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A chanceler alemã, Angela Merkel, e o inspetor geral das Forças Armadas da Alemanha, Eberhard Zorn, prestam homenagem em cerimônia pelo 75º aniversário de uma tentativa de assassinato contra Adolf Hitler em Berlim, 20 de julho de 2019
A chanceler alemã, Angela Merkel, e o inspetor geral das Forças Armadas da Alemanha, Eberhard Zorn, prestam homenagem em cerimônia pelo 75º aniversário de uma tentativa de assassinato contra Adolf Hitler em Berlim, 20 de julho de 2019| Foto: John MACDOUGALL / AFP

Dois eventos dos últimos dias parecem deslocados um do outro, mas fornecem material valioso para reflexões sobre o Brasil, sua política e sua História. Na quinta-feira, dia 18 de julho, o parlamento uruguaio aprovou uma reforma nas forças armadas do país, a primeira desde a redemocratização em 1985. Dois dias depois, do outro lado do Atlântico, Angela Merkel e o exército alemão prestaram homenagens à memória dos envolvidos na Conspiração de 20 de Julho de 1944, um movimento de oficiais alemães para matar Hitler.

Montevidéu

Para entender as ligações e tentar aprender algo, olhe-se primeiro para Montevidéu. O Senado do Uruguai aprovou as mudanças em votação apertada, de 31 a 17; os dois principais partidos da oposição já avisaram que pretendem questionar alguns pontos da nova lei. Principalmente, é ano eleitoral no país vizinho. Em outras palavras, coisas podem mudar e água pode correr nesse rio, recheado de discussões sobre a História recente do país e a função das forças armadas nessa trajetória. Tal como aqui.

A mudança mais discutida é, talvez, a menos polêmica do ponto de vista político. O tamanho do oficialato das forças armadas uruguaias foi reduzido; de 16 generais para 12, de 197 coronéis para 130, e assim segue por toda a hierarquia. Essa mudança é especialmente econômica, visando a diminuição de gastos futuros, já que o déficit da chamada Caixa Militar, a “previdência” castrense vizinha, é enorme. Junto com isso, veio um reajuste do cálculo das pensões militares já existentes.

Em bom português, mexeu nos bolsos de dezenas de milhares de pessoas, em uma discussão que, cedo ou tarde, chegará no Brasil, porém em uma escala muito maior, por motivos óbvios das diferenças de grandeza entre o continental Brasil e o pequeno Uruguai. Esse já é um tema para ficar de olho. Continuando, serão suprimidos os chamados Tribunais de Honra, as instâncias preliminares da Justiça Militar, meio de absolvição de diversos militares que cometeram crimes durante a ditadura uruguaia.

Mais que isso, esses tribunais não enviaram os materiais, depoimentos e evidências para as instâncias apropriadas; varreram a sujeira para debaixo do tapete, até o momento que tudo veio ao conhecimento público, com a demissão do ministro da Defesa e de toda a cúpula militar uruguaia. Esses tribunais serão substituídos pelos Tribunais de Ética Militar, submetidos ao Judiciário, ou seja, ao controle civil. Outro paralelo feito com o Brasil, onde existem diversas discussões e, principalmente, interesses, sobre a Justiça Militar.

Custos econômicos e políticos

O ponto aqui não é entrar no cerne dessas questões; ao menos, não nesse momento. Somente não se pode fugir da realidade que o Brasil é um país bastante militarizado em certas áreas, algo que antecede a atual presidência, antes que achem que é uma acusação de momento. Junto com essa militarização vêm questões como eventuais impunidades por possíveis abusos, como o caso do músico morto no Rio de Janeiro por soldados do exército, acusações de corporativismo e também o aspecto dos custos.

Não que o judiciário civil brasileiro seja uma pechincha ou de ótima relação custo-benefício; muito longe disso. O fato é que as justiças militares significam custos; se ele vale a pena ou não, esse é o debate. Que ocorre no país vizinho, incluindo aí o custo político, e mostra uma abordagem diferente da brasileira; abordagem essa que merece, ao menos, ser conhecida do cidadão brasileiro. Esse é o propósito aqui. Finalmente, outra mudança legislativa uruguaia também pode servir para o debate público brasileiro.

O Uruguai modificou o papel das forças armadas do país, retirando toda e qualquer derivação da chamada Doutrina de Segurança Nacional, exportada pelos EUA durante a Guerra Fria para os governos autoritários da América Latina. Uma política que, na prática, reduziu as instituições militares centenárias da região ao mero papel de garantir a política externa dos EUA para o continente e policiar movimentos internos de esquerda e suas ligações com agências de inteligência estrangeiras, como a soviética KGB.

Agora, as forças armadas uruguaias se prestarão à “defesa da população, da soberania, da independência e da integridade territorial e a salvaguarda dos recursos estratégicos do país determinados pelo Poder Executivo”, sob a Constituição e as leis, respeitando os Direitos Humanos consagrados nas leis e nos acordos do país. Além disso, também foi abolida a doutrina da obediência devida, da hierarquia absoluta. Usando um jargão militar brasileiro, “ordem errada não se cumpre”.

No caso uruguaio, agora terá um parâmetro objetivo do que é “ordem errada”: militares não serão obrigados ao cumprimento de ordens que são “manifestamente contrárias à Constituição da República e às leis em vigor, ou que impliquem a violação flagrante ou a ilegítima limitação dos direitos humanos fundamentais”. Novamente, olhando para o passado recente da região e, infelizmente, ainda para o presente, uma das mais comuns defesa de criminosos para abusos cometidos é “estava cumprindo ordens”.

Berlim

Olhe-se para Berlim, onde Merkel afirmou que "Há momentos em que a desobediência pode ser um dever". Setenta e cinco anos atrás, um grupo de militares violaram a hierarquia e a disciplina e tentaram um tiranicídio, a morte de Hitler, que seria seguida de uma busca pela paz negociada. A conspiração tornou-se mais conhecida pelo filme Operação Valquíria, estrelado por Tom Cruise como Claus von Stauffenberg, mas a realidade foi ainda mais cinematográfica e, claro, complexa.

Por exemplo, parte dos oficiais conspiradores eram nazistas convictos. Não se voltaram contra Hitler por idealismo, mas por insatisfação com os rumos da guerra e com a iminente derrota. Mesmo Stauffenberg estava muito mais próximo dos ideais prussianos de um Estado forte e aristocrático do que de uma sociedade plural e democrática. Até hoje sua imagem provoca algumas reações negativas; em suma, ele foi um conspirador, um traidor, um violador da hierarquia militar que ele tanto representava.

Além disso, a repressão aos conspiradores foi usada como justificativa para um expurgo generalizado, com quase cinco mil execuções. Para os que desejem uma lupa sobre a conspiração, a obra do historiador Nigel Jones é, talvez, definitiva. O fato é que Merkel, como líder do governo alemão por mais de uma década, celebrou, oficialmente, a memória de conspiradores contra o nazismo, reafirmando que racismo, antissemitismo e o nacionalismo extremista não podem ser aceitos.

Tampouco podem ser relativizados atrás do escudo da obediência, da hierarquia, dos símbolos pátrios, do que for. Algo sabido em lugares de trajetórias tão díspares quanto Alemanha e Uruguai, e uma discussão que ainda é feita timidamente no Brasil, onde o seu passado recente ainda é visto sob os óculos da Guerra Fria, dos mocinhos e dos vilões, que tolera abusos por serem em nome “do lado certo”. Feridas que podem até não incomodar todo dia, mas que não cicatrizaram completamente.

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