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Um soldado do Sri Lanka monta guarda do lado de fora do Santuário de Santo Antônio, em Colombo, em 29 de abril de 2019, uma semana depois de uma série de explosões em igrejas e hotéis de luxo | Foto: LAKRUWAN WANNIARACHCHI / AFP
Um soldado do Sri Lanka monta guarda do lado de fora do Santuário de Santo Antônio, em Colombo, em 29 de abril de 2019, uma semana depois de uma série de explosões em igrejas e hotéis de luxo | Foto: LAKRUWAN WANNIARACHCHI / AFP| Foto:

Mais de duzentas vidas inocentes podem terem sido ceifadas como efeito colateral de uma disputa política. No Sri Lanka, uma semana atrás, no Domingo de Páscoa, uma série de atentados à bomba em hotéis e igrejas católicas deixou ao menos 253 vítimas fatais e mais de 500 pessoas feridas. Uma pouco conhecida disputa política do ano passado, entretanto, pode contribuir na explicação do que ocorreu.

Violência religiosa

A primeira parcela da explicação é o conflito religioso interno ao Sri Lanka. Cerca de 70% da população é budista, com aproximadamente 12% hindu, 10% muçulmana e 7% cristã; desses, católicos romanos são a grande maioria. Esse é um legado português, com missionários nos séculos XV e XVI; apesar do fato de ter sido, posteriormente, colônia inglesa, o anglicanismo não superou o catolicismo em números.

A guerra civil do Sri Lanka, que durou do final dos anos 1970 a 2009, tinha um forte componente religioso, já que os tâmeis são, em maioria, hindus. Conflitos entre a maioria budista e as outras minorias religiosas foram recorrentes, inclusive em anos recentes. Milícias budistas atacaram mesquitas, grupos muçulmanos atacaram templos budistas, um ciclo indefinido.

A violência por grupos budistas armados e organizados soa estranha para muita gente, mas está no cerne do genocídio rohingya, para ficarmos em um exemplo recente. Nesse cenário, foi fundado um grupo muçulmano chamado National Thowheeth Jama’ath (NTJ, Organização Monoteísta Nacional), que prega a violência religiosa contra as outras denominações da ilha; inicialmente, o foco era a demografia budista.

Aperfeiçoamento da violência

Temos a primeira parcela da explicação, o contexto. Indo além, nos últimos meses, o pequeno NTJ passou por um processo rápido de crescimento e de profissionalização de suas técnicas; tanto de recrutamento, quanto de radicalização e de planejamento. Seis explosões simultâneas não são algo que se faz da noite pro dia, requer tempo, recursos e técnicas. Como esse processo ocorreu tão rápido?

Integrantes do Daesh, o autointitulado Estado Islâmico, fugitivos da Síria e do Iraque, se espalharam ao redor do globo, incentivando a formação de novas células terroristas ou aperfeiçoando grupos já existentes, como o caso do NTJ. Isso preenche uma segunda lacuna da explicação, o como isso aconteceu. A terceira parcela que explica os ataques da Páscoa é a racionalização da escolha dos alvos.

Ataques contra cristãos na Páscoa não são inéditos. Na verdade, pelo simbolismo religioso da data, frequentemente ataques terroristas ocorrem na Páscoa, como os ataques contra igrejas coptas no Egito em 2017 ou numa procissão no Paquistão em 2016. Isso junto ao elemento do discurso do Daesh de luta contra os “cruzados” e os “infiéis” e o cenário interno de disputas religiosas.

Apesar desse discurso é interessante lembrar que, enquanto o Sri Lanka participa de diversas missões de paz da ONU, inclusive sob comando brasileiro no Haiti, o país nunca teve tropas na Síria, no Iraque ou no Afeganistão. Outro elemento dessa racionalização é o fato de que atacar igrejas católicas e hotéis aumenta o potencial número de vítimas estrangeiras, o que chama mais atenção e espalha o terror.

Ao menos quarenta e dois mortos eram estrangeiros; um caso que chamou atenção da mídia europeia foi o da morte dos filhos do homem mais rico da Dinamarca, que passavam as férias na ilha. Repercussão muito maior se comparado ao legado do atentado em Mogadishu em 2017, por exemplo, que deixou 587 mortos. O terror, ainda mais o aparato midiático do Daesh, precisa da repercussão para se retroalimentar.

Lealdades divididas?

Todas essas explicações feitas, algumas peçam ainda faltam. Principalmente, as que explicariam a brecha na segurança que possibilitou uma organização desse tamanho ocorrer quase intocada. Segundo a agência Reuters, fontes no governo indiano afirmaram que avisaram as autoridades do Sri Lanka duas semanas antes dos ataques, repetiram o alerta dois dias antes e, chocante, duas horas antes, com especificações dos alvos.

Se agentes de inteligência indianos emitiram um alerta duas horas antes das explosões, detalhando os possíveis alvos, o que explica as igrejas e os hotéis não terem sido evacuados? Com semanas de antecedência, porque os terroristas não foram presos, procurados pela polícia? O Ministro da Defesa do país, Ruwan Wijewardene, falou em “lapsos” de segurança e foi categórico em dizer que o massacre podia ter sido evitado.

Leia também: Homens-bomba que realizaram ataques no Sri Lanka eram de classe média e alta

Diversas lideranças políticas e policiais foram demitidas sumariamente pelo presidente, como consequência dos ataques. O mesmo presidente que disse que nenhum aviso chegou ao seu gabinete. Infelizmente, essas centenas de mortos talvez tenham sido também vítimas de uma intriga política. O Sri Lanka é uma república semi-presidencialista que, apenas dez anos atrás, saiu de uma guerra civil que durou décadas.

Isso quer dizer que o poder é fragmentado em famílias e líderes reminiscentes do conflito ainda. Em 26 de Outubro do ano passado, o presidente Maithripala Sirisena sumariamente designou o influente ex-presidente e parlamentar Mahinda Rajapaksa como primeiro-ministro, que é uma espécie de “ministro chefe” do gabinete; fazendo uma mera analogia, um ministro-chefe da Casa Civil no Brasil.

O ocupante do cargo, Ranil Wickremesinghe, afirmou que a decisão era ilegal, já que o primeiro-ministro é amparado pelo parlamento, uma forma de manter o equilíbrio entre os poderes; o cargo funcionaria como uma ponte entre Executivo e Legislativo. Até o dia 16 de Dezembro, por quase dois meses, o país, na prática, teve dois governos. De um lado o presidente e Rajapaksa, do outro o parlamento e Wickremesinghe.

A corte suprema local decidiu que o presidente agiu ilegalmente; enquanto isso, o Executivo tentou dissolver o parlamento. Já o Legislativo tentou esvaziar os poderes executivos. Uma crise que teve um grande preço econômico e, possivelmente, agravou tensões entre os órgãos do Estado e seus integrantes. Não existe subsídio o suficiente para ir além e achar que foi um atentado político, mas é possível suspeitar das agências de segurança.

Suspeitas

Quando os que deveriam ser agentes de Estado, como oficiais militares e agentes de inteligência, tornam-se agentes submetidos aos jogos partidários e clânicos de lealdade, toda uma cadeia de comando e de informações pode ser comprometida. É plenamente possível que os avisos indianos tenham caído em mãos de oficiais descontentes com o governo ou desleais ao presidente, que intencionalmente nada fizeram.

Isso acaba comprometendo a autoridade do atual governo. Por outro lado, o presidente determinou uma forte repressão e operações contra suspeitos de serem integrantes do Daesh, invocando poderes emergenciais. A suspeita vale para os dois lados da moeda. Oficiais e agentes comprometidos com o presidente que viram uma oportunidade para mudança de foco da opinião pública e consolidação de posições pela força.

Claro que não é proveitoso gastar muita energia pensando em corruptas explicações para o que pode ser meramente fruto de incompetência ou desleixo. Ainda assim, é de bom tom que potências vizinhas e as interessadas na luta contra o terror olhem atentos também para as lealdades locais e tentem contorná-las. Os inocentes mortos no Sri Lanka podem ter sido também usados cruelmente como peões de um mesquinho jogo político local.

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