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Encontro entre o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar (E), e o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi (D), foi mediado pelo ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov (C)| Foto: Divulgação/Ministério das relações Exteriores da Rússia/AFP

Na última semana os ministros de relações exteriores da China e da Índia se reuniram em Moscou e discutiram as tensões fronteiriças entre as duas potências nucleares. O encontro foi paralelo à cúpula de ministros da Organização de Cooperação de Xangai e foi mediado por Sergei Lavrov, o ministro de relações exteriores da Rússia desde 2004. Essa mediação de diálogo mostra não apenas a necessidade de um olho atento ao possível conflito no Himalaia mas também os interesses e preocupações de Moscou.

Nas últimas duas semanas, chineses e indianos trocaram acusações de violações da linha de controle que serve de fronteira de fato entre os dois países. Mais grave, teriam ocorrido disparos de armas de fogo, com cada lado responsabilizando o outro. Ambos também realizaram exercícios militares no Himalaia. E, claro, necessário lembrar das dezenas de mortes em junho, após uma escaramuça entre chineses e indianos, com paus, pedras e os próprios punhos.

No último dia quatro, os ministros de defesa se reuniram em Moscou para dialogar. A situação continuou delicada e, agora, foi a vez de uma reunião entre os dois ministros de relações exteriores, que resultou em uma declaração de “cinco pontos de consenso”. Em suma: Impedir que diferenças escalem para disputas; que a tensão não interesse aos países; que ambos os lados vão cumprir todos os protocolos fronteiriços; que os diálogos da Representação Especial sobre a questão da fronteira Índia-China devem continuar; que assim que a situação for atenuada, novas medidas devem ser fortalecidas.

Pacto de Xangai

Ou seja, nada muito ambicioso, ao fim das contas, mas, ao menos, nenhum ultimato ou tom de emergência, com a reafirmação dos protocolos e mecanismos existentes. E agora com uma terceira potência envolvida, a Rússia, já que as conversas bilaterais de meses atrás, aparentemente, não funcionaram como o esperado. Moscou considera tanto a China quanto a Índia dois parceiros e aliados de primeira grandeza, vê apenas prejuízos num conflito.

Isso remete ao próprio Pacto de Xangai. O tratado de cooperação econômica e de segurança vigora desde 2003, originalmente entre China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão e Tadjiquistão. Em junho de 2017, a Índia e o Paquistão tornaram-se membros da organização. Além dos membros plenos, outros países possuem status de observadores ou de parceiros, e as cúpulas anuais servem de ferramentas de integração e de diálogo entre os países, que possuem diversas pautas em comum.

A origem do pacto está na década de 1990, com o estabelecimento de relações formais entre os países da região pós-Guerra Fria e pós-dissolução da União Soviética. Especialmente a necessidade de negociar e consolidar as novas fronteiras dos países recém-criados, um processo que também afetou as relações entre Rússia e China. Importante lembrar que, ao contrário do que o senso-comum pode apontar, soviéticos e chineses não tinham boas relações.

Tensões fronteiriças levaram ao conflito entre as duas potências socialistas e o estreitamento de relações veio apenas com a década de 1990. Desses mecanismos entre Rússia, China e as ex-repúblicas soviéticas da Ásia central nasce o Pacto de Xangai, no mesmo contexto do Tratado de Amizade entre Rússia e China, assinado em 2001 e início da “relação especial”, como definida por Vladimir Putin em 2013.

O pacto então serve para conjugar principalmente três coisas. A estabilidade fronteiriça já citada. Os interesses econômicos chineses, com obras de infraestrutura da chamada Nova Rota da Seda pela Ásia Central e na Sibéria russa, a venda de hidrocarbonetos para a China, maiores relações comerciais e o desenvolvimento de sistemas financeiros fora da hegemonia monetária dos EUA. Finalmente, a influência política e militar russa, especialmente nas ex-repúblicas soviéticas, atenuando conflitos de interesses entre russos e chineses nesse espaço.

Ordem internacional

Já as relações entre Rússia e Índia possuem um histórico muito mais amistoso. A URSS foi importante parceira do desenvolvimentismo indiano e, até hoje, a Rússia é a principal fornecedora de armas para a Índia, com diversas parcerias para desenvolvimento de novas tecnologias bélicas. Ao mesmo tempo, a Índia foi fundada nas bases do não-alinhamento, ou seja, nunca foi uma aliada incondicional dos soviéticos, colhendo frutos de relações com a Europa e com os EUA, incluindo a cooperação nuclear no final dos anos 1950 que gestou o programa nuclear indiano.

A Rússia serve, então, de ponte para a construção de melhores relações entre Índia e China nas últimas décadas. Os três países possuem diversas pautas internacionais em comum mas, especialmente, se enxergam sub-representados na ordem internacional pós-Guerra Fria, que girou em torno da ideia de uma unipolaridade dos EUA. Especialmente, a Rússia busca resgatar sua influência política e militar de outrora, a China ter maior voz nos rumos econômicos mundiais, como no FMI, e a Índia deseja ser reconhecida como potência de fato e de direito, como no Conselho de Segurança da ONU.

Essas pautas semelhantes e o crescimento econômico no início do século levou ao acrônimo BRICS, com a inclusão de Brasil e de África do Sul, que seriam países em situações semelhantes em seus continentes. Desde a queda de Dilma Rousseff o Brasil se distancia dos BRICS, e a África do Sul está em profunda crise econômica e política, restando o RIC, já que Índia, China e Rússia mantém as iniciativas tomadas em conjunto pois, novamente, as pautas em comum existem.

Lição da História

Ao mesmo tempo, existe uma contradição vibrante no seio dessa relação. Quando se estuda a Grande Guerra na escola, a Primeira Guerra Mundial, todos aprendem que a Itália “trocou de lado” no conflito. Inicialmente parte da Tríplice Aliança com os impérios alemão e austro-húngaro, a Itália declara neutralidade no início do conflito, alegando que a aliança era defensiva e que Viena que iniciou o conflito. Logo, não haveria obrigatoriedade de apoio militar por parte dos italianos.

Muitas vezes sequer essa versão resumida aprendemos, apenas que a Itália “virou a casaca”, algo que hoje é até meme de internet. A questão é mais profunda e representa talvez o maior erro da obra de Otto von Bismarck. Em suma, para não transformar nossa coluna em uma extensa aula de História. Alemães e austríacos se aproximaram após as vitórias prussianas, consolidando o Império Alemão unificado. Os motivos eram a possível ameaça comum da Rússia czarista e os laços culturais germânicos.

Alguns anos depois, Bismarck lê, corretamente, a Itália como potência em ascensão na Europa, e italianos e alemães tinham em comum a perspectiva da França como rival, seja no continente, seja na corrida colonial na África. Especialmente, uma possível revanche francesa pela perda da Alsácia-Lorena e a anexação francesa da Tunísia, que os italianos viam como potencial posse colonial e a expansão francesa foi vista como um ultraje, até uma ameaça.

Ou seja, a aliança entre alemães e austríacos fazia sentido, assim como a aliança entre alemães e italianos. O erro foi juntar essas duas relações na Tríplice Aliança, já que italianos e austríacos, embora com algumas pautas em comum, tinham um profundo conflito de interesses. Regiões do nordeste da península Itálica e da costa do Adriático estavam sob domínio de Viena, embora fossem vistas como parte do patrimônio histórico italiano, com a anexação desses territórios defendida pelos irredentistas italianos.

Territórios como o Tirol, hoje partilhado entre Itália e Áustria, a Ístria, hoje da Eslovênia, e a costa da Dalmácia, hoje parte da Croácia. Esse pensamento irredentista foi o pilar da unificação e da expansão italiana e depois se tornou parte da ideologia fascista. A Itália de Mussolini de fato ocupou tais territórios no contexto da Segunda Guerra Mundial. A Tríplice Aliança de 1882 colocou austríacos e italianos na mesma mesa, mas o problema ia além de uma desconfiança mútua e de um histórico de conflitos.

Ambas as potências desejavam a mesma coisa. E, no caso de um território, trata-se de um jogo de soma zero. Ou um país controla, ou o outro. Foi por isso que a Itália “trocou de lado”, pois a Entente ofereceu justo o que eles desejavam: territórios em posse da Áustria em troca do apoio na guerra. Bismarck deveria ter trocado um dos integrantes da aliança pela Rússia. Justiça seja feita, ele tentou, com a Liga dos Três Imperadores, entre Berlim, Viena e São Petersburgo e, posteriormente, foi abandonada pelo Kaiser Guilherme II, que via suas relações pessoais com seu primo Nicolau II como suficientes.

Tarefa de Lavrov

Isso não se trata de mera digressão histórica, mas de aprender com eventos anteriores. Sergei Lavrov é um grande estudioso de História e sabe o valor disso. Também sabe que, hoje, ele precisa equilibrar uma situação parecida com a enfrentada por Bismarck. As relações entre a Rússia e a China fazem sentido, assim como as entre Rússia e Índia. O problema está no triângulo, já que indianos e chineses possuem diferenças territoriais que tem aumentado de temperatura, uma contradição de interesses que se sobrepõe.

Não apenas os territórios já explicados aqui em nosso espaço em duas ocasiões, mas também profundas divergências e rivalidades em relação ao Paquistão, inimigo histórico da Índia e hoje com profunda presença chinesa. O não-alinhamento histórico indiano permite ao país, novamente, colher boas relações com outras potências, com diferentes governos. Obama declarou que achava justa a entrada da Índia no Conselho de Segurança da ONU, e Trump realizou intensa visita recente à Índia. Os indianos compram bilhões em armas russas, mas também compram caças franceses, submarinos alemães e helicópteros dos EUA, além de ter uma forte indústria militar local.

Mais recentemente, o governo indiano anunciou que expandirá seus esforços no desenvolvimento de tecnologias próprias da rede 5G, buscando não apenas autonomia, mas também neutralidade na disputa entre Washington e Pequim pela primazia tecnológica e expansão de infraestrutura. Resta ver se Lavrov e a Rússia vão conseguir manter essa relação nos eixos ou se alguma tolice num posto fronteiriço vai ameaçar as relações entre os três gigantes.

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