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Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, ao centro| Foto: Sam Yeh / AFP

A atual pandemia do novo coronavírus colocou algumas discussões no centro das atenções. Uma delas é o status internacional da República da China, mais conhecida como Taiwan. Pelo seu limitado reconhecimento, o de fato país insular não é membro da Organização das Nações Unidas. Consequentemente, não é membro pleno da Organização Mundial da Saúde, o que teria impacto na coordenação dos esforços para combate ao novo coronavírus, tanto regional quanto global, daí o debate atual.

Essa discussão ficou marcada por uma vexaminosa entrevista que viralizou na internet. O médico epidemiologista canadense Bruce Aylward, integrante da primeira missão da OMS sobre o novo coronavírus, falava com a jornalista Yvonne Tong da Radio Television Hong Kong, a emissora pública de Hong Kong, criada aos moldes da britânica BBC. A repórter perguntou sobre o status de Taiwan na OMS e como organização considerava a entrada de Taiwan, depois que Taipé acusou a China de vetar sua participação.

O médico se fez de surdo. Literalmente. A repórter insistiu. Ele disse que não entendeu e culpou problemas de conexão. A repórter repetiu a pergunta e ele simplesmente desligou a chamada. Ela ligou novamente, fez a pergunta pela terceira vez e ele respondeu que “já discutimos sobre a China” e se despediu. No mínimo dos mínimos, uma gritante falta de treinamento de comunicação. Já era tarde, o vídeo viralizou, o perfil do médico foi retirado do site da OMS e ele foi colocado na geladeira.

Técnicos e políticos

O comunicado de resposta da organização, de 29 de março, entretanto, trouxe algo importante para uma coluna de política internacional. Grafa que “algumas pessoas estão confundindo o mandato técnico global de saúde pública da OMS, com o mandato dos Estados para determinar a participação na OMS”. Em outras palavras, os profissionais de saúde da OMS são uma coisa, as disputas políticas entre os Estados nacionais é outra. E essa é uma distinção importantíssima.

Dois fatos são essenciais para compreender toda essa crise entre Taiwan e a OMS, os dois já abordados aqui em textos anteriores, para o leitor que quiser uma leitura mais específica. Em um texto de agosto de 2018 é explicado que não existe “a ONU”, como uma organização onipotente, autônoma, com autoridade para violar unilateralmente as soberanias nacionais, ao contrário do que algumas teorias da conspiração pregam. E o mesmíssimo parâmetro jurídico ampara a OMS.

Outro texto, de janeiro desse ano, explica o minguante reconhecimento internacional de Taiwan. Existem duas repúblicas chinesas. A República Popular da China, continental, com capital em Pequim, e a República da China, insular, com capital em Taipé. E ambas as repúblicas adotam a política de “Uma só China”. Isso significa que ter relações com uma das Chinas significa não reconhecer a outra. No caso dos países que formalizam relações com Pequim, implica reconhecer Taiwan como uma “província da China”.

Isso permite contornar o problema da falta de representação com escritórios comerciais. Ou seja, não há uma relação política plena, mas negócios, serviços consulares e fóruns bilaterais podem ser realizados. Hoje são apenas quinze Estados que reconhecem Taiwan, incluindo a Santa Sé. O de maior peso econômico é o Paraguai, que mantém profundos laços comerciais com a ilha. A imensa maioria do mundo opta por Pequim, por razões quase óbvias: economia, demografia e potência militar.

Em 1971 o governo dos EUA "trocou" de representação, reconhecendo a China socialista, abrindo caminho para a moção que substituiu Taiwan pela China continental na representação da ONU, incluindo o Conselho de Segurança. E chega-se na gênese da atual crise. O funcionamento e os problemas da OMS serão temas de uma coluna futura. O ponto aqui, em suma, é: nesse momento, os países que integram a OMS são os países que integram a ONU. E Taiwan não é um Estado-membro da ONU.

OMS como arena

Hoje, a OMS tornou-se mais um palco da disputa internacional política entre os EUA e a China, tanto abordada nesse espaço. E esse é um problema duplo, pois a OMS sofre nos seus bastidores por causa dessa disputa e ela que sofre em sua imagem, já que “a OMS” fez ou deixou de fazer isso e aquilo, sem os nomes corretos. No caso, seus Estados-membro. Qual a situação atual, então, e como isso pode se desenhar num futuro próximo? Primeiro, Taiwan não é membro pleno, mas possui diálogo com a organização.

Taiwan é um dos quinze não-Estados ou Estados não-membros que faz parte da International Health Regulations (IHR), criada na Conferência Sanitária Internacional em 1851. Sim, a data está correta, foi com as ferrovias e os vapores que o mundo começou a perceber o risco de uma pandemia global, que veio com a Segunda Revolução Industrial e a pandemia de influenza de 1918, popularmente chamada de Gripe Espanhola. O problema é que isso é uma participação mais frágil, menos ativa.

Uma solução seria um acordo pontual entre Pequim e Taipé que, em nome de interesses de saúde pública, a China continental autorize Taiwan como “membro observador”. Isso já aconteceu entre 2008 e 2016, quando a ilha fez parte como “Taipé Chinesa”, o mesmo nome utilizado na Olimpíada. Não teria o mesmo status de um Estado-membro, mas certamente haveria melhora na comunicação. Em 2016 um partido que Pequim antagoniza chegou ao poder em Taiwan, e o acordo foi encerrado.

Possibilidades

Um eventual acordo poderia até envolver uma comissão conjunta. Por idealismo? Não, pois a cooperação faz um vigiar o outro, diminuindo a tensão e evitando ainda mais intrigas políticas. Essa é a única solução que pode ser merecedora do termo e, ainda assim, é improvável. Outros cenários seria uma extremamente improvável normalização das relações entre China e Taiwan ou uma declaração de independência de Taiwan, que faria com que a OMS fosse das últimas preocupações, dado o potencial de conflito.

E mesmo uma independência não resolveria o problema, já que a China poderia continuar barrando a ascensão de Taiwan à ONU, assim como a Rússia faz com o Kosovo em nome de suas relações com a Sérvia. Retomando, se existe apenas uma solução, qual o caminho para chegar-se nela? Um seria pelas relações bilaterais entre Pequim e Taipé, mas, novamente, elas estão azedas. O mais promissor seria por mediação de Estados terceiros, em nome do interesse da saúde pública global e de melhoria de imagem.

Uma possibilidade seria a Coreia do Sul, que possui ótimas relações com Taiwan e, sob Moon Jae-in, cultivou relações amigáveis com a China. Outras possibilidades seriam países fora do eixo regional ou historicamente neutros, como a Suíça ou a Finlândia. Um caminho, entretanto, precisa ser evitado. A linha entre Pequim e Washington. Aparências são importantes na queda de braço internacional e nenhum dos dois governos quer chegar sequer perto da imagem de que está fazendo uma concessão ao outro.

Mesmo na Guerra Fria, a OMS foi em vários aspectos “preservada” da disputa internacional; foi com a cooperação entre países ocidentais e a União Soviética que a varíola foi erradicada. A “nova Guerra Fria”, como alguns chamam o atual estágio das relações entre China e EUA, é talvez o mais importante motivo para se pensar que uma melhoria da governança da OMS é improvável num futuro próximo. Trump já cortou verbas da organização, para críticas de seus aliados.

Do outro lado, a China aumentou sua contribuição, buscando ganhar na guerra de imagem. A OMS fica com sua reputação arranhada, servindo de escudo para as potências. Cirúrgico foi o premiê japonês Abe Shinzo: o funcionamento da OMS precisa ser melhorado frente ao desafio inédito que o mundo do pós-guerra encara, mas agora é hora de pensar em como lidar com a pandemia. As discussões políticas entre os Estados deve ficar para depois. Ou entre Estados e uma província rebelde, corrigiria Pequim.

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