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O “ganhou, mas não levou” ataca novamente no parlamentarismo
| Foto: EFE/EPA/MARTIN DIVISEK

O parlamentarismo é, por definição, um sistema político baseado na criação de consensos, a partir das concessões dos diferentes atores envolvidos, formando coalizões. São incomuns sistemas parlamentaristas em que a coalizão não é uma necessidade. Além disso, pelas regras eleitorais particulares de cada país, é possível que um partido seja muito votado nacionalmente, mas esses votos não se traduzem em vitórias nos distritos. A combinação desses dois fatores faz com que, no sistema parlamentarista, ganhar a eleição não significa necessariamente “levar” a eleição.

Na República Tcheca, ou Chéquia, a população foi às urnas no último sábado. Disputando a reeleição estava Andrej Babiš, premiê desde 2017 e líder do ANO 2011 desde 2012. Ele liderou as pesquisas de maneira quase inconteste, sofrendo alguns baques em sua popularidades nos últimos meses. A Chéquia foi um dos dez países do mundo com mais mortes por habitante devido à pandemia e começou relativamente tarde sua campanha de vacinação. Além disso, Babiš, segundo homem mais rico de seu país, teve seu nome envolvido nos Pandora Papers.

O vazamento de quase doze milhões de documentos fiscais e legais revelou contas secretas mantidas em offshores por 35 lideranças políticas, como presidentes, primeiros-ministros e ministros, além de dezenas de celebridades, empresários e outras pessoas. No Brasil, os nomes de maior relevo envolvidos foram o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. A polícia tcheca prometeu investigar todos os cidadãos mencionados nos Pandora Papers, incluindo o primeiro-ministro Andrej Babiš.

O premiê, por sua vez, negou qualquer irregularidade, afirmando que sua situação fiscal é totalmente regularizada. Ele também alegou que o vazamento tinha como objetivo justamente influenciar as eleições legislativas nacionais. O rei Abdullah II da Jordânia teve retórica similar, afirmando que o vazamento tinha como objetivo “atingir a Jordânia”. A dúvida que fica é se é egocentrismo ou politicagem rasteira declarar que um vazamento desse tamanho e dessa repercussão tinha um político ou uma eleição específica como alvo, desconsiderando os trilhões, literalmente, de dólares envolvidos.

O mais votado e o que ficou em primeiro

O resultado disso tudo foi que Babiš, que chegou a flertar com os 30% dos votos nas pesquisas, ficou com 27,1%, 2,5% a menos do que na eleição anterior. Seu partido ficou com 72 cadeiras, perdendo seis. A aliança política mais votada foi a Spolu, “Juntos”, encabeçada pelo Partido Democrático Cívico, com 27,8% dos votos e 71 cadeiras. Sim, o leitor leu direito. O partido mais votado não foi o que ficou com mais cadeiras, devido às proporções distritais. Esse foi o primeiro episódio de "ganhou, mas não levou" nessa eleição, o mais votado não ficou em primeiro.

Outras duas siglas vão completar o parlamento. A PaS, formada pelo Partido Pirata e por candidatos independentes, especialmente prefeitos, lideranças políticas locais. A temática dos partidos piratas europeus ainda não apareceu aqui em nosso espaço, mas, em suma, não se tratam de piada, nem envolvem o saque de galeões espanhóis. São partidos normalmente formados em plataformas digitais, por ativistas jovens, com pautas como maior transparência governamental e maior participação popular, via tecnologia, algo que, adaptado do inglês, é chamado de e-democracia.

Alguns pequenos experimentos locais já foram feitos. Por exemplo, uma cidade de apenas alguns milhares de habitantes abolir sua câmara de representantes e votar suas pautas pela internet. Cada cidadão, munido de certificação digital, seria um voto, sem a eleição de um representante intermediário, como um vereador. A PaS ficou com 15,6% dos votos, conquistando 37 das 200 cadeiras, um crescimento de nove cadeiras. Muito desse resultado, entretanto, se deve aos prefeitos das cidades médias, enquanto os piratas concentram seus resultados, mais tímidos, em Praga.

Finalmente, o partido Liberdade e Democracia Direta (SPD) ficou com 9,6% dos votos e vinte cadeiras, perdendo duas. Ideologicamente falando, o parlamento tcheco será de centro, com o PaS, e de direita, com as outras três siglas possuindo muitas semelhanças na economia e no conservadorismo social. As diferenças são que o ANO 2011 é personalista em torno de Babiš e o relacionamento com a União Europeia. Dos três, o SPD é o mais radical, contra a UE, a participação na OTAN e defendendo restrições mais rígidas contra a presença de imigrantes no país.

A “ironia” é que o líder do SPD se chama Tomio Okamura, um nome que não desperta uma ideia de tradicionalismo tcheco. O empresário nasceu e cresceu no Japão, terra de seu pai, enquanto sua mãe é tcheca, de nome Helena Holíková. Apenas uma anedota, sem julgamento de valor. Retornando ao parlamento, os dois principais partidos de esquerda da Chéquia ficaram de fora. Os social-democratas conquistaram 4,65% dos votos, enquanto os comunistas levaram 3,60%. Ambos ficaram abaixo do piso eleitoral de 5%, e perderam as quinze cadeiras que cada um possuía.

Comunistas e formação de governo

Será a primeira vez desde 1945 que um parlamento tcheco não terá a presença do partido comunista local, seja sua encarnação atual, fundada em 1990, seja sua versão original, fundado em 1921 e criminalizado durante a ocupação nazista. Curiosamente, se social-democratas e comunistas tivessem criado uma aliança eleitoral, teriam entrado no parlamento, já que, embora o piso para alianças seja de 8%, a soma dos votos seria suficiente. O governo tcheco sairá, então, de um parlamento relativamente similar e pouco fragmentado, com dois partidos maiores e duas bancadas menores.

Temos o segundo episódio de "ganhou, mas não levou" dessas eleições. O ANO 2011, do atual premiê, precisa ou formar uma grande coalizão, “meio a meio” com o Spolu, ou do apoio dos piratas e independentes. Esses, por sua vez, já anunciaram que conversam com o Spolu e que não vão se sentar com Andrej Babiš, visto como personalista, possivelmente corrupto e acusado de colocar as instituições do país ao seu serviço pessoal. O novo governo tcheco provavelmente será formado com a coalizão entre Spolu e os piratas e independentes, uma maioria de 108 cadeiras.

O partido mais votado não ficou em primeiro, mas o partido que ficou em primeiro não formará o governo. Coisas que só o parlamentarismo pode fornecer. Tudo, entretanto, está “congelado”. Infelizmente, o presidente Milos Zeman, de 77 anos, foi hospitalizado pouco depois das eleições. Ele estaria sob cuidados intensivos e sofre de problemas hepáticos crônicos. É dele a tarefa de nomear quem primeiro terá a chance de formar um governo. Uma função protocolar, mas, ainda assim, dele. Até a sua recuperação, a formação de um governo terá que esperar. Babiš precisará controlar a ansiedade.

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