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Trump, Israel e palestinos
O presidente dos EUA, Donald Trump, e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, participam do anúncio do plano de paz de Trump no Oriente Médio| Foto: MANDEL NGAN/AFP

Na última semana, Donald Trump apresentou o seu tão aguardado “Acordo do Século”, um plano de paz para, de uma vez por todas, resolver a questão da Palestina e o conflito árabe-israelense. Chamado formalmente de “Paz para prosperidade: uma visão para melhorar as vidas de palestinos e de israelenses”, o documento completo possui cerca de 180 páginas e pode ser baixado livremente (muitas das páginas são de gráficos e de planilhas, o que agiliza a leitura). A principal constatação é de que o plano é natimorto.

Claro que o leitor não precisa ler todo o conteúdo, mas a coluna não vai se dedicar muito no resumo do acordo, já que isso já é feito à exaustão em uma série de veículos de mídia. O factual vai servir para pontuar a análise. E deve-se começar pelo que o acordo traz de novo e de bom. O texto é produto principalmente de Jared Kushner, genro de Donald Trump. Ainda assim, o principal ponto positivo do texto talvez seja fruto do foco de Donald Trump em questões econômicas e de negócios.

Economia

Trata-se do fato de ele ser economicamente substancioso. O texto prevê a criação de um banco de desenvolvimento que irá gerenciar cinquenta bilhões de dólares investidos em 179 projetos de infraestrutura e de negócios na Palestina, mais nove bilhões investidos no Egito, sete bilhões na Jordânia e seis bilhões no Líbano. Todos são países do entorno que possuem grandes comunidades de refugiados palestinos e seus descendentes. Os projetos são detalhados, assim como a captação dos recursos.

Isso é importante por dois motivos. Primeiro, é uma novidade. Em todas as propostas de resolução do conflito, a questão econômica ficava secundária, vaga. “Formar uma comissão”, “aumentar a cooperação”, terminologias do tipo. A proposta de Trump não, detalha o quanto seria investido, onde e como. Segundo, é essencial. Não existe paz e liberdade onde impera a pobreza e o desemprego. Isso serve para a Palestina, para a Europa do pós-guerra, para onde for.

A citação é proposital, já que Jared Kushner se disse inspirado no Plano Marshall, que contribuiu na reconstrução da Europa ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Então, esse foco econômico, por mais que tenha sido chamado de cínico ou de uma tentativa de “comprar” os palestinos, é extremamente válido e necessário. Infelizmente, os pontos positivos acabam por aí. O restante do texto pode até ser debatido, mas é um compilado de velhas ideias ou de novas demandas israelenses.

O texto busca, em todos os momentos, evocar a ideia de um acordo pragmático, realista. Nesse sentido, ele é quase contraditório, já que, realisticamente, ele não será adotado. E não apenas por motivos palestinos, como o leitor poderá ver. Primeiro, o texto estica ao máximo possível o conceito de soberania. Fala em direito de autogoverno palestino, na criação de um Estado palestino, mas algo que poderia ser chamado assim apenas na nomenclatura, não na concretude.

Suposto pragmatismo

Em nome das pautas de segurança de Israel, o “Estado” palestino da proposta seria totalmente desmilitarizado por exigência externa; que praticamente não tenha controle sobre suas fronteiras, exceto a de Gaza com o Egito; não tenha controle sobre seu espaço aéreo nem sobre sua zona econômica exclusiva marítima; que não possa integrar uma organização internacional sem autorização de outro país; que não possa fazer solicitações na Interpol ou no Tribunal Penal Internacional sem autorização de outro país. O leitor se pergunta: isso seria um Estado soberano? Você aceitaria isso para o Brasil?

Além disso, o reconhecimento do Estado palestino somente ocorreria após o cumprimento de uma série de exigências. Uma delas é específica: o desmonte do Hamas, grupo extremista que não reconhece a existência de Israel; o que não explica generalizar os milhões de palestinos como “terroristas”. Outras são mais gerais. Um sistema de governo constitucional, baseado no Estado de Direito, com liberdade de imprensa, eleições livres e justas, respeito aos direitos humanos de seus cidadãos, proteção à liberdade religiosa, devido processo legal e um judiciário independente.

Todos critérios sãos e razoáveis. Em um mundo ideal todos os Estados se encaixariam nesses critérios. Na situação presente, entretanto, qual a autoridade moral em se exigir isso de um país enquanto o primeiro país visitado por Donald Trump foi a Arábia Saudita, um país que não cumpre nenhum desses critérios? Nenhum. Assim como Bahrein, Emirados Árabes Unidos, dentre outros. Novamente, todos os critérios são extremamente válidos, o que se pode questionar é o caráter de exigência.

Outro ponto já discutido anteriormente, desde a década de 1990, e em que a nova proposta não inova é o dos refugiados palestinos. Basicamente, a proposta consagra a postura israelense de ser contra o chamado direito de retorno, em que os cerca de dois milhões e meio de palestinos registrados como refugiados nos países vizinhos teriam o direito de retornar ao seu local de origem; o número inclui desde deslocados nos conflitos aos seus descendentes.

A nova proposta não reconhece essa possibilidade e propõe um fundo de compensação, que financiaria o realocamento dessas pessoas, que poderiam ficar no país onde estão, irem para um terceiro país ou ser acolhidas por países da Organização da Cooperação Islâmica. Essa terminologia beira o surreal, já que, primeiro, 20% dos palestinos são cristãos; segundo, boa parte dos países da OCI não são árabes, tampouco da região do Oriente Médio. Tratar a OCI como “sinônimo” disso é de atroz ignorância.

Se ainda fosse a Liga Árabe faria algum sentido; foi na Liga Árabe onde, durante muito tempo, os palestinos tiveram maior voz e cooperação internacional, incluindo a conhecida e infame Declaração de Cartum. De qualquer maneira, é risível pensar no assentamento de palestinos na Costa do Marfim, na Guiana ou em Bangladesh. E novamente se faz presente o “realismo contraditório”. O próprio texto fala que os países não podem ser obrigados a receber essas pessoas, que seriam voluntários.

O mesmo texto lembra que os refugiados palestinos foram, por décadas, usados como peões pelos países árabes no tabuleiro do Oriente Médio, lembra de quando eles foram expulsos do Kuwait, menciona que, na Jordânia e no Líbano, muitos deles ainda vivem em campos, sob condições degradantes, muitas vezes sem cidadania, como pessoas de segunda classe. Qual o sentido de lembrar e frisar todas essas verdades para, ao fim, propor um mecanismo similar de reassentamento?

Territórios

Proposta que, repete-se, já foi recusada pela Autoridade Nacional Palestina, que vê o direito de retorno como inegociável. Ao mesmo tempo ele é considerado inaceitável por Israel, que vê nisso um perigo demográfico que transformaria os judeus em minoria no seu próprio Estado. Outro aspecto demográfico da proposta é a troca de territórios. No plano, Israel anexaria boas partes da Cisjordânia. A maioria dos países que apoia o estabelecimento de um Estado palestino o faz baseado nas fronteiras de 1967.

Nessas fronteiras, a Cisjordânia seria dos palestinos. Como compensação pela anexação israelense, os palestinos receberiam outros territórios; ainda assim, de menor tamanho e menos do que em propostas anteriores. Os palestinos receberiam principalmente dois pedaços. Um no meio do deserto do Negev, ligado por um corredor à faixa de Gaza, e outro na região chamada de Triângulo, em Israel, formada por cidades cuja maioria da população se identifica como palestina.

O Triângulo é totalmente negociável pelas lideranças israelenses por causa desse componente demográfico; e, sinceramente, também eleitoral. Ainda assim, existe uma questão essencial de se ter em mente: certos pontos são considerados inegociáveis por ambos os lados. Não será uma proposta súbita como essa, redigida pelo genro do presidente dos EUA milhares de quilômetros distante, sem um processo de construção de confiança, que vai conseguir essa solução.

O que leva ao próximo aspecto que faz dessa proposta natimorta. Ela é totalmente unilateral. É absolutamente legítimo que Israel tenha suas doutrinas de segurança e as defenda na mesa de negociação. Daí um terceiro país, que deveria ser um mediador, contemplá-las completamente, vai um pélago de distância. E sem consultar ou negociar com o outro lado. No caso, com os palestinos. O líder da ANP, Mahmoud Abbas, teria sido procurado indiretamente por Trump.

Unilateral

Sua resposta teria sido a de que ele só negociaria com Trump depois que ele reabrisse o escritório da representação palestina em Washington. Existe uma frase em alguns setores israelenses que diz que os palestinos nunca perdem a oportunidade de perder a oportunidade para a paz. Não é o caso, considerando as ações de Trump perante a Palestina e sua proximidade com Netanyahu, que já não tem uma boa relação com Abbas. Não faz sentido algum achar que uma proposta será aceita por um grupo que não foi sequer consultado sobre ela. Novamente, é necessário construir confiança.

Isso não anula três problemas. Primeiro, que Mahmoud Abbas hoje é uma liderança enfraquecida. Sem grande representatividade, com pouca energia e problemas de saúde. Segundo, que não existe, hoje, uma autoridade que possa falar coletivamente pelos palestinos. A ANP manda em Ramallah, o Hamas manda em Gaza, os dois grupos tentam um acordo que não vai pra frente e nada garante que um aceite o que o outro negociar. Finalmente, existem facções que não desejam o que chamamos no Brasil de “paz”.

Facções tanto israelenses quanto palestinas, que defendem que todo o território deveria ser palestino ou deveria ser israelense. Podem ser por motivos religiosos, como a ideia de que Deus deu essas terras aos judeus, ou que elas fazem parte da Ummah. Podem ser por intolerância, que vê no judeu o estereótipo antissemita de ardiloso. Por questões econômicas, por traumas de sua vida, pelo legado familiar, de alguém descendente de outro alguém que tenha morrido ou sofrido alguma violência ali. Uma série de motivos.

A Jordânia

Temos um ponto positivo, os motivos pelo qual o acordo é natimorto, o uso político dos refugiados e a necessidade de novas e amplas lideranças palestinas. Tudo isso numa abordagem resumida, mas os problemas não acabam aí. O plano prevê a anexação não só dos assentamentos na Cisjordânia, mas de todo o vale do rio Jordão. Algo que não será aceito pelos palestinos por causa de um material essencial para a vida: a água. É via o Jordão que são irrigados dezenas de milhares de hectares de terra arável.

Além da água, também um recurso que guia a política israelense, a geografia do vale faz dele uma barreira estratégica para a segurança e para o uso militar. Do vale, Israel consegue uma vantagem contra qualquer invasor. Ou contra qualquer tipo de adversário, na verdade. O que desagrada a vizinha Jordânia, um dos dois países árabes com relações formais com Israel, após décadas de guerras. Hoje uma guerra entre os dois países soa improvável, mas o governo jordaniano também possui pautas de segurança.

Alguns dos mesmos setores israelenses que defendem que Israel tenha a posse de todo o território do mandato britânico da Palestina, também defendem que ambas as margens do rio Jordão seja posse israelense. Não se trata de nenhuma bobagem antissemita de conspirações mundiais ou protocolos dos sábios do Sião, mas uma ideologia política presente e também geopolítica. Existe uma canção patriótica, mais antiga que o próprio Estado de Israel, que fala das duas margens.

Na Conferência de Paz de Paris de 1919, que concluiu a Primeira Guerra Mundial, a Organização Sionista, fundada por Theodor Herzl, o patrono do Estado moderno de Israel, propôs a criação de Israel; essa proposta envolvia todo o rio Jordão. Ou seja, território que hoje é do reino da Jordânia. O Irgun, organização paramilitar que participou da criação de Israel, tinha em seu símbolo a silhueta dos mandatos britânicos da Palestina e da Transjordânia. Curiosidade: o Irgun é o ancestral do Likud, o partido de Netanyahu.

Novamente: nada indica que Israel e Jordânia entrarão em guerra amanhã. O ponto é que a Jordânia também possui suas pautas de segurança. Tanto que o país foi o mais vocal em protestar contra o plano de Trump, apesar das boas relações com Washington; os jordanianos defendem uma Palestina nas fronteiras de 1967. Lembrando que essa mesma Jordânia anexou a Cisjordânia em 1948, terra então designada para um Estado palestino. Já a faixa de Gaza, na época, foi anexada pelo Egito.

Contribui para essa posição o fato de que o rei Abdullah já não é mais uma unanimidade na Jordânia, enfrentando uma situação econômica complicada e uma crescente influência da Irmandade Muçulmana. O Egito foi cético, digamos. Sauditas e emiradenses elogiaram a “ambição” do plano. O Kuwait foi outro país árabe que criticou a apresentação de Trump. Todos eles citaram a questão de Jerusalém; pela proposta, ela seria indivisível e capital de Israel, como os EUA já reconhecem.

Outro problema, não tão citado por causa da guerra civil síria, é que o plano consolida as colinas de Golã como posse israelense. Isso já foi reconhecido pelos EUA e Netanyahu já declarou que não negocia Golã. Pelo Direito Internacional, entretanto, as colinas de Golã são da Síria. O tema já foi tratado aqui nesse espaço e também é essencial para Israel, por questões de segurança e também para garantia do acesso à água, já que ali nasce o Jordão e o mar da Galileia.

Eleições

Se é um acordo natimorto, o que o explica? Os mais otimistas podem achar que é uma oferta inicial, um ponto de partida. Não foi assim que ele foi vendido. Ele foi apresentado como “deal of the century” e algo que os palestinos “deveriam” aceitar, falando até em “última chance”. Os mais pessimistas apontam que é uma proposta que, sob a justificativa do pragmatismo, consagra o poder bruto acima do Direito Internacional. Já os mais desconfiados não veem garantias de que o acordo será implementado, mesmo se for aceito.

Ele seria uma maneira de ganhar tempo, consagrar o que Israel já consolidou, manter a segurança israelense que, de pouco em pouco, beliscaria mais assentamentos, mais territórios. Independente dessas três visões, existe o momento atual, que é o que de fato explica essa proposta ser feita agora. É ano de eleição nos EUA e, com a proposta, Trump agrada parte de seu eleitorado, como os neopentecostais, que enxergam implicações teológicas e escatológicas na relação com o Estado de Israel; fenômeno similar também ocorre no Brasil atual.

A questão Israel e Palestina é um assunto que fascina e chama atenção de noticiários pelo mundo, embora nos últimos anos eclipsada pela guerra síria e pela disputa entre sauditas e iranianos. Ainda assim, gera holofotes suficientes para Trump considerar a proposta como uma maneira de se mostrar ativo no Oriente Médio. É em Israel em que essa proposta pode gerar mais benefícios políticos. Netanyahu, mesmo chefiando um governo interino de minoria, já disse que votará em breve a anexação do Jordão.

É um trunfo muito bem vindo quando falta um mês para as eleições, a terceira em um ano. Detalhe é que Benny Gantz, o rival de Netanyahu, também foi recebido em Washington e também elogiou a proposta. Além da véspera da eleição, Netanyahu foi formalmente indiciado em três acusações. Isso acontece depois de ele mesmo retirar seu pedido por imunidade no Knesset, ao constatar que não teria votos suficientes e seria derrotado, apenas fornecendo palanque aos seus opositores.

No fim das contas, a proposta de Trump servirá de argumento para críticos e defensores, servirá como fornecimento de ideias para eventuais conversas futuras, mas não será aceita. Não entrará em vigor. Seu timing é praticamente eleitoreiro. E, claro, todas essas críticas não significam que a culpa da situação atual é de Trump, que ele é o responsável, nada disso. Ele está fazendo o que costuma fazer, uma mistura de showman com exercício de poder político e finalidades particulares.

Também não se aplicam os clichês de conflitos eternos da região, de que todos ali costumam se matar, algo do tipo. Estamos falando dos nacionalismos do século XIX, do desmembramento de um dos mais extensos impérios da História, da interferência europeia criando linhas em mapas, do abandono britânico aos seus aliados árabes e judeus, tanto em 1919 quanto em 1947, do legado dos crimes do Holocausto, uma partilha feita de maneira tecnocrata e distante, interesses particulares de governantes, uma infinidade de questões. Essa proposta é só mais um capítulo.

Conteúdo editado por:Isabella Mayer de Moura
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