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Cartaz de campanha do Partido da Prosperidade, do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, em Adis Abeba, 14 de junho, antes das eleições gerais do país
Cartaz de campanha do Partido da Prosperidade, do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, em Adis Abeba, 14 de junho, antes das eleições gerais do país| Foto: EFE/EPA

Desde novembro, a Etiópia enfrenta um conflito interno, entre o governo federal e forças regionais e separatistas. Mais precisamente, da região de Tigray, nome transliterado e por vezes aportuguesado como Tigré. Até o último mês de junho, as forças federais etíopes avançavam e uma vitória do governo de Addis Abeba parecia iminente. Nas últimas semanas, entretanto, as forças regionais conseguiram se recuperar e agora até declaram ameaças ao próprio governo etíope.

Primeiro é necessário entendermos as origens e razões do conflito, que são especialmente duas. A Etiópia é um Estado multiétnico, com cerca de um terço das pessoas da etnia oromo, um quarto amaras, somalis e tigrínios compreendem cerca de 6% cada, e ainda há uma dezena de outros grupos em menor número. Outra divisão é a religiosa, com dois terços de cristãos e um terço de muçulmanos, num arredondamento vulgar.

Claro que essa diversidade não implica necessariamente em conflitos e divisões, mas o histórico recente etíope acaba por contribuir por uma disputa tríplice. Os que defendem uma identidade nacional da Etiópia, acima das identidades regionais, os que buscam um Estado nacional federado, equilibrando tanto uma identidade nacional quanto as culturas regionais. Finalmente, os separatistas, que desejam a divisão do país, ou a união de sua região com outros países já existentes, como a Somália.

Ao final da Guerra Civil de 1991, o modelo federal foi adotado, para manter o Estado sem anular as nacionalidades locais. Como parte desse federalismo, a tentativa de um equilíbrio partidário entre quatro grandes partidos com representatividade étnica. Para temas nacionais, como economia ou política externa, os partidos se uniam na Frente Democrática Revolucionária Popular da Etiópia. A frente unificada tinha o partido Frente de Libertação do Povo Tigray (FLPT) como uma de suas forças mais influentes.

Partido da Prosperidade

Chega-se ao segundo motivo do conflito atual. O premiê Abiy Ahmed, laureado com o Nobel da Paz em 2019, pela normalização de relações com a Eritréia, fundou um novo partido, o Partido da Prosperidade, uma fusão de nove partidos. Segundo ele, sua intenção seria promover uma “modernização” da política etíope e uma federação que não seja baseada na etnicidade, que seria a raiz dos conflitos. Para ele, o ideal seria o fortalecimento dos direitos individuais e a inclusão de partidos políticos que não dependam das grandes etnias.

Os críticos alegam que Abiy Ahmed, na verdade, quer centralizar o poder. Retirar a autoridade da federação e dos partidos regionais e aglutinar todos no seu partido e, em longo prazo, na sua pessoa. Tanto que, das 547 cadeiras no parlamento, 512 são do Prosperidade, resultado da aglutinação dos partidos anteriores. As 35 cadeiras restantes são as da FLPT, que não aceitou fazer parte do Prosperidade, alegando a defesa dos direitos regionais e da população tigrínia. Para os partidários do primeiro-ministro, a FLPT, na verdade, deseja o separatismo ou apenas teme perder poder.

O estopim do conflito foi o adiamento das eleições gerais etíopes que deveriam ter sido disputadas em agosto de 2020. O governo de Tigray, liderado pela FLPT de Debretsion Gebremichael, manteve as eleições regionais. O partido foi o vencedor, claro, no que foi declarado como um ato ilegal pelo governo federal, que não reconheceu o governo regional e nomeou Mulu Nega como chefe do “Governo Transitório de Tigray”. Ao mesmo tempo, forças federais etíopes, com apoio da Eritreia, que faz fronteira com Tigray, iniciaram uma ofensiva para “restaurar a ordem legítima” na região.

Já no dia 28 de novembro, a capital de Tigray, Mekelle, foi tomada pelo exército federal. Os rebeldes do FLPT afirmaram que iam manter a luta e, por meses, a União Africana e as Nações Unidas tentaram mediar um acordo, rejeitado pelo governo federal. O conflito também foi marcado por diversos massacres de civis e crimes de guerra, com milhares de mortos, incluindo pessoas fugindo do conflito. Segundo as Nações Unidas, mais de quatro milhões de pessoas estão afetadas pelo conflito, lembrando que a Etiópia é um dos quinze países com maior população do mundo.

Rebeldes na ofensiva

Nos primeiros meses de 2021, o conflito ficou reduzido à escaramuças locais, além dos crimes citados. Também houve desencontro entre forças etíopes e soldados eritreus, com falta de um comando unificado e a Eritreia supostamente seguindo uma agenda própria. Ainda assim, tudo indicava um controle etíope da situação e que o fim do conflito estaria próximo. No dia 20 de junho, entretanto, as forças da FLPT iniciaram uma ofensiva. No dia 28, retomaram a capital regional. No dia 30, toda a fronteira norte da Etiópia estava na mão dos rebeldes, que exibiram cerca de sete mil prisioneiros etíopes capturados em Mekelle.

O governo etíope, rapidamente, declarou um “cessar-fogo unilateral”, envolto em afirmações de que poderia retomar a ofensiva caso desejasse. Provavelmente um discurso falso para disfarçar o vexame sofrido, ainda mais com as imagens dos sete mil soldados capturados marchando rumo ao campo de prisioneiros. Isso teria sido resultado de meses de treinamento e recondicionamento das forças tigrínias, um processo liderado pelo general Tadesse Werede Tesfay. Agora operam como guerrilhas, aproveitando o terreno montanhoso e a população revoltada com os crimes cometidos pelo exército etíope.

Ainda assim, é razoável pensar que algo mudou nesses últimos meses. Um grupo na beira da derrota não apenas retoma a ofensiva, mas agora tem a vantagem e até ameaça seus rivais de invasão? Isso pode ser explicado pela combinação de falta de comando entre Etiópia e Eritreia, mais estratégias erradas etíopes e acertos rebeldes, mas será que foi apenas isso, uma grande combinação de fatores? Ou interesses externos podem ter influenciado o conflito, com a FLPT ganhando eventuais aliados?

No início de 2018, a Etiópia rejeitou a possibilidade de arbitragem pelo Banco Mundial na disputa sobre a Represa do Renascimento Etíope, o grande projeto de geração de energia hidrelétrica no Nilo Azul. O projeto enfrenta resistência do Egito e do Sudão, que alegam que isso prejudicará o fluxo de água do Nilo em seus países, prejudicando a agricultura e também a geração de energia nesses dois países rio abaixo. Posteriormente, o governo Trump tentou diversas vezes mediar um acordo, concretizando uma declaração conjunta, mas sem um acordo final.

Seria do interesse sudanês e do interesse egípcio eventualmente apoiar os rebeldes da FLPT. Isso não é uma afirmação e nem uma denúncia, é apenas colocar uma possibilidade realista na mesa. Consultores militares, treinamento, armamento, cooperação de inteligência, são muitas possibilidades. Ocorreram combates em território sudanês e, desde a derrubada do ditador Omar al-Bashir e sua cúpula militar, diversos militares sudaneses se viram “disponíveis” no mercado.

Se trata-se de um romântico exemplo de guerrilheiros lutando sozinhos contra um inimigo visto como invasor ou mais um pragmático e frio caso de países apoiando os inimigos de seus rivais, não sabemos ainda. Os eventos podem também ser vistos com a perspectiva de ser um governo legítimo e nacional tentando sufocar uma rebelião interna. Isso varia ao gosto do freguês, embora heróis e mocinhos não sejam algo do mundo real. O fato é que, de quase derrotados, os rebeldes de Tigray desfilaram sete mil prisioneiros etíopes para o mundo ver, causando constrangimento e dor de cabeça para Abiy Ahmed, que, sob o risco de parecer fraco, precisa decidir logo se vai negociar ou retomar a ofensiva.

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