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Assessor de segurança nacional da Casa Branca, John Bolton
Assessor de segurança nacional da Casa Branca, John Bolton| Foto:

John Bolton quer uma guerra com o Irã. Isso é notório e sabido desde o final da década de 1990. O que não é conhecido é a totalidade de seus motivos, se existem interesses não muito republicanos no principal falcão do governo dos EUA e seus laços empresariais. Hoje Conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, Bolton foi integrante do gabinete de George W. Bush, extremamente próximo do vice-presidente Dick Cheney.

A troika Cheney, Bolton e Donald Rumsfeld era a maior proponente da invasão do Iraque após os atentados de Onze de Setembro de 2001. O fato dos atentados terem sido realizados por sauditas, financiados por riqueza pessoal de cidadão sauditas, amparados e abrigados pelo afegão Talibã, ambos regimes rivais do de Saddam Hussein, era mero detalhe. Por algum motivo, o Iraque tinha que ser invadido.

Custo da invasão do Iraque

O resto é História: lorotas para justificar uma invasão, mortes, destruição, ocupação, fim da ditadura de Saddam Hussein e esfacelamento de um Estado. Algo entre 150 e 500 mil mortes diretas. Disputas internas entre xiitas e sunitas e ascensão de milícias controlando pedaços de território, habitualmente formadas por ex-integrantes do partido Ba’ath, proibidos de terem qualquer função na nova administração.

A mais infame dessas milícias é o Daesh (auto-intitulado Estado Islâmico), cujas atrocidades divulgadas por uma estrutura de marketing extremamente agressivo tornaram o grupo conhecido no mundo inteiro, dominando grandes fatias de território em um suposto califado. Claro, esse é um resumo extremamente enxuto, mas é plausível classificar a invasão do Iraque em 2003 e as políticas adotadas posteriormente como um desastre.

Um desastre que já custou mais de dois trilhões de dólares ao erário dos EUA, cifra que pode chegar aos seis trilhões nas próximas décadas, com juros, pensões e gastos com saúde de veteranos. A oposição ao conflito, aos soldados mortos e ao custo dessa guerra para o cidadão dos EUA foram bandeiras que contribuíram bastante para a eleição de Trump. “America first”.

O fato é que Trump é o dono da caneta e já são várias as suas divergências com pessoas de seu gabinete sobre o Oriente Médio; por exemplo, a crise que causou a saída nem um pouco elegante de Jim Mattis do governo. Eleitoralmente não seria interessante para Trump se meter em um conflito; por outro lado, Bolton e outros falcões certamente pressionam o assunto.

Fim do acordo nuclear?

Exemplo da influência de Bolton no tema é que ele que assina a nota do envio de um porta-aviões e sua escolta para o Golfo Pérsico; talvez uma jogada midiática, já que o porta-aviões já havia zarpado e provavelmente iria para lá de qualquer maneira, como parte da rotatividade dos ativos da Marinha dos EUA. O Golfo Pérsico estava sem um grupo de combate por alguns meses.

Enquanto Bolton trucou, com a nota afirmando que os interesses dos EUA seriam defendidos contra o Irã, o governo iraniano dobrou a aposta. Anunciou que deixará de cumprir parte dos compromissos do acordo nuclear e deu sessenta dias para que os outros países signatários cumpram suas partes em temas como petróleo e finanças; o último capítulo foi o anúncio, por Trump, de mais sanções contra o Irã.

Uma guerra contra o Irã, entretanto, não seria coisa simples. Claro, em um exercício extremo de imaginação, o poder bélico dos EUA pode simplesmente terraplanar o país. Isso, entretanto, geraria um morticínio e um enorme risco de escalada para uma intervenção de outras potências, como a Rússia. Fazem 74 anos desde que uma arma nuclear foi usada em um conflito, e esse equilíbrio precisa ser valorizado.

E aqui não se trata de estratégia ou tática militar, do Millennium Challenge 2002, mas de história e política. O Irã é mais que três vezes maior do que o Iraque, com mais do que o dobro da população. Enquanto o Iraque era uma ditadura personalista, centrada em Saddam Hussein e seus filhos, com um partido político obediente, o Estado iraniano é mais estabelecido e autônomo.

Um Estado dentro do Estado

Mais que isso, existe um Estado dentro do Estado. Em um nível poucas vezes visto antes; fazendo uma analogia, com todos os problemas da analogia, é como no III Reich, em que existia o Estado regular e as Schutzstaffel (conhecidas pela sigla SS), com equivalentes paralelos de quase todas as instituições estatais. Quando Trump fala em “deep state”, mal sabe ele que no Irã o termo é ainda mais apropriado.

A Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC, na sigla em inglês), conhecida em farsi como Pásdárán (“Guardiães”) é uma instituição própria, que responde diretamente ao aiatolá Ali Khamenei e tem mais de duzentos mil integrantes. Ela não responde ao presidente do Irã, que é o comandante das forças armadas; inclusive, a presidência do moderado Rouhani e os guardiães frequentemente têm desavenças.

Em 2015, por exemplo, quando o governo anunciou que não mais testaria mísseis balísticos como sinal de boa-fé durante as negociações para o acordo nuclear, a IRGC lançou um míssil menos de 24 horas depois. As forças armadas iranianas possuem um exército? A Guarda também. Uma força aérea, uma marinha? A Guarda também, embora em menor escala. Além disso, a Guarda detém o controle das forças de mísseis do país.

A IRGC tem um braço de propaganda próprio e a Força Quds; inteligência militar, ciberataques e, principalmente, coordenação e financiamento de grupos externos, como o Hezbollah libanês e os houthis iemenitas. Também controla os Basij, que possuem representação em todas as cidades iranianas, uma mistura de escotismo, religião, ala jovem partidária e milícia para controle social.   

As funções paralelas dentro do Estado ficam claras na constituição do Irã. O artigo 143 da constituição estabelece que as forças armadas são as protetoras do Estado e das fronteiras; sete artigos depois, a carta estabelece a Guarda como protetora do regime e da coesão interna. Diferente das forças armadas de um país como os EUA ou a Alemanha, que protegem o Estado e os diferentes governos, independente de partido.   

Luta pela sobrevivência

Embora a carta também pregue pela coesão e cooperação entre as instituições militares da presidência com as do aiatolá, na prática, repete-se, é um Estado dentro do Estado. E qual o ponto de chamar a atenção para a Guarda? O esfacelamento do Iraque fez com que a maioria, senão todos, integrantes do partido Ba’ath e militares de alto escalão fossem presos, perseguidos ou marginalizados.

As mesmas pessoas estiveram na origem de diversas milícias iraquianas, como dito, incluindo a gênese do que se tornaria o Daesh. E os integrantes da Guarda sabem disso. Sabem que uma queda do regime significa a morte, a prisão ou a miséria, controlando algum bando na fronteira nordeste do país, menos povoado. Mais do que lealdade ao aiatolá ou fanatismo, a Guarda lutaria pela própria sobrevivência.

E os militares dos EUA também sabem disso, por isso que poucos são favoráveis ao conflito deflagrado. Um eventual ataque excepcional contra instalações nucleares? Ok, vá lá. Agora, invadir e ocupar o Irã será tarefa muito mais árdua. A capilaridade da IRGC permeia toda a sociedade, diferentemente da Guarda Republicana de Saddam Hussein, que era uma mera divisão militar.

Por mais que John Bolton queira uma guerra com o Irã, seria mais apropriado diferenciar, abertamente, a existência de dois Irãs. O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, já faz isso em sua propaganda política. O governo iraniano de Rouhani é o mais pró-aproximação com o Ocidente das últimas décadas, baseado em uma plataforma de modernizar a economia. O tom belicista de Bolton só vai fortalecer a propaganda da Guarda Revolucionária Iraniana.   

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