além de também ser um porto valioso, também era um centro fabril. Ao final das contas, por mais difícil que seja uma decisão como essa, e por mais moralmente discutível que ela seja, é importante ter-se em conta os cálculos frios que foram levados em consideração no processo decisório. Inclusive para uma crítica mais sustentável do uso das armas nucleares, se for o caso.

É interessante ter em mente que, após a rendição alemã, no início de maio de 1945, o Japão ainda não estava derrotado, embora sem chances de vitória. Sob controle japonês restavam as ilhas do arquipélago nacional, a península da Coreia e a região da Manchúria, administrada pelo Manchukuo, um estado-fantoche dos japoneses, com autonomia limitada. Era necessário derrotar o império japonês nesses dois territórios, mas como? Um caminho seria a invasão convencional das ilhas japonesas.

Por causa dos exemplos das batalhas anteriores, era calculado que a invasão das ilhas japonesas pelos aliados enfrentaria uma resistência fanática, tanto militar quanto civil, com ao menos meio milhão de mortes apenas do lado aliado. Nos dois meses da batalha de Okinawa, a maior operação anfíbia da História, foram cem mil mortos militares e outras cem mil mortes civis, um terço de toda a população da ilha. Os habitantes eram forçados, pelas armas ou pela ideologia, à resistência suicida e a destruição foi geral.

Como invadir as ilhas consideradas sagradas do Japão? Geograficamente favorecendo a defesa, lar do divinizado imperador e com uma população doutrinada para uma resistência fanática. A “solução” era a destruição pelo ar, iniciada em fevereiro, com o uso das bombas nucleares como um capítulo dessa campanha. Ao menos meio milhão de civis japoneses morreram nas campanhas de bombardeio, que usavam bombas incendiárias com efeito devastador nas construções de madeira japonesas.

EUA vs URSS

Além dos mortos, outros nove milhões ficaram de desabrigados. Fotos de Tóquio ou Shizuoka após esses ataques são tão chocantes quanto as imagens do pós-ataque nuclear. Esse foi o primeiro cálculo. Usar armas nucleares aceleraria um processo de rendição japonesa e causaria menos mortes do que uma possível invasão da ilha. Outros cálculos foram mais políticos. O cenário da Guerra Fria começava a se desenhar, e usar as armas nucleares tinha duplo propósito para a futura ordem mundial bipolar.

Primeiro, servia de demonstração tecnológica e bélica dos EUA para a URSS. O presidente dos EUA Truman avisou Stálin em Potsdam do uso de uma “nova arma”, mas a utilização na prática serviria para explicitar que, naquele momento, havia uma vantagem bélica do lado de Washington. Segundo, acelerar uma rendição japonesa evitaria uma eventual participação soviética na ocupação e na partição das ilhas japonesas, no modelo que aconteceu na Alemanha e acabou acontecendo na Coreia.

Isso é importante de ser frisado pois, ao contrário do que foi construído no imaginário popular, a URSS teve papel na rendição japonesa. Na Manchúria restava um grande e ainda intacto exército japonês, o Kwangtung, com quase um milhão de soldados. A geografia da região facilitava sua defesa, assim como a da península coreana, onde estavam as últimas indústrias bélicas japonesas ainda de pé. Era então um ótimo “último bastião” militar, além das ilhas.

O Japão esperava que, com uma defesa obstinada e fanática, conseguiria se aproveitar dessa situação e forçar uma paz negociada, sem a humilhação da rendição. Quando a URSS, após o acordo entre os três líderes das potências em Potsdam, direciona seus exércitos da Europa para a Ásia, e lança uma das maiores ofensivas militares da guerra, esse pensamento de “último bastião” do comando japonês cai por terra. Em dias, as forças militares japonesas na Manchúria são derrotadas.

Uma eventual ocupação soviética da Coreia permitiria, inclusive, que as ilhas japonesas fossem invadidas pelo oeste e pelo sul, dificultando a resistência. Não havia mais um caminho bélico para o Japão, somente a rendição e a consequente ocupação pelos EUA. As bombas nucleares tiveram papel importante nisso, por vezes inflacionado, por vezes diminuído. Tudo isso pode ser debatido de forma saudável. Somente não se pode prescindir de compreender a decisão naquele período.

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