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Rebeldes sírios apoiados pela Turquia
Rebeldes sírios apoiados pela Turquia partem para uma área perto da fronteira sírio-turca ao norte de Aleppo, em 8 de outubro de 2019| Foto: Nazeer Al-khatib/AFP

Esta coluna sobre a situação geopolítica do nordeste da Síria demorou para ficar pronta pois foi escrita, reescrita, apagada, escrita. O propósito do texto é abordar dez pontos interessantes aos leitores para prestarem atenção em decorrência do anúncio feito no último domingo pelo governo dos EUA. Em suma, Washington declarou que iniciaria a retirada de suas forças do nordeste da Síria, que apoiam os curdos locais, centrais na derrota do autointitulado Estado Islâmico (Daesh). O que isso pode significar?

Fontes

A primeira questão está relacionada ao que foi escrito logo na abertura. É uma crise em andamento, com desdobramentos em tempo real, informações conflitantes e desinformação internacional. O próprio governo dos EUA retrocedeu no tom inicial, após críticas de que o país estaria abandonando seus aliados curdos. Imperativo lembrar que foi isso que levou o ex-secretário de Defesa Jim Mattis a renunciar. Relatos diziam em avanços turcos dentro de território sírio, mas depois se mostraram falsos. Cautela é sempre bom.

Cálculos de Erdogan

O maior interessado na presente situação é o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan. O governo turco vê os grupos curdos baseados na Síria, como as Unidades de Proteção Popular, conhecida pela sigla YPG, como um grupo terrorista, um braço do Partido dos Trabalhadores do Curdistão turco, também considerado um grupo terrorista. Os curdos são a maior etnia do planeta sem um Estado nacional próprio e a situação dessa população dentro da Turquia é causa de disputas por décadas.

Isso foi brevemente introduzido em uma série de textos aqui nesse espaço, sobre o Oriente Médio. A questão presente é: Erdogan não agiria de forma unilateral contra os curdos na Síria. Isso o colocaria em possíveis rotas de conflito com os EUA; com os curdos que vivem dentro da Turquia; com a Rússia, presente na Síria, e com o regime Assad, dentre outros. É visível que Erdogan calculou bem os riscos envolvidos, já que essa ofensiva contra os curdos à leste do rio Eufrates está planejada por mais de um ano. Agora, como calculou?

Erdogan e o convencimento de Trump

Um dos primeiros cálculos é: como Erdogan conseguiu o “sinal verde” de Washington? O comunicado original da Casa Branca fala em uma operação turca para “assentamento de refugiados” e tomar conta de prisioneiros do Daesh; cerca de seis mil estão sob custódia das forças curdas e demais integrantes das Forças Democráticas Sírias (SDF, na sigla em inglês). Ou seja, o texto é explícito ao falar das forças turcas. A primeira coisa que se deve levar em consideração é o desejo de Trump.

O atual presidente dos EUA defende, desde sua campanha eleitoral, a retirada das forças armadas de seu país dos teatros do Oriente Médio. Como no mencionado episódio de Jim Mattis. Então, em um cenário de véspera de eleições e discussão de impeachment, não é de se estranhar que Trump tenha feito essa concessão. Ao mesmo tempo, conceder em troca de nada? Ou Erdogan ofereceu algo? Se sim, que “algo” teria sido esse? Por exemplo, apoio nas disputas de inteligência envolvendo Trump e a Ucrânia?

Papel da Rússia e do regime Assad

Outro cálculo envolve a Rússia. Erdogan ligou para Putin? O espaço aéreo sírio é controlado por Moscou, exceção justo ao nordeste do país. Uma liberação pelos EUA ainda implica uma superioridade aérea russa. Nenhum país, no século XXI, realizaria uma grande operação militar como a planejada pela Turquia sem apoio aéreo. Mais que isso, o nordeste da Síria é uma das regiões com campos de petróleo do país. Os investimentos russos para a reconstrução síria incluem justamente a restauração da indústria petrolífera.

Não seria nem um pouco inconveniente para o governo Putin que aproveitassem uma eventual retirada dos EUA da região e se tornassem eles os garantidores da autonomia curda frente uma operação turca. A Rússia teria então acesso aos campos de petróleo, a fronteira com o Iraque e poderia colocar o YPG e o regime Assad na mesa de negociação. Certo grau de autonomia reconhecido por Damasco que, em troca, dá mais passos na tarefa de consolidar sua soberania por todo o território.

Quão gradual a retirada será

As tropas dos EUA sairão de uma vez? Será algo progressivo e gradual? Relatos falam na retirada de apenas algumas tropas da fronteira com a Turquia. E as tropas aliadas dos EUA, mas dependentes logisticamente da potência, como os soldados britânicos? Será uma retirada exclusivamente terrestre ou mesmo o apoio aéreo e de inteligência serão encerrados? Todas essas perguntas ainda precisam ser respondidas, inclusive pelas acusações de que Washington está abandonando seus aliados.

Questão Iraquiana

Ao contrário do que muitos podem imaginar e visões superficiais podem implicar, os curdos não são um povo homogêneo. As pautas dos curdos sírios e dos curdos iraquianos costumam divergir em muitos pontos; ainda assim, possuem uma cultura similar. Em um cenário iraquiano de crise política, com crescentes protestos, uma crise no nordeste sírio poderia facilmente extrapolar as fronteiras. Como agirão os curdos iraquianos? Ainda, centenas de milhares refugiados curdos poderiam cruzar a fronteira, fugindo da guerra.

Racha entre os aliados dos EUA na Síria

As Forças Democráticas da Síria, guarda-chuva que abrange as forças curdas, são formadas por uma série de grupos e facções. Teoricamente, a SDF como um todo é aliada dos EUA na guerra contra o Daesh. Com uma eventual intervenção turca, entretanto, todo esse conjunto pode ruir. Os turcomanos, como os da Brigada Seljúcida, dificilmente continuarão ombreados com os curdos, alinhando-se aos turcos. Grupos árabes sunitas poderão se dividir também. Para benefício de Assad e do Daesh.

Guerra aberta

A pior possibilidade é uma ofensiva de larga escala turca que seja enfrentada com todos os recursos curdos possíveis, incluindo o deslocamento de unidades que hoje estão atuando no sul da Síria ao norte, para enfrentar a Turquia. O YPG arregimenta cerca de trinta mil combatentes, longe de ser uma força desprezível; sem mencionar as relações já citadas nesse texto. Uma guerra aberta e de larga escala não seria resolvida em dias, nem em semanas, mas meses de mais destruição e morte.

Novamente, uma guerra dessas proporções poderia alterar toda a balança de relações dentro da Síria. Acusações contra a Turquia pipocariam pela comunidade internacional, desde algumas como a promoção de um genocídio contra os curdos até o estremecer das relações entre Ancara e a OTAN; estremecer ainda mais, já que o governo turco, progressivamente, alinha suas compras de equipamentos bélicos com Moscou, especialmente após o episódio da recusa do fornecimento dos F-35.

“Zona de paz” provisória e engenharia demográfica

Uma hipótese menos radical do que uma acusação de genocídio, mas ainda grave, é a possibilidade de uma engenharia demográfica nas regiões curdas. Tudo isso foi apresentado por Erdogan perante a comunidade internacional. Por trás de um inocente plano de “realocar refugiados” no nordeste sírio, está a intenção de deslocar centenas de milhares de curdos, “diluir” sua presença, sua cultura e seu idioma em seu próprio território de origem. Uma operação militar seria apenas um preâmbulo para isso.

Renascimento do Daesh 

Finalmente, o maior problema e o pior prospecto. O Estado Islâmico nasceu do vácuo de poder no norte iraquiano e no leste sírio. Uma guerra entre curdos e turcos deixaria, novamente, espaços para serem preenchidos. Embora longe de ser um “califado” e de controlar territórios como já conseguiu, o Daesh ainda existe, com células armadas e com capacidade de comunicação. Mais ainda, seis mil jihadistas estão sob custódia dos curdos. E o comandante da SDF já deixou claro o que aconteceria.

Segundo o general Mazloum Kobani Abdi, em caso de guerra com a Turquia, a custódia dos prisioneiros seria uma “prioridade secundária”. Nesse vácuo, relacionado à falta de uma política de longo prazo por parte de algumas das principais potências envolvidas, o Daesh poderia recuperar territórios, até mesmo se aproveitar da atual crise iraquiana. Muito improvável que chegue ao status que já teve, mas um retrocesso, sem dúvida alguma. Algo que torna a necessidade de um concerto dos atores envolvidos ainda maior.

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