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Ditador chileno Augusto Pinochet| Foto: Reprodução/Biblioteca del Congreso Nacional de Chile

O legado mais longevo de Pinochet chega perto de seus últimos dias, já que os chilenos elegeram seus representantes na convenção constituinte que elaborará um novo texto fundamental para seu país. No pleito, que será destrinchado, o único bloco da direita chilena foi o mais votado, numa vitória de Pirro; na soma total, a direita terá participação relativamente tímida. Junte-se ao simbolismo da eleição para a prefeitura de Santiago e o final de semana possivelmente marca um ponto de transição da História do Chile.

É importante deixar claro um ponto de largada. Independente de preferências ideológicas ou de pautas que qualquer indivíduo defenda, a atual constituição chilena é fruto de um período autoritário. Possui, antes de tudo, um vício de origem, fruto da árvore envenenada que foi uma ditadura que matou e torturou milhares de pessoas. Não é um produto de cidadãos livres eleitos por seus pares, mas elaborada de cima para baixo e aprovada via um “referendo” controlado pela ditadura, em 1980.

O debate não é livre comércio ou protecionismo, ou o tamanho do Estado de bem-estar social, nada disso. O debate é legitimidade e representatividade democrática, coisa que a atual constituição chilena não tem. Uma discussão que, diga-se, não é nova em nossos quase vizinhos, não é restrita aos protestos recentes ou aos protestos de 2011. No mínimo, remete ao Mochilazo de 2011. Ao ponto em que 78,28% dos 51% dos eleitores que compareceram no plebiscito de outubro de 2020 pediram por uma nova constituição.

Constituinte

A participação eleitoral relativamente baixa do plebiscito se agravou na eleição para a convenção. Apenas 41,35% do eleitorado compareceu. Desde 2009, o comparecimento eleitoral chileno vêm caindo, ficando na casa dos 46% a 50%. O baixo comparecimento favoreceu os candidatos independentes, habitualmente reformistas moderados e não alinhados com nenhum dos blocos partidários tradicionais, além de representantes indígenas, com 17 dos 155 assentos reservados para os originários.

Desses 17, sete foram para os mapuche, dois para os aimará e os povos diaguita, quechua, atacameño, colla, chango, rapa nui, kawésqar, e yaghan tiveram um representante cada. Tal distribuição foi feita baseada no censo populacional. O mesmo censo foi utilizado para distribuir as 138 cadeiras gerais em 28 regiões constituintes, cada uma com entre três e oito representantes. A paridade de candidaturas entre homens e mulheres também foi estabelecida e, ao final, foram eleitas 81 mulheres e 74 homens.

E a divisão entre linhas partidárias e ideológicas? A coalizão Chile Vamos, de direita e centro-direita, ficou com 19,66% dos votos e 37 cadeiras. Tal coalizão exclui o pinochetista Partido Republicano, importante frisar. Em segundo lugar, a coalizão Apruebo Dignidad, formada pelo Partido Comunista e por outros partidos de esquerda e verdes, com 17,92% dos votos e 28 assentos. Em terceiro, a Lista del Pueblo, de candidatos independentes mais à esquerda, com 15,07% dos votos e 25 assentos.

Falar em uma coalizão de independentes soa contraditório, mas a aliança eleitoral serviu para superar os pisos de barreira, com os candidatos sem integrarem formalmente partidos políticos. Em quarto, a Lista del Apruebo, de centro-esquerda, sucessora da Concertación, com também 25 cadeiras, em quinto a lista Independientes No Neutrales, de candidatos independentes mais à direita, com onze assentos. Outros doze independentes, mais os representantes indígenas, fecham a convenção constituinte.

O que esses números significam? Primordialmente, que a direita não conseguirá um poder de veto automático na constituinte. Caso um terço dos representantes rejeite uma proposta, ela não entra no texto constitucional. O “número mágico”, então, é o de 52 representantes. Mesmo somando o Chile Vamos com os Independientes No Neutrales, ainda faltariam quatro votos, que precisarão ser barganhados com outros independentes ou com representantes de pautas indígenas.

Em um cenário hipotético, lideranças indígenas podem exigir maior autonomia em troca de votarem contra maior flexibilização do aborto de gestação, uma das principais pautas da direita chilena. Outro tema importante e que renderá muitos debates é o do ensino superior, seu financiamento e sua eventual gratuidade. E o resultado trouxe a certeza de que uma das principais bandeiras herdadas do Pinochetismo, o sistema privado de pensões, chegará ao fim e será reformado, sem que o bloco da direita possa fazer muita coisa.

Recado aos grandes partidos

Outro significado desses números é a derrota esmagadora de Sebastián Piñera. Eleito em 2009 como o primeiro presidente de direita do Chile democrático pós-Pinochet. Começou sua trajetória com popularidade em alta, que subiu ainda mais com os esforços de seu governo para o resgate dos 33 mineradores presos debaixo do solo. Ao fim de seu primeiro mandato, sofreu reveses e não conseguiu eleger sua sucessora. Retornou em 2017 e agora sai com a popularidade na casa dos apenas 10%.

Importante frisar, entretanto, que Piñera teve um comportamento republicano importante em algumas questões ligadas ao Pinochetismo. Puniu oficiais militares que elogiaram a ditadura e resistiu ao populismo de querer agradar os setores mais radicais da sociedade chilena. Os episódios de violência policial contra os protestos, entretanto, acabaram por minar essa imagem republicana e seu governo passou a ser associado ao abuso da violência do Estado, já que a militarização da polícia é vista como outro legado de Pinochet.

Essa derrota pode ser verificada em números. Atualmente, na Câmara dos Deputados chilena, o Chile Vamos possui 72 cadeiras, quase o dobro do que conseguiu nas eleições constituintes. Piñera recebeu os resultados afirmando que "os chilenos expressaram a necessidade de novos tipos de liderança, e é nosso dever escutá-los. (...) O resultado de hoje é um chamado à reflexão. A escolha foi democrática, e dentro da democracia se deve redigir essa nova Constituição."

E a esquerda tradicional chilena não deve se animar muito também, já que a Concertación também saiu menor. A ascensão dos independentes é um fenômeno que afeta ambas as coalizões tradicionais partidárias e, por isso, não será estranho se a convenção constituinte produzir candidatos futuros para outros pleitos. Já no cenário local, a derrota do Chile Vamos se agravou. Das quarenta capitais regionais ou cidades com mais de 150 mil habitantes, em onze delas o Chile Vamos perdeu para uma candidatura de esquerda.

Agora, apenas oito das maiores cidades chilenas estarão governadas pelo Chile Vamos. Principalmente, Santiago, capital executiva do Chile e onde reside um terço da população nacional, terá como prefeita Irací Hassler, vereadora do Partido Comunista, que derrotou o atual prefeito, Felipe Alessandri. Algo inimaginável alguns anos atrás e talvez o maior teste desse partido chileno desde a década de 1960. Ao menos por enquanto, já que Daniel Jadue é forte candidato nas eleições presidenciais de novembro.

A eleição presidencial será em meio ao processo de uma nova constituição. O novo texto fundamental começa a ser redigido em junho, previsto para durar um ano. Ao fim dos trabalhos, o texto será submetido a um novo referendo, com a população decidindo se aprova ou não o novo texto em 2022. E aí sim, o povo chileno vai poder dizer que Pinochet ficará apenas no seu devido lugar: nos livros de História, como recado profundo do caminho que não deve ser seguido.

PS: Lembro ao leitor que, caso deseje uma leitura mais aprofundada sobre o período Pinochet, aqui no nosso espaço temos a coluna Brasileiros e o mito de Pinochet, que lida especialmente com a mentira do suposto sucesso econômico fruto de sua ditadura.

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