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Militares russos patrulham o centro de Mariupol, Ucrânia, 12 de abril de 2022. Não há água, eletricidade, gás ou comunicações. Lojas, farmácias e hospitais estão fechados.
Militares russos patrulham o centro de Mariupol, Ucrânia, 12 de abril de 2022. Não há água, eletricidade, gás ou comunicações. Lojas, farmácias e hospitais estão fechados.| Foto: EFE/EPA/SERGEI ILNITSKY

Na última quinta-feira, dia 21 de abril, a Rússia afirmou ter “libertado” a cidade portuária de Mariupol, na Ucrânia. A afirmação veio em uma reunião entre o presidente Vladimir Putin e seu Ministro da Defesa, Sergei Shoigu. A reunião, televisionada e quase roteirizada, era para apresentar o relatório de atualização sobre a guerra, especialmente em relação à cidade portuária. Na reunião, Putin afirmou que seria “impraticável” tomar o último bastião de tropas ucranianas na cidade e ordenou que a região seja cercada e bloqueada, “para que nem uma mosca consiga passar”, e a ordem de Putin possui explicações.

Na prática, apesar do anúncio da “libertação”, parte da cidade ainda está sob controle ucraniano. Esses últimos defensores, inclusive, teriam declarado que não vão se render, afirmando que as imagens de mortos vistas no norte do país seriam um “aviso” da consequência da rendição. O principal local de concentração dessas forças ucranianas é a enorme siderúrgica Azovstal, uma região com cerca de dez quilômetros quadrados cheia de túneis, edifícios e galpões, um cenário urbano que, em confronto, favorece o defensor.

Vidas e “reféns”

Segundo o governo russo, cerca de dois mil combatentes ucranianos estão na região da siderúrgica, incluindo integrantes do batalhão Azov e outros grupos neonazistas. O plano russo possui, então, como primeira razão, o cerco para que esses defensores fiquem cada vez mais limitados em provisões e munições. Um ataque frontal seria custoso em vidas, e a Rússia já sofreu muitas baixas na guerra. É menos arriscado manter um eventual cerco e o constante bombardeio da área.

Para a compreensão da segunda razão da ordem de Putin, é necessário relembrar a importância da cidade. Até o início da guerra, Mariupol era o maior porto ucraniano no Mar de Azov, interno ao Mar Negro. Simbolicamente, a cidade também é local de nascimento do infame Batalhão Azov, parte importante da retórica russa de “desnazificação” da Ucrânia. A cidade fica no oblast de Donetsk, reconhecido como independente pelo governo Putin no último dia de 21 de fevereiro.

Mesmo devastada pelo conflito, a cidade cumpre um papel estratégico. A resistência ucraniana em Mariupol seria o último entrave que impede uma ligação direta entre as forças russas ao sul, na Crimeia, e as forças no leste, no Donbass. A conexão terrestre permitiria melhor trânsito de suprimentos e de forças, e a tomada de Mariupol também permitiria que todas as forças russas no leste se concentrassem na ofensiva na região do Donbass. A ordem de Putin, de manter um cerco no lugar de um ataque frontal, permite também deslocar mais forças para o restante do Donbass, tomando parte na ofensiva russa.

Finalmente, existe um terceiro motivo. Caso as forças russas consigam impor um cerco aos defensores ucranianos de Mariupol, pode usar essa situação como moeda de barganha no processo de negociação para o fim da guerra. Na prática, esses defensores poderão ser tratados como “reféns”. Um banho de sangue em uma luta até o último homem em cada esquina da cidade seria contraproducente para o processo de negociação. A livre passagem desses defensores pode ser trocada por prisioneiros, por exemplo.

Míssil Satã?

Em outra notícia indiretamente relacionada ao conflito, na última quarta-feira a Rússia testou um novo míssil balístico intercontinental. Vladimir Putin afirmou que o novo equipamento fará “os inimigos de Moscou pararem e pensarem”. Ele também destacou que o desenvolvimento e a produção do míssil foi feita inteiramente pela Rússia, sem o uso de componentes importados. Talvez uma referência ao fato de que parte da indústria bélica russa sofre com as sanções internacionais e não consegue repor as perdas russas na guerra com uma velocidade apropriada.

Muito se comentou que o lançamento seria uma demonstração de força em meio ao conflito. Sim, é parte da retórica de lembrar que a Rússia, apesar dos seus reveses militares na Ucrânia, é uma potência nuclear cuja “existência não pode ser ameaçada”. Ao mesmo tempo, o míssil já estava em desenvolvimento nos últimos anos, como parte da atualização dos sistemas de mísseis balísticos intercontinentais russos.

Também existe o fato de que, pelos tratados internacionais, esse tipo de teste é avisado com antecedência. Não existe a possibilidade de Putin, Biden, Macron, quem for, acordar de mau humor e determinar um lançamento de um míssil balístico apenas como provocação. Justamente pelo fato de que um lançamento desses causaria apreensão e o risco de uma retaliação, todo teste de míssil balístico é comunicado entre as potências.

Finalmente, é interessante contextualizar o uso do termo “Satã” para se referir ao novo míssil, termo muito utilizado na mídia dos EUA. O nome oficial do míssil é RS-28 e recebeu, na Rússia, o codinome Sarmat, referência aos Sármatas, um confederação de povos iranianos da antiguidade clássica. Eles habitavam principalmente as regiões do Cáucaso e da Ásia Central, em um pequeno exemplo da importância da Eurásia como foco geopolítico russo. Os equipamentos militares soviéticos e, posteriormente, russos, sempre receberam um nome da OTAN, com referência numérica e codinome.

Isso tem origem na Guerra Fria, quando o nome "verdadeiro" dos equipamentos não era sabido pelas autoridades ocidentais até muito tempo depois do desenvolvimento. O míssil balístico soviético R-36M, de 1974, ganhou o codinome ocidental de SS-18 Satan. No caso, SS para "Surface to Surface", inglês para “superfície a superfície”. Como o novo míssil é considerado o sucessor desse modelo antigo, ganhou o nome OTAN de "Satã 2". Ou seja, um “nome fantasia” ocidental, que não é utilizado pelos russos que o desenvolvem.

A repercussão do lançamento causou muito mais alarde, e até sensacionalismo em alguns casos, na imprensa do que em círculos de governo ou de analistas especializados. Novamente, pois já era previsto. Em contraste, a ordem de Putin sobre Mariupol, e o anúncio da “libertação” da cidade, são muito interessantes e podem ter maior impacto prático nos próximos dias do que um novo míssil balístico intercontinental, uma arma de dissuasão por excelência. Inclusive, a possibilidade dos defensores ucranianos eventualmente furarem o cerco sofrido pode ser ainda mais impactante.

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