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A cidade de Pripyat, na Ucrânia, 33 anos depois do acidente nuclear
A cidade de Pripyat, na Ucrânia, 33 anos depois do acidente nuclear| Foto: Eduardo de Abreu / Arquivo Pessoal

Os receios sobre a energia nuclear voltaram ao debate público, consequência do sucesso da minissérie Chernobyl. O mais grave acidente nuclear da História ocorreu em 25 de abril de 1986 e suas sequelas são sentidas até hoje, nos mais diversos campos da sociedade. Na política, no cotidiano de pessoas, na agricultura, nos animais, na saúde dos seres humanos. Ainda em 2019 pessoas precisam lidar com problemas de saúde em consequência do acidente, em diversos lugares.

Um mundo cada vez mais nuclear

A memória do acidente também serve para algumas lições e contextualizações. Isso é essencial pois a energia nuclear é cada vez mais utilizada em diversos lugares do mundo. Mais da metade da energia elétrica usada na Hungria, na Ucrânia, na Bélgica, na Eslováquia e na França é de origem nuclear; o caso francês é de impressionantes 71% de toda a energia do país, o que motiva parte das relações francesas com Estados africanos, pela importância do urânio.

Diversos países asiáticos e africanos, que não possuem reatores nucleares, estão em processo de construção e de assinatura de contratos com empresas estrangeiras do setor. Especialmente russa. A Rosatom está com contratos ou negociações na Nigéria, na Turquia, no Egito e na Índia. A Bolívia também está em conversas para uma usina nuclear, que podem ajudar no desenvolvimento dos países emergentes por serem uma potente fonte de energia que independem de características geográficas ou naturais.

Para nós brasileiros é complicado de contemplar esse cenário, já que o vasto território do Brasil, e sua localização, possibilitam uma miríade de abordagens energéticas; hidrelétrica, eólica, solar, etc. Como desejar que a Bolívia use energia hidrelétrica, ou que o interior do Egito seja desenvolvido dependente de energia eólica, ainda cara de gerar? Estamos em um mundo em que a tendência é de cada vez mais uso da energia nuclear e, junto com isso, cada vez mais precisamos lidar com suas consequências.

Um dos complicadores e que faz parte da explicação do desastre de Chernobyl (cuja grafia aportuguesada é Tchernóbil) é o fato de que a tecnologia nuclear era tratada como um grande segredo de Estado, parte do poderio de um país. Era não, em vários aspectos ainda é. No período da Guerra Fria, as relações internacionais entre os dois blocos em conflito faziam com que evitar que seu inimigo descobrisse seus segredos fosse a prioridade, acima de boas providências ou de transparência.

Um aspecto da Teoria dos Jogos é chamado de Jogo de Soma Zero, muito utilizado em relações internacionais. O Jogo de Soma Zero representa uma situação em que os ganhos ou perdas de um participante dependem diretamente da proporção de ganhos ou perdas de outro participante. Ou seja, para os EUA ganhassem numa situação, a URSS tinha que perder, e vice-versa. Ser transparente sobre um acidente nuclear representaria um ganho para seu inimigo, seja de tecnologia ou de propaganda. Consequentemente, você perderia.

Radiação não respeita fronteiras

Em texto sobre a cooperação internacional para o combate de epidemias e a relação com o chamado globalismo, foi lembrado que vírus não respeitam fronteiras nacionais. Radiação nuclear também não. Ucrânia e Belarus foram as regiões mais afetadas pelo desastre de 1986, mas consequências em plantações e animais são sentidos na Europa até hoje, com leis estabelecendo que níveis de radiação em animais devem ser checados antes que possam ser consumidos.

O acidente contribuiu para que o mundo notasse que o diálogo em temas nucleares era de interesse internacional, não apenas nacional. Como consequência direta das discussões sobre Chernobyl, foi criada a Associação Mundial de Operadores Nucleares, em 1989, focada no intercâmbio de informações sobre segurança nuclear. Ela complementa a Agência Internacional de Energia Atômica, conhecida pela sigla AIEA, uma organização da ONU criada em 1957.

Embora criada em 1957, a AIEA foi, por cerca de trinta anos, apenas um fórum onde os EUA e a URSS negociavam sobre energia nuclear com seus aliados e tentavam descobrir os segredos um do outro. como resposta direta ao desastre de Chernobyl  foram assinados dois acordos. A Convenção sobre assistência em caso de acidente nuclear ou emergência radiológica e a Convenção sobre alerta antecipado de um Acidente Nuclear; o primeiro acordo envolve também casos similares ao do Césio-137, em Goiânia, em 1987.

Após o fim da Guerra Fria e a abertura política decorrente disso, em 1994 é assinada a Convenção sobre Segurança Nuclear, considerada o maior acordo sobre o tema. Em 2015 é feita uma emenda na Convenção, como consequência de outro desastre nuclear, o de Fukushima, no Japão. Assim como o caso de Chernobyl, as consequências de Fukushima não ficaram restritas ao arquipélago japonês, com a radiação contaminando águas na costa do Peru e do Chile, do outro lado do maior oceano da Terra.

Resta saber como essas lições serão aprendidas. O primeiro acidente em uma usina nuclear para geração de energia consumida em grande escala foi nos EUA, em 1979. O acidente nuclear de Three Mile Island, na Pensilvânia, não deixou vítimas diretas, embora tenha liberado radiação, causado evacuação de moradores, problemas de saúde e gerado custos enormes para limpeza e prevenção. O evento alimentou vários debates nos EUA, sobre a energia nuclear.

Acidentes e lições

Por exemplo, se empresas privadas devem gerir usinas nucleares, como é a relação entre o governo e essas empresas e quais os efeitos da radiação para a sociedade, ainda tateando sobre o assunto. Principalmente para evitar o pânico generalizado em relação ao tema nuclear, ainda mais sensível na Guerra Fria. O fato é que hoje é impensável que um filme seja produzido na direção do vento de um local de testes nucleares enquanto ele é utilizado, com os envolvidos na produção recebendo doses cavalares de radiação.

Acha que é exagero? O filme O Conquistador, de 1956, estrelando John Wayne, produzido em Utah, apenas duzentos quilômetros de distância de um campo de testes nucleares em Nevada. Na época as autoridades garantiram que não teria risco algum; ainda assim, cerca de um terço dos envolvidos na produção morreu em decorrência de cânceres. Um misto de negligência e de ignorância, já que os efeitos malignos não de uma explosão, mas da radiação nuclear residual foram descobertos com o tempo.

Isso também explica o desastre de Chernobyl. Era uma coisa inédita, uma cadeia de eventos desconhecida e tida como imprevisível por muitos; felizmente, até hoje é um acidente singular. O temor de uma explosão ou de um desastre ainda maior, a falta de protocolos claros estabelecidos, o receio dos custos políticos. Tudo isso faz parte do contexto do desafio que foi Chernobyl, agravados pela falta de transparência e de cooperação típicas de um governo autoritário e fechado durante a Guerra Fria.

Isso que não pode se repetir no futuro, e mesmo essa lição corre o risco de ficar em segundo plano; o governo japonês, por exemplo, omitiu algumas informações sobre Fukushima, sob a justificativa de não alarmar a população. Outras usinas nucleares podem representar desafios futuros. Por exemplo, a usina de Metsamor, na Armênia, iniciou suas operações ainda no período soviético, em 1976, e ainda não possui contenção de concreto em torno de seu reator, como determinado pelos padrões modernos.

Além disso, a usina está em uma região vulnerável a terremotos, um problema que afeta seriamente usinas japonesas e dos EUA. Como se não fosse pouca coisa, a Armênia não possui relações com o vizinho Azerbaijão, enquanto a vizinha Geórgia está rompida com a Rússia desde 2008. E o combustível nuclear usado na Armênia é de origem russa. Então, a solução é o transporte aéreo desse combustível nuclear, algo que não é exatamente o melhor procedimento de segurança para casos assim.

Para aqueles que desejarem ir além dessa coluna ou da minissérie, a  uma escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Alexijevich, laureada com o Nobel de Literatura em 2015, tem uma obra imprescindível sobre o tema. O principal é não encararmos o acidente de Chernobyl, de triste legado, e suas vítimas, apenas como um fantasma do passado, uma sombra que choca. É termos em mente também o que ele produziu de cooperação e as lições que ele deixou, para que nunca se repita em um mundo cada vez mais nuclear.

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