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A picture taken on August 19, 2019 shows icebergs floating near the coast behind colourful houses in Kulusuk (aslo spelled Qulusuk), a settlement in the Sermersooq municipality located on the island of the same name on the southeastern shore of Greenland. (Photo by Jonathan NACKSTRAND / AFP)
Icebergs flutuam perto da costa em Kulusuk, uma vila da municipalidade de Sermersooq, localizada na ilha de mesmo nome, no sudeste da Groenlândia| Foto: Jonathan NACKSTRAND / AFP

A notícia de que Donald Trump deseja comprar a Groenlândia da Dinamarca despertou risos, certas reações indignadas e algumas poucas explicações. Hoje, ela sequer é uma notícia tão quente assim, eclipsada pelas notícias internacionais sobre a Amazônia. Ainda assim, mais explicações são cabíveis, já que esse é um dos temas que, volta e meia, pode ressurgir no cenário global, além de ser uma questão interessante.

Primeiro, é necessário ir além do personagem. Sim, Trump fez o anúncio ao “seu estilo” e, como quase tudo o que o mandatário dos EUA faz, despertou ou amor, ou ódio, sempre reações emocionais. O próprio Trump brincou com a situação, ao postar em suas redes sociais uma montagem de uma dourada Trump Tower no meio da paisagem groenlandesa. Existem, sim, razões para esse interesse, que não é novo.

Interesse ideológico e histórico

A primeira questão é a menos debatida, mas, curiosamente, de primeira grandeza no aparato do Estado dos EUA: os motivos ideológicos. A Groenlândia é parte do continente americano. Não costumamos pensar nisso, já que a maior ilha do mundo é de colonização escandinava e de posse dinamarquesa, culturalmente ligada ao legado dos vikings e à imagem nórdica.

Desde sua independência, os EUA possuem como uma plataforma de política externa a manutenção de uma posição favorável no continente americano, o que inclui a remoção de possíveis ameaças externas e também a diminuição, até completa eliminação, da influência europeia na América. Isso foi formalizado com a chamada Doutrina Monroe, de 1823, presente na mensagem ao Congresso do presidente James Monroe.

Ela passou a ser sintetizada no slogan “América para os americanos”, que inclusive influenciou fortemente o movimento republicano brasileiro no século XIX. O Manifesto Republicano dos liberais radicais, em 1870, abria com a frase “Somos América e queremos ser americanos”, no sentido de que um governo monárquico era alienígena ao continente, ainda mais de uma dinastia lusitana.

A ideia da doutrina Monroe, seu legado e a então falta de capacidade de sua aplicação são, por si só, um tema separado; para a questão da Groenlândia é necessário ter em mente que ela baseou diversas ações dos EUA para diminuir a presença europeia na América. Diminuir, não confrontar, o que poderia ser desastroso, ainda mais para um país cuja maior fronteira foi, por muito tempo, com o Reino Unido. Foram ações baseadas no consenso.

Os EUA, pela doutrina Monroe, reconheceram as colônias europeias existentes na América, colocando a resistência perante a expansão do que já existia, como uma tentativa de recolonização ibérica. Além disso, os país colocava-se à disposição para negócios; por exemplo, com diversas tentativas de compra de colônias europeias no Caribe, infrutíferas. Isso servia para tanto diminuir a presença europeia quanto expandir os limites dos EUA.

A substância da doutrina esteve presente mesmo antes de sua formalização. Ao contrário do Brasil, que, quando independente, herdou um gigantesco território colonial, os EUA, quando de sua formação, compunha-se das terras que iam do litoral atlântico ao rio Mississippi, confinados ao norte pelos Grandes Lagos e ao sul pela Flórida, posse hispânica. Pelos próximos 50 anos, a expansão dos EUA seria pela compra.

Em 1803 ocorre a famosa Compra da Louisiana, no governo de Thomas Jefferson, com a França vendendo uma área do tamanho da Groenlândia por algo como US$ 300 milhões em valores de hoje; apenas US$ 15 milhões então. O principal motivo da venda francesa foi para ter algum ganho com o território, temendo que ele fosse tomado à força pelos britânicos durante as guerras napoleônicas.

Em 1818 é assinado o tratado que formaliza a fronteira com o Canadá no paralelo 49; para isso, ocorrem trocas de territórios entre os EUA e os britânicos. No ano seguinte, governo de James Monroe, a Flórida e todos os outros territórios espanhóis remanescentes na América do Norte são comprados. Em 1853, após a anexação do Texas e a guerra com o México, outro território mexicano também é comprado, no Tratado de Gadsden.

As compras não ficam por aí. Em 1867 ocorre outra célebre, a compra do Alasca, anteriormente posse russa. Comprado por cerca de US$ 100 milhões em valores atuais, pouco mais que US$ 7 milhões na época, hoje a compra é considerada um ótimo negócio. Em um único ano, apenas o ouro minerado no Alasca vale US$ 1 bilhão. Na época, entretanto, o negócio foi polêmico.

Uma “caixa de gelo” extremamente cara. Era assim que a compra era chamada nos jornais, e foi aprovada no congresso por um mísero voto. O principal motivo da compra do Alasca foi justamente o ideológico. Comprar o território era eliminar uma potência europeia da América; no início do século XIX, os russos chegaram à estabelecer entrepostos comerciais na costa da Califórnia.

Interesse geopolítico e econômico

E a Rússia não vendeu também por questões econômicas, mas para mitigar o risco de perder o território pela força em caso de guerra com o Reino Unido, como quase ocorreu na década anterior da compra, na Guerra da Crimeia de 1853. Finalmente, em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, os EUA compraram as Índias Ocidentais Dinamarquesas, rebatizadas de Ilhas Virgens Americanas.

Na ocasião, a ideologia se somou à geopolítica, já que, durante a Primeira Guerra Mundial, expandir a segurança do Canal do Panamá era uma das prioridades do país. Cálculo similar é feito com a Groenlândia. Não, a Terra não é plana. Por não ser plana, o Ártico foi a principal fronteira da Guerra Fria, embora quase imperceptível quando olhamos em um mapa com os países coloridos.

O Ártico é a rota mais curta de voo entre a Rússia e os EUA. Pelo Polo Norte que viajariam os mísseis balísticos intercontinentais; pelo Alasca que bombardeios e caças se digladiariam; e pelas águas geladas da região que os submarinos soviéticos rondavam as rotas dos navios dos EUA. Tudo isso é perceptível até hoje, com a localização de sistemas de radares, bases de caças e a criação do NORAD, comando conjunto com o Canadá.

A Groenlândia possui bases dos EUA até hoje; equipamentos importantes, inclusive, não qualquer destacamento. Com uma retomada cada vez mais intensa da importância da geopolítica, não é coincidência que a Groenlândia volte aos holofotes dos desejos de Washington. Além disso, com o crescente degelo das águas árticas, rotas marítimas comercialmente viáveis se tornarão cada vez mais comuns na região.

Essa é uma política já seguida por outras potências. A China, interessada na exploração da água pura do Ártico, cada vez mais viável com os degelos, e a Rússia, a potência com maiores interesses no Ártico, já que a maior parte do seu litoral está ali. Outro motivo da disputa geopolítica pelo Ártico é que ali estão algumas das últimas grandes reservas de recursos naturais totalmente intocadas.

No exemplo do petróleo, as reservas totais do Ártico são estimadas em 90 bilhões de barris de petróleo. Isso é mais que três vezes que todo o petróleo existente nos EUA. Boa parte dessas reservas potencialmente estão em território groenlandês, incluindo suas águas. A Groenlândia também é rica em minerais que podem ser utilizados pelas indústrias farmacêuticas e bélica.

Ouro, zinco, urânio e terras raras também compõe a riqueza mineral da Groenlândia, que também possui reservas de gemas, como diamantes. Tudo isso com interesses chineses cada vez maiores, negociando com a Dinamarca para investimentos pesados na ilha. Outro motivo para um crescente interesse dos EUA: evitar que a concorrência de um aliado europeu seja substituída pela influência chinesa.

Momento ruim

Todos esses fatores explicam uma aparente “bizarrice” de Trump, que sequer é nova ou de sua autoria. Em 1868, ano seguinte à compra do Alasca, o governo dos EUA elaborou uma proposta para a compra da Groenlândia e da Islândia. Em 1946, momentos iniciais da Guerra Fria, Harry Truman fez uma oferta de US$ 100 milhões, valores da época, pela estratégica Groenlândia.

O que torna a proposta de Trump mais excêntrica não é sua substância, é seu momento. A última vez em que um Estado comprou a soberania de um território de outro Estado foi quando o Paquistão, em 1958, comprou o exclave omani de Gwadar. Desde então ocorreram trocas de território pontuais, como o recente redesenho da fronteira entre Bélgica e Países Baixos, mas não uma compra.

No caso da Groenlândia, a ideia é agravada pelo fato da população local contar com autogoverno dentro da Dinamarca. Se no século XIX já soava absurdo para alguns a compra de um território com indígenas dentro dele, isso é visto de maneira bem mais radical em 2019. Como ficariam a vida, a cidadania dessas pessoas? E se uma venda fosse acordada entre Washington e Copenhague, mas barrada no parlamento da Groenlândia?

A ideia da população local, inclusive, foi expressa pelo seu governo: queremos parceiros para explorarmos nossas riquezas, não donos para explorá-las em nosso lugar. O parlamento local é dominado pelos partidos que defendem cada vez mais autonomia. Uma independência total não é plausível no curto prazo, já que a ilha é deficitária. Ainda assim, não foi uma proposta muito bem recebida ou em um bom momento.

Tudo isso tornou ainda mais criticável a decisão de Trump de cancelar uma visita ao país nórdico após a cúpula do G7. Sob a justificativa de agradecer a postura direta da premiê dinamarquesa e evitar “perda de tempo”, Trump esqueceu que o convite partiu da rainha do país, não do governo, gerando imensa repercussão negativa. Os interesses na Groenlândia não podem servir para estremecer as relações com um aliado da Otan.

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