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Manifestantes entram em conflito com a polícia em frente ao prédio da Assembleia Nacional da Sérvia em Belgrado, em 8 de julho de 2020| Foto: ANDREJ ISAKOVIC/AFP

A Sérvia foi tomada por protestos nos últimos dias contra as ações do governo em relação ao novo coronavírus. Numa escala que faz com que o país balcânico retorne ao nosso espaço em menos de vinte dias desde a coluna sobre as eleições nacionais. Os protestos, inclusive, possuem relação com o resultado eleitoral, embora não sejam homogêneos. Tanto a esquerda quanto a direita estão protestando nas ruas sérvias.

O estopim dos protestos foi a imposição de um novo confinamento aos moradores da capital Belgrado, que deveria durar três dias. Essa medida foi anunciada pelo presidente Aleksandar Vucic, conservador, no dia sete de julho, o dia mais mortal da pandemia no país, com treze mortes nos dados oficiais. E esse é um aspecto importante dos protestos, já que acusam o governo de estar maquiando os dados oficiais.

Uma pesquisa independente mostrou que, de 19 de março a primeiro de junho, morreram 632 pessoas na Sérvia em decorrência do novo coronavírus. O número oficial de mortes é de 244, menos do que a metade. O questionamento dos números leva à quebra de confiança em relação ao governo, cujas ações em relação à pandemia passam agora por um filtro mais rigoroso da opinião pública.

Números questionados

O governo usou o número pequeno de mortos para retirar as medidas de quarentena. Tais medidas não foram retiradas gradualmente, mas de uma só vez, permitindo aglomerações com milhares de pessoas. O exemplo mais infame foi um torneio amistoso de tênis, capitaneado pela estrela sérvia do esporte, Novak Djokovic, junto com outras estrelas. O resultado foi um surto do novo coronavírus entre público e os atletas.

O próprio Djokovic e o búlgaro Grigor Dimitrov foram infectados. Além de ter diminuído o impacto da pandemia, Djokovic também já compartilhou algumas visões conspiratórias anti-vacina. No final das contas, admitiu o erro e pediu desculpas por ter seguido adiante com o torneio, realizado à revelia dos órgãos internacionais do esporte. Além de aglomerações nas ruas, outro evento esportivo contribuiu para o surto na Sérvia.

No dia dez de junho foi realizado o Dérbi Eterno, o nome da mais importante rivalidade do futebol sérvio, e uma das mais intensas da Europa. O Partizan derrotou o Estrela Vermelha por 1x0 perante 16 mil torcedores. Dias depois, centenas de diagnósticos positivos para o novo coronavírus, inclusive de atletas. A partida causou um surto no vizinho Montenegro, onde os clubes são muito populares, dado o histórico da ex-Iugoslávia.

Outros jogos foram realizados e, no dia 22 de junho, cerca de dez mil torcedores do Estrela Vermelha celebraram o título nacional nas ruas da capital. Toda essa felicidade, repete-se, baseada na premissa mentirosa de que o país tinha poucos casos graves do novo coronavírus, quando o número real era mais do que o dobro. Finalmente, ocorreram as eleições no dia 21 de junho.

Parte dos manifestantes alega que as eleições não deveriam ser realizadas, que foi uma manobra do governo. Em suma, para parte dos manifestantes, o governo teria diminuído o verdadeiro impacto da pandemia, fingido normalidade, realizado a eleição com larga vitória, colhendo os frutos da tal normalidade e apenas após a vitória eleitoral reinstaurou as medidas sanitárias, utilizadas meses atrás no início da pandemia.

Manobra eleitoral?

Os principais proponentes dessa visão são os grupos liberais e social-democratas, à esquerda do governo, e que, em sua maioria, boicotaram o pleito. O partido socialista sérvio participou das eleições, e virtualmente não há extrema-esquerda na Sérvia hoje. O governo, por sua vez, como previsto no texto anterior aqui nesse espaço, se defende afirmando que a oposição optou pelo boicote, rejeitando o enfrentamento nas urnas.

Logo, não podem responsabilizar o governo pela sua escolha. Repetindo o escrito anteriormente, torna-se uma guerra de narrativas. Já os movimentos à direita do governo, como os nacionalistas do Dveri, também acusam uma manobra do governo, mas por outros motivos que não a mera vitória eleitoral. Para eles, a intenção do governo é enfraquecer os movimentos nacionalistas para “trair a pátria”.

O Dveri, assim como outros movimentos irredentistas, recusam qualquer negociação em relação ao Kosovo. Tais negociações estão ocorrendo nesse momento e uma eventual normalização da questão territorial é vista pelo governo sérvio como passo para integrar a União Europeia. A disputa acaba sendo um caldeirão de irredentismo territorial, nacionalismo, russofilia e religião ortodoxa.

As demandas dos manifestantes variam entre a não realização da quarentena, objetivo do Dveri que foi atingido, com a concessão do governo, até a repetição das eleições, algo que dificilmente será concedido. No meio do caminho está o pedido pelas cabeças dos integrantes do comitê de crise do novo coronavírus, como o ministro da Saúde, Zoran Loncar, e a premiê Ana Brnabic.

Futuro da Sérvia

Os protestos já foram violentos e, caso escalem ainda mais, pode ocorrer a simultânea escalada da repressão policial. Isso poderia tanto sufocar as manifestações quanto incentivar a população indignada a ir para as ruas. Na hipótese de cenas de violência na mídia europeia, isso pode atrasar as negociações sobre Kosovo, o que talvez seja o objetivo do Dveri. Outra hipótese talvez seja a queda da premiê.

Sem novas eleições, a renúncia de uma premiê vitoriosa semanas depois do pleito significaria apenas uma coisa: que o verdadeiro poder na Sérvia e de seu partido governista está em Aleksandar Vucic, apesar do modelo parlamentarista de Estado. Na prática, é quase isso, apenas tornaria essa autoridade de Vucic escancarada. Ele foi premiê de 2014 a 2017, quando tornou-se presidente.

Em qualquer uma dessas possibilidades, entretanto, a sociedade e o governo da Sérvia terão que lidar com a realidade da pandemia e do surto de novos diagnósticos no país. Mais ainda, lidar com a falta de confiança nos números do governo e com as acusações de uso político da pandemia, gerando discórdia e questionando toda e qualquer ação que seja tomada. Num momento de crise, isso pode ser ainda mais danoso.

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