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Candidato à presidência dos EUA pelo Partido Democrata, Joe Biden, assiste ao discurso de Kamala Harris, sua escolhida para a vice-presidência| Foto: Olivier DOULIERY/AFP

Joe Biden finalmente escolheu sua companheira de chapa e nomeou a senadora Kamala Harris como sua vice-presidente. Essa era uma decisão argumentada aqui mesmo nesse espaço quatro meses atrás. Independente de gracejos de que Joe Biden seria nosso leitor ou ouvinte, a sua escolha foi, talvez, a melhor possível dentro do seu leque de opções. Ainda assim, a demora dele em fazer a nomeação precisa ser analisada.

No texto citado, há a ambição de cravar que “se Joe Biden escolher outro nome que não Kamala Harris, pode complicar ainda mais sua situação, que já não é fácil”. Recapitulando o principal motivo para isso, trata-se do fato de Kamala Harris ser de uma demografia diametralmente oposta ao presidente Trump e ao próprio Biden. E, numa democracia representativa, os eleitores querem se sentir representados.

Trump é um homem branco de 74 anos, bilionário e herdeiro de uma família de negócios. Joe Biden é um homem branco de 77 anos de uma família tradicional da Pensilvânia; um de seus bisavôs chegou a ter carreira política. Diferentemente dos dois, Kamala Harris é uma mulher negra jovem filha de imigrantes; aos 55 anos, ela é da primeira geração da família nascida nos EUA. American Dream puro.

Ela complementa Biden demograficamente, melhorando suas chances em alguns perfis de eleitorado em que ele estava mal. Joe Biden também possui um histórico de gafes e polêmicas. Foi vice-presidente por oito anos, transmitindo uma imagem parcialmente de “mais do mesmo”. Kamala Harris, até o momento, não possui nenhuma grande polêmica em sua trajetória, e transmite a ideia de renovação.

Importância do vice na eleição de 2020

Importante destacar que todos esses apontamentos são potencializados pelo assassinato de George Floyd, em 25 de maio, e os subsequentes protestos por todo o território dos EUA. Ainda assim, pode-se argumentar que a escolha do vice da chapa não é tão importante assim, que o cargo possui poucas prerrogativas e não desperta muitos amores e cortejos por potenciais ocupantes.

Isso é satirizado no filme Vice, em que Christian Bale interpreta o ex-vice-presidente Dick Cheney, que eclipsou o titular George W. Bush em algumas áreas do governo. O caso de Kamala Harris e Joe Biden é diferente, entretanto. O candidato democrata, até por sua faixa etária, já anunciou que será um “presidente de transição” e que não buscará uma reeleição caso vença o primeiro mandato.

Essa coluna precisou se debruçar sobre o tema para encontrar a última vez que isso ocorreu. A resposta fácil de presidente no cargo que abdicou da reeleição foi Lyndon Johnson, que assumiu primeiro como vice do assassinado John F. Kennedy e depois foi eleito. Ele desistiu da reeleição em 1968, mas não por desejo próprio ou intenção prévia, mas por estar mal na saúde física e nas pesquisas de opinião.

Aparentemente, o único caso de candidato que previamente anunciou que não disputaria a reeleição foi o republicano Rutherford Hayes, eleito em 1877. Não é dos nomes mais conhecidos, mas o ano explica. Ele foi eleito no contexto do acordo bipartidário que encerra a Reconstrução do Sul pós-guerra civil, incluindo ocupação militar por tropas federais. Ainda assim, fez seu sucessor, James Garfield, assassinado seis meses depois da posse.

Caso o leitor descubra outro caso de candidato que abdicou previamente da reeleição, por favor, esclareça.

Retornando aos nossos dias, o anúncio de Joe Biden torna, na prática, Kamala Harris a candidata democrata para 2024 em caso de vitória em 2020. Ele seria essa “transição” e ela será o futuro dos democratas. É uma decisão que pode gerar a ocupante da Casa Branca até 2032.

Futuro democrata

Ela não será apenas uma “escudeira” de Joe Biden, servirá para arregimentar o voto jovem e uma renovação democrata. Os quatro melhores colocados das primárias do partido são nascidos na década de 1940, enquanto os republicanos possuem nomes em ascensão como Nikki Haley, Ted Cruz e Marco Rubio, todos com menos de cinquenta anos de idade e, no caso dos dois, com apelo ao eleitorado de ascendência hispânica.

Não se trata de descartar a experiência ou enaltecer a juventude, apenas apontar o envelhecimento de quadros de um partido que, supostamente, possui força no eleitorado mais jovem e urbano. Nesse sentido, é interessante lembrar que um terço dos vice-presidentes dos EUA ocupou a Casa Branca posteriormente. George H. W. Bush foi vice de Reagan por oito anos e eleito posteriormente.

E isso também é um desafio para a campanha de Biden. O argumento opositor, já insinuado por Donald Trump nas redes sociais, é que Biden será um fantoche, um poste manipulado nos bastidores por Kamala Harris, que seria uma oportunista. Essa acusação deriva das fortes acusações da então pré-candidata contra justamente Joe Biden nas primárias democratas, em junho do ano passado.

Ela basicamente chamou Biden de racista em rede nacional e, desde então, nunca retirou ou lamentou a acusação, que deixou Biden gaguejando no palco. A insinuação prossegue de que ela vai manipular Biden para atender aos elementos da “esquerda radical” democrata. Nesse sentido, a acusação é vazia, já que a carreira de Kamala Harris foi bastante centrista, pouco radical.

Arestas e demora na indicação

Inclusive, essa é a segunda aresta que Kamala Harris e Joe Biden precisam aparar perante o público. Como procuradora-geral da Califórnia por oito anos, ela defendeu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mirou contra fraudes bancárias e empresariais pelas indústrias farmacêutica e do petróleo, expandiu as corregedorias de polícia, mas também teve posturas agressivas que desagradaram os setores mais progressistas do direito penal.

Expandiu condenações, diminuiu a quantidade de liberdades condicionais e defendeu a constitucionalidade da pena de morte, enquanto se declarava pessoalmente contra a pena capital. Ou seja, os setores democratas que Trump chama de “esquerda radical” não estão exatamente no mesmo tom que Kamala Harris em algumas questões. Se isso pode afastar parte do eleitorado, só podemos especular.

Aqui entram as duas narrativas sobre a demora de Joe Biden em oficializar sua vice. Alguns só faltam louvar ele como um mestre da realpolitik, que teria demorado para intencionalmente manter os holofotes em Trump e evitar que a oposição tenha tempo hábil de explorar essas discordâncias e a altercação nas primárias entre o titular e a vice da chapa. Teria fritado Trump e preservado a chapa.

Essa é uma visão bastante otimista, para não dizer inocente. Dois meses atrás foi mencionado aqui que Biden estava perdendo tempo, e essa é a verdade, muito provavelmente pela necessidade de acordos costurados em portas fechadas. Certamente o assassinato de George Floyd contribuiu para sua decisão, talvez sem tanta convicção. E esses meses todos poderiam ser usados para aparar as arestas citadas aqui.

Ainda assim, mesmo demorado, Joe Biden fez a decisão correta dentro de suas opções. Trata-se da única possível vice que realmente pode fazer diferença nessa campanha. As campanhas indicam que ele tem a maioria dos votos, mas o voto republicano é mais fiel e melhor distribuído, é bom lembrar. E, ironicamente, a candidatura pode dizer que Trump confia em Kamala, já que ele e sua filha contribuíram para a campanha dela em 2014.

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