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Isaias Afwerki e Abiy Ahmed
Primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed (D), recebe o presidente da Eritreia Isaias Afwerki (E) após sua chegada ao aeroporto de Gondar, para uma visita à Etiópia| Foto: EDUARDO SOTERAS/AFP

O primeiro-ministro da Etiópia Abiy Ahmed foi o laureado com o prêmio Nobel da Paz de 2019. Segundo a nota oficial do comitê, a láurea foi um reconhecimento “por seus esforços para obter a paz e a cooperação internacional, em particular por sua decisiva iniciativa para a resolução do conflito fronteiriço com a vizinha Eritreia”. Um prêmio dificilmente questionável, já que o tratado de Asmara foi uma das principais novidades internacionais do ano de 2018, encerrando décadas de conflito. Ainda assim, algumas discussões podem ser feitas, sem prejuízo do mérito do prêmio.

O Nobel da Paz é um prêmio importante para dar visibilidade à causas e questões humanitárias e ao fomento da paz entre países. Nas últimas décadas, entretanto, sofreu alguns golpes em sua imagem e prestígio. Prêmios um tanto quanto protocolares, como o de aniversário da União Europeia, e outros simplesmente questionáveis. Dois cronologicamente próximos se tornaram mais conhecidos. Primeiro, o para Al Gore em 2007, ex-vice-presidente dos EUA derrotado nas eleições de 2000, por “seus esforços para disseminar conhecimento sobre mudança climática”.

Nobel da Paz sob questionamento

O que tornou o prêmio questionável não foi a causa defendida pelo laureado, mas o momento, já que o anúncio foi contemporâneo às primárias do Partido Democrata para as eleições dos EUA de 2008. Al Gore era um possível candidato “de consenso” do partido, que estava dividido antes das primárias. Posteriormente, era um possível vice-presidente de uma candidatura Obama. Além disso, laurear um político de um partido nas vésperas de uma corrida eleitoral era questionável por si só, ainda mais quando não se tratava de uma pauta com um prazo apertado ou ligada à um fato daquele ano específico.

No ano de 2009 veio a outra celeuma, com o prêmio para Barack Obama, recém-empossado na presidência dos EUA. Não se trata de defender ou criticar Obama por suas plataformas, mas muitos fizeram uma pergunta extremamente válida naquele momento: o que ele fez para merecer? Apenas nove meses separam sua posse de seu Nobel da Paz. Foi pelo seu carisma pessoal? Por ter sido o primeiro presidente negro da História dos EUA? Segundo a nota oficial, foi pelo “novo momento” que Obama supostamente inaugurou nas relações internacionais.

Isso era claramente muito mais um wishful thinking, um desejo ingênuo. Obama acabou sendo marcado por uma das mais longas palestras de recebimento do prêmio, quase quarenta minutos, em que ele tentou discutir o conceito de “guerra justa”. O comandante das maiores forças armadas do mundo, envolvidas diretamente em três guerras naquele momento, usou mais de quarenta vezes a palavra “guerra” para receber o Nobel da Paz. Parece algo saído do roteiro de Stanley Kubrick em Dr. Strangelove. E, novamente, as acusações de uma ingerência na política interna de um país.

Para muita gente não importa que a maioria dos laureados recentes tenham recebido o prêmio por bandeiras importantíssimas de serem defendidas. Incluindo pessoas que realmente colocam a “mão na massa”. Ninguém pode acusar o médico congolês Denis Mukwege e a ativista yazidi iraquiana Nadia Murad, os laureados em 2018, de apenas ficarem numa confortável sala com ar condicionado em um belo edifício numa grande metrópole. Ele fundou um hospital na fronteira do Congo com Ruanda, onde trata milhares de mulheres vítimas de violência sexual decorrente de conflitos.

Murad, por sua vez, foi escrava sexual por meses dos fanáticos do Daesh (autointitulado Estado Islâmico), perdeu quase toda sua família e, desde então, trabalha pela recuperação das mulheres de sua comunidade, alvo de uma tentativa de genocídio. Ninguém em sã consciência questionaria o valor dessas causas e da atividade dessas pessoas.

O ano de 2019 consegue cumprir uma missão grata. Ele reúne tanto uma bandeira de importante valor, o fim de um longo conflito que envolvia um país de História riquíssima, quanto uma liderança política, não ativistas e idealistas. Talvez contribua para um resgate do prestígio abalado do prêmio.

Apenas um lado de um conflito

Outra discussão é decorrente do fato de Abiy Ahmed ter sido laureado sozinho. Afinal, não se faz a paz sem um interlocutor. A nota oficial inclusive deixa isso claro. “Quando o primeiro-ministro Abiy estendeu sua mão, o Presidente Afwerki a apertou, e ajudou a formalizar o processo de paz entre os dois países”. No caso, referência ao presidente da Eritreia, Isaias Afwerki. Habitualmente, quando um Nobel da Paz é laureado aos atores responsáveis pelo fim de um conflito, ele é partilhado por todos os envolvidos. E alguns casos desses são facilmente lembrados.

Em 1998, com o Acordo de Sexta-feira Santa, que encerrou o conflito sectário na ilha da Irlanda, David Trimble e John Hume foram laureados com o prêmio; um líder católico e outro protestante. Em 1994, no talvez mais célebre Nobel da Paz, foram laureados Shimon Peres, então chanceler de Israel, Yitzhak Rabin, então premiê israelense, e Yasser Arafat, presidente da Autoridade Nacional Palestina. Todos envolvidos nas negociações e assinatura dos Acordos de Oslo. No ano anterior, os laureados foram Frederik Willem de Klerk e Nelson Mandela, pelo fim do regime do apartheid na África do Sul.

Outro exemplo célebre é o do prêmio de 1978, quando foram laureados Muhammad Anwar el-Sadat, presidente do Egito, e Menachem Begin, premiê de Israel, pela assinatura do acordo de paz entre os dois países, a primeira vez que um país árabe normalizou suas relações com Israel.

Muitos podem argumentar que o presidente eritreu não deveria ser laureado por ser um ditador. A Eritreia é um país unipartidário e policial, frequente alvo de relatórios críticos de entidades como a Human Rights Watch. Afwerki, inclusive, é o único presidente da História do país, desde 1991, nunca passando por eleições.

São razões cabíveis. Ainda assim, difícil colocar Sadat e seu Egito como um baluarte da democracia. Menos ainda no caso da África do Sul racista e violenta de Klerk. E aqui existe um problema objetivo. Não se trata de querer um ditador laureado com um Nobel da Paz, mas um prêmio que contemple apenas um lado envolvido pode, no fim das contas, enfraquecer o próprio processo que busca laurear. Criar a impressão de que apenas um lado é necessário, ou é o mais forte, criar uma ilusão sobre o governo etíope ou até mesmo inveja no ditador eritreu. Esperemos que nada disso aconteça.

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