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Foto tirada a partir da cidade síria de Ain al-Tineh mostra a cidade drusa de Majdal Shams, nas Colinas de Golã, 26 de março. Foto: Louai Beshara / AFP
Foto tirada a partir da cidade síria de Ain al-Tineh mostra a cidade drusa de Majdal Shams, nas Colinas de Golã, 26 de março. Foto: Louai Beshara / AFP| Foto:

O que significam as colinas de Golã? Recentemente, o governo de Donald Trump fez dos EUA o primeiro país da História que reconhece a região como território de Israel. O restante da comunidade internacional reconhece as colinas como um território sírio que é ocupado por Israel desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Como muitas notícias que envolvem Israel, a reação foi, em diversos momentos, passional. Repúdio ou louvor, independente da substância. Os interesses da ocupação e a consequência do ato do governo Trump, entretanto, não podem ficar em segundo plano.

Água

Como mencionado aqui nesta coluna, quando o tema era o Tibete, água é um recurso estratégico essencial para qualquer nação. No Brasil não costumamos pensar nisso, pois o país é privilegiado como o com maiores reservas de água doce do mundo inteiro, com quase o dobro da Rússia, segunda colocada; com o agravante de que parte razoável da água doce russa está congelada. Israel e Jordânia, ao contrário, estão nos vinte países com menos reservas de água, daí a necessidade israelense de dessalinização.

Enquanto um modelo de ensino “decoreba” no Brasil falava dos afluentes do Amazonas e de diversos outros rios brasileiros, em Israel a tarefa seria muito mais fácil. O único rio do país com mais de cem quilômetros de extensão é o rio Jordão, de importância cultural e religiosa. E parte dos outros rios é tributária do Jordão, o que o torna ainda mais essencial. A maior parte da água potável de Israel é fornecida pelo rio, que é partilhado com a Jordânia.

Mesmo as terras costeiras e mais ao sul são abastecidas pelo Jordão, via um grande sistema de dutos, canais e reservatórios que partem do Mar da Galileia. Também de significado histórico, o Mar da Galileia é, tecnicamente, um lago. E não muito grande, o que mostra ainda mais o valor da água escassa na região; apenas a região alagada por Itaipu, por exemplo, tem mais de sete vezes a quantidade de água que o Mar da Galileia.

E onde é a nascente do Jordão? No monte Hermon, na fronteira entre Síria e Israel. Nas colinas de Golã. O temor de que a Síria, país árabe sem relações com Israel, desviasse parte do fluxo do rio é uma das diversas razões da Guerra dos Seis Dias, que começou com um polêmico e até hoje debatido ataque “preemptivo” de Israel contra seus vizinhos árabes, sem aviso.

Pode-se alegar uma contradição, já que, oras, os israelenses mesmos desviaram parte do fluxo do rio, para abastecer as terras do sul. Por outro lado, o governo israelense é obrigado a compensar esse desvio, cedendo cinquenta milhões de metros cúbicos de água para a Jordânia, como parte do acordo de paz de 1994. Ainda assim, o resultado do desvio é evidente, com o fluxo do Jordão menor do que a média histórica.

Então, controlar Golã é controlar a fonte do único grande rio da região. Mais ainda, pelas fronteiras originais, a Síria teria acesso ao Mar da Galileia. Por lei internacional, se mais de um país possui acesso a um corpo d’água fechado, todos podem usufruir daquela água igualmente. Sendo o maior reservatório de água do Jordão, acesso ao Mar da Galileia, na prática, significaria acessar a fonte do rio.

Os temores israelenses iam desde apenas a mera partilha igual da água até supostas ideias de planos sírios para sufocar o abastecimento de água israelense, como barragens e desvios. No único momento em que israelenses e sírios estiveram perto de um tratado de paz, uma divergência de cem metros na fronteira impediu a assinatura. Esses cem metros significavam justamente a diferença do acesso, ou não, sírio ao Mar da Galileia.

Terras altas e ocupação

Outro motivo que explica o interesse militar de Israel em controlar as colinas de Golã é o fato de serem terras altas em contraste à região central de Israel, plana e no nível do mar. Isso quer dizer que, dali, forças sírias ou milícias poderiam disparar foguetes, mísseis e morteiros contra Israel. E o inverso é verdadeiro, dali Israel consegue projetar força dentro do território Sírio, usando como base ou como ponto de observação.

Essa foi uma das razões citadas pelo governo de Donald Trump na declaração de reconhecimento, que é uma maneira de impedir que o território seja usada por grupos apoiados pelo Irã (ou seja, o Hezbollah libanês) e grupos extremistas para atingir Israel. A presença iraniana na Síria e a política dos EUA de pressionar o Irã acaba incentivando a decisão política desse reconhecimento; sem mencionar, é claro, o empurrão ao amigo Bibi Netanyahu nas vésperas das eleições israelenses.

Como “causo” pessoal, estive nas colinas de Golã em 2016. Visitei um dos postos de observação da ONU da Força das Nações Unidas de Observação da Separação, que monitora o cessar-fogo entre Israel e Síria desde 1974, após a Guerra do Yom Kippur ou Guerra de Outubro. Enquanto conversava com uma oficial neozelandesa, a trilha sonora era de constantes estrondos secos de artilharia ao fundo, com a guerra na Síria literalmente ao lado. A vista permitia alcançar até o subúrbio de Damasco, com um bom binóculo.

Estratégia e Direito

Conhecendo as preocupações israelenses com segurança e geopolítica, é quase impossível imaginar uma retirada de Golã. Isso sem falar nos assentamentos, em investimentos, atividade econômica, vinícolas, etc. Mesmo que o único fator seja o controle da água e o de terras altas, já é o suficiente para manter a ocupação, que tornou-se anexação em 1981.

Outro complicador é o fato de que, hoje, a Síria é uma sombra da potência regional que já foi, após violenta e longa guerra civil. Quando das negociações em 1999, a Síria de Hafez Assad era muito maior, influente e consolidada do que hoje. Sim, consolidada, já que qual a garantia que o governo sírio de hoje pode dar sobre o controle de um território, quando sequer controla todo o seu território de fato? Naquele momento, a divergência fronteiriça já citada, entre as linhas de 1948 e de 1967, acabou sendo o fator de peso.

Na prática, Golã é de Israel desde 1967 e, também na prática, o governo israelense não vai devolver o território, ao menos não tão cedo. Em teoria, o reconhecimento dos EUA flerta de forma perigosa com dois precedentes. O primeiro é da estabilização das relações israelenses com os países árabes, estabelecido quarenta anos atrás, quando da paz entre Israel e Egito.

Naquele momento, israelenses devolveram a península do Sinai aos egípcios, também tomada em 1967. O “preço da paz” era a devolução dos territórios tomados aos antigos inimigos. Como se promover uma paz em que um país mantém os espólios territoriais da vitória no século XX? Ao mesmo tempo, os mais idealistas também criticam, mas pela abordagem de que a paz não pode ser barganhada com terras. É a paz pela paz.

O segundo precedente é em relação a uma das consequências do trauma histórico que foi a Segunda Guerra Mundial. Quando da formação da Organização das Nações Unidas estabeleceu-se que a força não pode ser considerada um meio legítimo de expansão territorial. Uma anexação aos moldes das velhas conquistas militares não teria mais lugar em um mundo civilizado.

Reconhecer Golã como israelense não seria ferir essa ideia? Justificar a conquista de territórios? Uma abordagem semelhante, por exemplo, sustentaria o reconhecimento da anexação da Crimeia pela Rússia. Ao mesmo tempo, outras brechas e contradições já existem nessa regra, embora poucas. O Tibete é uma delas.

Na prática, repete-se, a posse de Golã não vai mudar. Não em breve e não de forma que não seja um evento extraordinário. O caminho para uma paz com a Síria deverá girar na ideia de uma compensação pela perda territorial. O problema é evitar que o reconhecimento de uma anexação pela maior potência do mundo crie um precedente perigoso na cabeça de expansionistas.

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