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Um homem dispara uma arma de fogo em um clube de tiro em São Paulo. FOTO: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP
Um homem dispara uma arma de fogo em um clube de tiro em São Paulo. FOTO: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP| Foto:

Uma das várias importâncias de olhar para a comunidade internacional está em aprender com o resto do mundo sobre situações que se apliquem ao seu país também. Como diz o ditado, ninguém vai conseguir cometer todos os erros do mundo, então, é bom aprender com as lições dos outros também. Infelizmente, por vezes tenta-se reinventar a roda, como a adoção de políticas públicas com histórico de fracasso, ou a apresentação de “novidades” que já estão em curso em outros países por décadas.

Com a atual discussão sobre posse e porte de armas por civis no Brasil, convém dar uma olhada no resto do mundo. Não para meramente copiar outras políticas; a realidade brasileira é própria, e nada deve ser passivamente reproduzido. Oswald de Andrade já explicou isso em seu Manifesto Antropófago de quase um século atrás. Absorver o estrangeiro e adicionar o Brasil nele.

A intenção desta revisão pelos outros países é trazer argumentos e insumos para um melhor debate brasileiro sobre o tema. Países com mais armas possuem mais ou menos homicídios? A posse de armas por civis é algo exclusivo das democracias, ou ainda, é necessária uma política permissiva de armas de fogo para um país ser uma democracia? Regimes autoritários banem as armas nas mãos de seus cidadãos?   

Importância das fontes

Convém notar algumas coisas, pela sensibilidade do tema para boa parte do eleitorado brasileiro. Primeiro, este texto não assume uma posição exclusiva, nem sobre porte, nem sobre posse, e não contém perspectivas pessoais do autor; habitualmente, quem tenta adivinhar isso costuma errar, inclusive. Segundo, todos os dados possuem fontes de valor reconhecido e que podem ser checadas. Nada é inventado ou tirado do chapéu. Claro que se pode questionar uma fonte, mas direto a ela, sobre seu método.

A base para a classificação de um governo como democrático ou autoritário é o Democracy Index, produzido pelo Economist Group. Sessenta critérios em cinco categorias são avaliados e é produzida uma nota média de zero ao dez. Países cuja nota for acima de oito são democracias; entre seis e oito, democracias falhas; entre quatro e seis, regimes híbridos; finalmente, abaixo de quatro, um regime autoritário. Na ponta do ranking está a Noruega, com 9.87; no piso, a Coreia do Norte, com 1.08. O Brasil ocupa a 50ª posição, com 6.97, uma democracia falha.

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Para medirmos o número de homicídios pelo mundo temos a base de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que compila essas informações e produz estimativas em casos de vácuo. Essas informações podem ser checadas e, infelizmente, não são uniformes. Alguns países possuem dados recentes, outros apenas dados da década passada, mas o parâmetro da fonte é o mesmo. Segundo a OMS, a média mundial de homicídios em 2015 foi de 6,4 assassinatos por 100 mil habitantes.

Uma situação acima de 10 por 100 mil é considerada grave; o Brasil teve, em 2016, 30,3 homicídios a cada 100 mil habitantes. Esse número, entretanto, não é suficiente, já que homicídios não necessariamente ocorrem apenas por armas de fogo. Para isso, peguemos o estudo Global Mortality From Firearms, 1990-2016, elaborado na Universidade de Washington e publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA), que analisa e estima os números de mortes por armas de fogo, incluindo suicídios e acidentes. Pela estimativa do estudo, o Brasil teve 19,4 mortes por arma de fogo a cada 100 mil habitantes em 2016.

Ou seja, pouco menos de um terço dos homicídios brasileiros foram cometidos por outras maneiras, estimativa congruente com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ter ambas as estatísticas, de homicídios e de mortes por armas de fogo, em mente é importante, já que elas se complementam. O Canadá, por exemplo, teve, em 2016, 2,1/100 mil mortes por armas de fogo, embora com apenas 1,68 homicídios. No geral, em países mais desenvolvidos, a maior parte das mortes por armas de fogo são suicídios, o que explica o caso canadense.

Finalmente, é preciso saber quantas armas de fogo em mãos civis existem por país. Nesse caso, a Small Arms Survey, desenvolvida pelo Graduate Institute, em Genebra. A pesquisa já sofreu algumas críticas no passado, mas ainda é a melhor fonte para dados globais sobre a posse de armas de fogo; além disso, fazem um compilado de dados oficiais governamentais, cotejando os números totais e os números de armas registradas legalmente.

O levantamento mais recente, de 2017, determinou que 85% das armas de fogo do mundo estão em mãos civis, um total de 857 milhões de armas. Nesse caso, o Brasil ocupa a 97ª posição, com uma estimativa de 8,3 armas por 100 mil habitantes. A estimativa é de 17,5 milhões de armas de fogo em mãos civis no Brasil; esse volume inclui desde armas registradas para pessoas físicas até armas ilegais e armas registradas em nome de colecionadores e de empresas de segurança.

Convergências ou não?

Um dos primeiros argumentos por uma política de armas de fogo mais flexível é a defesa contra o crime, e não apenas uma defesa reativa, mas uma dissuasão; um criminoso seria reticente em abordar alguém ou entrar em uma residência caso ficasse em dúvida sobre a presença de uma arma de fogo. A Suíça possui uma das menores taxas de homicídio do mundo, 0,6 por 100 mil. Junto com isso, um dos maiores números de armas em mãos civis, com 27,6 armas por 100 mil habitantes. Um país seguro e armado, inclusive por sua doutrina de defesa, que gera até alguns mitos históricos, tema para o futuro.

Outro argumento utilizado é o de que a posse de armas pelos cidadãos é um direito natural, parte essencial de um governo democrático. Reprimir a posse de armas pela população seria uma postura ditatorial, presente em governos autoritários tanto de nossos dias, quanto em exemplos passados. A Suíça e sua nota 9.03 no Democracy Index, uma democracia plena, com tradição de participação popular e referendos, fortaleceria ainda mais esse exemplo. A Suíça é, então, um país seguro, armado e democrático, que sustenta esses argumentos. E quem não deseja que o Brasil fosse como a Suíça?

Áustria e Chéquia são casos similares ao suíço. Essas relações, entretanto, não são universais. Infelizmente, pode-se colher cuidadosamente os exemplos que se encaixem dentro de um argumento pré-estabelecido, e apenas esses exemplos. Ao olhar para o cenário internacional como um todo vê-se as contradições e, principalmente, que essa discussão é mais complexa do que frases feitas ou relações absolutas. Tome-se a Coreia do Sul, um país democrático (nota 8), com poucos homicídios (2 por 100 mil) e, contradizendo o caso suíço, uma desprezível taxa de 0,2 armas por 100 mil pessoas.

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Os coreanos deixam de viver em uma democracia por isso? Outro exemplo similar é o dos Países Baixos, com a combinação de democracia, poucos homicídios e poucas armas de fogo. E o Panamá? Um país democrático, embora com falhas (nota 7.05), com uma política permissiva de armas de fogo e, ainda assim, uma grave taxa de homicídios de 18,7 por 100 mil, com 11 deles por armas de fogo, acima da taxa de epidemia da OMS. Dentre os países híbridos, as democracias “pero no mucho”, temos outros casos curiosos.

O Paquistão, que é um dos países mais permissivos e armados do mundo, em que fuzis automáticos são legais, que conta com um baixo número de homicídios por armas de fogo, 1,5 por cem mil, uma fração do número brasileiro. A categoria também inclui Uganda, com 13,1 homicídios por 100 mil habitantes, que conta com um número desprezível de armas em mãos civis. E Honduras, um regime não-democrático, com uma das maiores taxa de homicídios do mundo, 85,7 por cem mil habitantes, e outro país com legislação extremamente permissiva, destino de turistas entusiastas de armas dos EUA.

Os casos de Honduras e de Paquistão são de dois países de regime híbrido, com legislações permissivas, e números opostos de homicídios. Cada exemplo atende o desejo de ambas visões sobre o tema. Temos então o caso dos países conceitualmente autoritários, com sistemas políticos questionáveis e poucas liberdades civis. A República Central Africana é um dos países mais autoritários, violento e com rígidas restrições para a posse de armas pela população. Uma antítese da Suíça.

A China é um exemplo de país autoritário, com legislação extremamente restritiva sobre armas, mas, ao contrário do exemplo anterior, com um baixíssimo índice de homicídios. A relação entre armas e democracia, entretanto, não é automática. Os Emirados Árabes Unidos e a Jordânia mostram o contrário, ambos países autoritários, porém, com legislações permissivas, um grande número de armas em mãos civis e índices de homicídios baixos. Um caso historicamente interessante no Oriente Médio é o do Iraque sob a ditadura de Saddam Hussein. Um governo autoritário que chegou ao ponto de usar armas químicas contra a população, mas com alto número de armas em mãos civis.

O leitor talvez termine essa leitura confuso. De certo modo, essa é a intenção, sair de respostas fáceis. Não existem associações automáticas e chavões que se justifiquem. Realidades são diferentes, o que inclui aspectos culturais: países árabes possuem uma cultura de armas de fogo muito enraizada, ao contrário das sociedades japonesas e coreanas. A maioria dos coreanos sequer deseja ter uma arma de fogo. Que os debates sobre o tema possam ter uma argumentação sólida, seja qual for a perspectiva do leitor.   

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