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A primeira-ministra Theresa May faz um pronunciamento após vencer o voto de confiança, em Londres, 12 de dezembro. Foto: Oli SCARFF / AFP
A primeira-ministra Theresa May faz um pronunciamento após vencer o voto de confiança, em Londres, 12 de dezembro. Foto: Oli SCARFF / AFP| Foto:

Theresa May sobreviveu no cargo de primeira-ministra do Reino Unido mais por ninguém invejar sua tarefa do que por confiarem que ela fará um bom papel. A líder do Partido Conservador, cujos integrantes são conhecidos como tories, sofreu um voto de desconfiança em sua liderança pelos integrantes do próprio partido. Caso fosse derrotada, os tories continuariam no governo, mas escolheriam outra pessoa para o cargo, dentro dos quadros conservadores; foi o que aconteceu com Margaret Thatcher em 1990, afastada pelo próprio partido e substituída por John Major, premiê até 1997.

A proporção da “vitória” de May, entretanto, entrega que não foi exatamente uma vitória. Dos 317 parlamentares conservadores, a votação secreta significou que 117, mais de um terço, não confia na premiê. Por 83 votos, May não foi removida do cargo, o que causaria uma escolha interna no partido, paralisaria o Parlamento sob uma May interina e atrasaria ainda mais as tratativas para um Brexit que seja satisfatório para alguém. O sinal de alerta é claro. May está em águas turbulentas dentro de seu próprio partido, e sequer conseguirá mobilizar seus colegas para apoiar um voto do Brexit, qualquer que seja.  

Acordo que desagrada gregos e troianos

O ditado diz que se as duas partes de uma negociação tiverem queixas sobre o trato feito, significa que foi um acordo justo. O Brexit segue um caminho parecido, com a diferença de que parecem existir apenas queixas. Os parlamentares e eleitores que eram contra a saída do Reino Unido da União Europeia continuam contra, agora com argumentos mais sólidos: a economia britânica já sofre o impacto de curto prazo, a incerteza sobre a permanência de estrangeiros consome parte da população e a demora para negociar algo que sequer era desejado mostra, segundo eles, como o plano era problemático.

Já os brexiteers, os adeptos mais radicais do rompimento, criticam o tamanho das concessões feitas pelo governo de Londres à UE. O slogan “Brexit means Brexit!”, pedindo por uma saída para valer, cindir os laços que, para eles, prendem os britânicos aos fardos fiscais, trabalhistas e ambientalistas europeus. Além dos temas espinhosos do acordo de retirada, a declaração política, um documento separado, também gerou críticas. O texto serve de mapa do caminho para o futuro das relações entre Reino Unido e UE, estabelecendo o prospecto de alguma forma de integração comercial. Para os anti-Brexit, não faz sentido mudar para retornar à esse status; para os brexiteers, é um cavalo de Troia para o futuro.

Os temas espinhosos internos e externos do Brexit são relacionados ao funcionamento do Reino Unido, uma entidade política estabelecida em 1801 e reformada desde então. Muitas vezes a terminologia fica confusa e são tomadas como sinônimos. Reino Unido é o nome do Estado. Grã-Bretanha é o nome da ilha onde estão os países constituintes da União: Inglaterra, da Escócia e de Gales, três entidades separadas unidas na mesma coroa após séculos de disputas políticas e militares. E, na ilha da Irlanda, estão a República da Irlanda, país independente e que faz parte da UE, e a Irlanda do Norte, outro país constituinte da União. Nenhuma dessas palavras nesse parágrafo é sinônimo da outra, cada uma representa algo diferente.

Somam-se as três Dependências da Coroa e os catorze territórios ultramarinos britânicos. Um desses territórios, Gibraltar, teve o direito de votar no referendo sobre o Brexit. Nessa miríade de territórios e populações, obviamente teremos interesses diversos também. Enquanto a maioria da população do Reino Unido votou pelo Brexit, a maioria da população em Gibraltar, na Escócia e na Irlanda do Norte votou contra o Brexit. Os escoceses sentem-se vítimas de um estelionato eleitoral, já que um dos argumentos contra a independência escocesa, em referendo de 2014, era justamente a de manutenção na UE.

Fronteira rígida

Não é de surpreender que, dos temas mais espinhosos, dois estejam centrados nesses territórios. Gibraltar, cuja fronteira com a Espanha pode tornar-se uma incógnita e já esteve aqui nesse espaço, e a Irlanda do Norte. Desde 1998, como parte do acordo de Sexta-feira Santa, que acabou com o conflito irlandês, a fronteira entre as duas Irlandas é aberta. Sem postos de fronteira, sem revistas, sem barreiras que cortavam cidades ao meio. Livre trânsito de pessoas, de mercadorias, de serviços e de finanças. Isso contribuiu para as duas economias e, principalmente, para a paz. Maior integração entre as comunidades significou menor grau de hostilidades.

Essa integração é tão importante que a República da Irlanda priorizou ela, e não a integração com a Europa. A Irlanda não faz parte da Área Schengen, a área de livre trânsito pelo continente europeu. Como o Reino Unido também não faz parte, isso evitava regras territoriais diferentes na mesma ilha. Com a saída do Reino Unido da UE, entretanto, teremos o fim da área comum econômica. Será necessário adotar regimes comerciais e migratórios distintos entre o Reino Unido e a Irlanda. Ou seja, uma fronteira rígida (“hard border” como tem sido chamado em inglês). Fechar a fronteira e restabelecer controle de alfândega e de migração seria um passo atrás no processo de paz irlandês.

A “solução” provisória adotada é ainda mais curiosa. Chamada de backstop, a fronteira aberta na ilha da Irlanda seria mantida, com o controle migratório e alfandegário, quando necessário, estabelecido nos portos do Mar da Irlanda, que separa a ilha da Irlanda da Grã-Bretanha. Os conservadores britânicos, os nacionalistas e os unionistas (norte-irlandeses pró-Londres) são obviamente contra, já que uma área do Estado do Reino Unido seguiria regras diferentes da do resto do país. Em última instância, faria a Irlanda do Norte gravitar cada vez mais em torno de Dublin, longe de Londres. Uma reunião irlandesa não poderia ser descartada no longo prazo. A solução é longe de ser fácil e provavelmente terá que girar em regras diferentes, ao menos por um prazo, como ocorre em Hong Kong.

Fazendo as contas

A questão irlandesa é importante também para os cálculos no Parlamento britânico, se o acordo do Brexit seria aprovado. Theresa May somente governa pois faz coalizão com o Partido Unionista Democrático, que é contra o backstop. Ou seja, não poderia contar com esses votos. Hoje, a coalizão possui 326 assentos e necessita de 320 votos; sem os dez parlamentares unionistas, May fica com 316. Além disso, cerca de um terço dos parlamentares conservadores são críticos ao acordo, como visto no voto de desconfiança na liderança. Os partidos irlandeses de oposição e o Partido Nacional Escocês não apoiarão o governo de May no voto do Brexit; são contra o Brexit desde sua origem. Então, entre os 257 parlamentares trabalhistas e os sete independentes, May teria que seduzir mais de uma centena deles.

A tarefa é quase impossível, mas existe uma brecha. Theresa May não pode ser desafiada pelos tories por um prazo de um ano. Nos esforços para se manter no cargo, May abriu mão de disputar a reeleição como primeira-ministra em 2022. Ou seja, ela possui certa liberdade para sentar com o Partido Trabalhista e seu líder, Jeremy Corbyn, e negociar. Isso, entretanto, dificilmente acontecerá. Primeiro, por falta de tato da própria May, que é acusada, com justiça, de ter virado as costas ao seu parlamento e focado suas negociações com as outras lideranças europeias. Nesse momento, por exemplo, ela está em Bruxelas, buscando melhorias nos termos do acordo, que nasce de contradições dificilmente contornáveis, como as vistas no caso irlandês.

Segundo, Jeremy Corbyn já sofre pressão para pedir um voto de desconfiança da oposição. Nesse caso, quem votaria não seriam apenas os conservadores, mas todos os 650 parlamentares; algo como um impeachment do parlamentarismo. Se os tories rebeldes mantiverem seus votos e Corbyn conseguir afastar os unionistas de May, poderia ser a pior surra desse tipo na História contemporânea do parlamentarismo inglês. O motivo de Corbyn não fazer isso ainda é que ele não deseja articular um novo governo dentro do parlamento atual, mas provocar novas eleições, que aumentariam a representação dos trabalhistas. Ele estaria, então, buscando o melhor momento para isso.

Soma-se à esse cenário caótico e de interesses contraditórios a corrida contra o tempo. Primeiro, o Parlamento, em breve, entrará em recesso de Natal e de Ano Novo; negociações do Brexit, de votos de desconfiança, qualquer tratativa sobre qualquer tema, ficarão congeladas. Principalmente, o prazo para o Brexit é o dia 29 de Março de 2019. Nesse dia, com ou sem acordo, as regras da UE não serão mais válidas para o Reino Unido. Sem acordo, ninguém sabe quais serão as regras, o que gera incertezas na economia. Grupos empresariais já fazem lobby pedindo por um acordo assim que possível.

A verdade é que o Brexit tornou-se um abacaxi espinhoso demais que ninguém quer ter que descascar. Em outras circunstâncias, May já teria sido substituída pelo seu partido, pelos trabalhistas ou por uma nova eleição. Só que ninguém quer ocupar o posto dela, pois todos sabem que, qualquer coisa que prometerem, não pode ser realizada. Não há soluções fáceis. É impossível concertar todos os interesses envolvidos sem que alguém perca, seja o Reino Unido, seja a UE, sejam os anti-Brexit, sejam os brexiteers. No horizonte está a possibilidade de interromper o Brexit como um todo, via novas eleições, um novo referendo, algo do tipo. Os conservadores dizem ser contra, mas muitos apoiariam essa opção, por baixo dos panos. Até lá, David Cameron descansa em uma confortável poltrona, com uma expressão de “eu avisei”, enquanto May torna-se o alvo dos tomates à esquerda e à direita, caracterizada como o repugnante Gollum pelo ator Andy Serkis.   

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