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Apoiadores do primeiro-ministro armênio Nikol Pashinyan se manifestam na Praça da República, no centro de Yerevan, em 1º de março de 2021| Foto: ARIS MESSINIS/AFP

A Armênia não vai superar tão cedo o trauma da derrota na guerra de 2020 contra o Azerbaijão. O governo do primeiro-ministro Nikol Pashinyan é, obviamente e compreensivelmente, contestado e considerado o principal responsável pela perda dos territórios que a Armênia ocupava desde 1994, além da morte de milhares de armênios e destruição de parte do patrimônio histórico da nação armênia. Na última semana, a Armênia entrou em mais uma crise política, com Pashinyan denunciando uma tentativa de golpe militar, com diferentes interesses envolvidos.

A crise começou no dia 23 de fevereiro. O premiê Pashinyan, durante uma entrevista, questionou a eficácia dos mísseis Iskander fornecidos pela Rússia. Esses mísseis balísticos de curto alcance, desenvolvidos na década de 2000, originaram uma crise entre a Rússia e a OTAN quando foram deslocados para o enclave de Kaliningrado, cercado pela Polônia. Por isso, as declarações de Pashinyan repercutiram mal na Rússia, o único aliado armênio, onde os Iskander são tidos como a nova espinha dorsal dos mísseis balísticos de curto alcance, podendo ser equipados com diferentes tipos de ogivas, incluindo nucleares.

Demissão e pronunciamento

A declaração também foi mal recebida dentro das forças armadas armênias. No dia seguinte da entrevista, o primeiro vice-chefe do estado-maior das forças armadas armênias, Tiran Khachatryan, foi perguntado sobre as declarações do premiê. Ele deu risada, disse que era uma declaração absurda e que a eficácia dos armamentos era um tema de expertise dos militares. Horas depois de responder a pergunta, Khachatryan foi demitido de seu posto, iniciando um terremoto nas forças armadas armênias.

O sismo é agravado pelo fato de que, meses atrás, Khachatryan tornou-se uma das pouco mais de vinte pessoas laureadas com a condecoração de Herói Nacional da Armênia. Como consequência, no dia 25, o chefe do estado-maior das forças armadas, Onik Gasparyan, publicou uma declaração, assinada por quarenta outros oficiais de alto escalão, afirmando que Pashinyan e seu governo "não são mais capazes de tomar as decisões adequadas neste momento fatídico de crise para o povo armênio". A nota também explicita a demissão sumária de Khachatryan como um de seus motivos.

Pashinyan convocou apoiadores para saírem nas ruas de Yerevan e, no comício em seu apoio, denunciou a declaração como uma tentativa de golpe. "O exército não pode participar de processos políticos e deve obedecer ao povo e às autoridades eleitas". Pashinyan também assinou a demissão do chefe do estado-maior das forças armadas e o acusou de extrapolar suas funções. A oposição, com o apoio dos ex-presidentes Robert Kocharian e Serge Sarkisian, pediu que o premiê deixe o cargo sem aprofundar a divisão do país e “sem derramamento de sangue”. A oposição também convocou apoiadores, mas seu comício foi menor do que o do premiê.

A crise se agravou dois dias depois, quando o presidente Armen Sarkissian não assinou a ordem de demissão do chefe do estado-maior, afirmando que o decreto estava em dissonância com a constituição. Gasparyan, então, continua no seu posto militar, embora demissionário e sem diálogo com o premiê. O presidente Sarkissian, politicamente neutro em teoria e sem partido, provavelmente busca ser um mediador entre o governo, os militares e a oposição, e uma eventual saída seria a realização de novas eleições. Mais além, o presidente afirmou desejar a fundação de uma “nova república”, uma amostra da profundidade das cicatrizes que afligem a Armênia atualmente.

O estopim da crise, a crítica do premiê aos armamentos russos, é apenas mais um desdobramento de uma clivagem mais profunda e mais complicada, sempre explicada aqui em nosso espaço. Um aspecto importantíssimo da política, da economia e da sociedade em diversas das ex-repúblicas soviéticas é a divisão entre defensores da manutenção de laços próximos com a Rússia e os proponentes de uma aproximação com o “ocidente”, nomeadamente União Europeia e EUA. Uma série de textos aqui já abordaram essa questão e crises específicas no espaço pós-soviético.

Guerra e Rússia

Um terreno específico dessa disputa é dentre os militares. A maioria dos oficiais generais dos países ex-soviéticos são formados ainda nos tempos da superpotência, assim como doutrinas e equipamentos herdados da Guerra Fria. Gasparyan, por exemplo, iniciou sua carreira militar em 1988, já nos momentos finais soviéticos. Essa clivagem entre setores pró-Rússia e pró-UE é agravada na Armênia pelo fato de que a Rússia é a única aliada militar do país. Um país que está, basicamente, envolvido em um conflito desde seu primeiro dia de independência em 1991, contra um vizinho maior e mais rico.

Ou seja, os militares e alguns setores armênios enxergam que boas relações com a Rússia não são apenas uma prioridade ou russofilia, mas uma questão de sobrevivência. O que teria sido comprovado ano passado, quando o país, quase isolado, foi derrotado pelo Azerbaijão, que contava com forte apoio da Turquia. E qual o motivo desse isolamento? A esfriada nas relações com Moscou promovida pelo novo governo Pashinyan, um defensor da aproximação com os EUA e a UE. Inclusive, não foi a primeira ocasião em que Pashinyan criticou os armamentos russos utilizados pela Armênia, como se o vitorioso Azerbaijão não fosse também uma ex-república soviética que usa uma profusão de armamentos de origem russa.

Parte da responsabilização de Pashinyan pela derrota vem daí, do fato de ele não ter apelado para a aliança armênia com a Rússia. Mais ainda, é possível especular se Putin não deixou os azeris agirem com maior liberdade justamente para mostrar aos apoiadores de Pashinyan como a Rússia é essencial para a segurança armênia. Então, quando o chefe de governo, dando uma entrevista para um veículo conhecido por posições pró-UE, questiona a eficiência dos armamentos do próprio país e de seu principal aliado, os militares sentem que o premiê coloca suas preferências ideológicas acima da segurança nacional.

É claro que uma declaração dos militares pedindo pela renúncia de um governo democraticamente eleito é algo inaceitável e configura um golpe de Estado. O que é interessante de manter em perspectiva é que o caso armênio não é de mera quartelada por um projeto pessoal de poder, preferências partidárias ou ameaças imaginadas. É fruto de uma ferida profunda, de uma derrota humilhante, que apenas com união nacional, e da diáspora, será superada, seja para renegociar o acordo de paz, para cicatrizar as feridas ou até mesmo retomar a guerra. O fato é que o risco dessa crise enfraquecer ainda mais a Armênia é grande e urge a necessidade de diálogo entre os atores envolvidos.

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