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Um navio da Marinha Real Britânica (à esquerda) em patrulha perto do supertanque Grace 1, suspeito de transportar petróleo cru para a Síria, violando sanções da UE, após ter sido detido na costa de Gibraltar, 4 de julho
Um navio da Marinha Real Britânica (à esquerda) em patrulha perto do supertanque Grace 1, suspeito de transportar petróleo cru para a Síria, violando sanções da UE, após ter sido detido na costa de Gibraltar, 4 de julho| Foto: JORGE GUERRERO / AFP

O emaranhado de relações no Oriente Médio é muitas vezes mencionado, porém, poucas vezes explicado. Neste e em alguns textos próximos essa coluna vai continuar o “guia rápido” para compreensão dos atores envolvidos na atual guerra fria entre Arábia Saudita e Irã na região. Um choque geopolítico, ideológico e religioso que está ligado à diversos conflitos locais, com interesses de grandes potências e no centro das atenções mundiais.

A primeira e a segunda parte, sobre sauditas e iranianos, respectivamente, já foram publicadas. E não é só pelo potencial destrutivo e mortal do conflito, mas pela relação com o petróleo. Flutuações de preço e o próprio uso do óleo como uma ferramenta geopolítica podem fazer com que um espirro no Golfo Pérsico cause uma gripe do outro lado do globo. Os choques do petróleo da década de 1970 são a lembrança mais fácil dessa questão.

Então, quem é quem nesse grande tabuleiro médio-oriental? Quais os atores, quais seus interesses? E esse é um ponto importantíssimo de se lembrar: na geopolítica e na política internacional existem interesses. Claro, tais interesses podem ser contraditórios com os discursos que um governo adota, ou entrarem em conflito com os escrúpulos da consciência, já diria Jarbas Passarinho, mas ainda são interesses.

Os interessados

Estabelecido que temos duas coalizões antagônicas. De um lado, sauditas e seus agentes, mais o Paquistão e os países do Conselho de Cooperação do Golfo, contando com o apoio dos EUA. Do outro lado, o Irã, também com seus agentes, mais Iraque e Síria, além do apoio da Rússia. A guerra fria das duas potências regionais, entretanto, afeta toda a região, e até atores extra-regionais. Cada um, novamente, com seus interesses.

Tais interesses podem até aproximar alguns atores de um dos dois protagonistas da disputa, mas não ao ponto de poder se classificar a relação como uma aliança. Muitas vezes trata-se de um interesse comercial, ou de uma disputa interna sobre qual lado apoiar. O importante de se ter em mente é que não se trata de uma briga entre duas facções perdidas num rincão do mundo, mas uma relação que envolve vários outros peso-pesado.

China

O interesse chinês na região é econômico. Ponto. O Oriente Médio é a ponte terrestre mais curta entre a vastidão do oeste chinês e o norte da África e o Mediterrâneo. A região representa uma série de oportunidades em infraestrutura terrestre e também portuária. Além disso, a China é o maior parceiro comercial tanto de sauditas quanto de iranianos. No Irã, a principal pauta de exportação chinesa é a de veículos automotores.

No caso saudita, as exportações chinesas são mais diversas, com eletrônicos e têxteis nas primeiras posições. Em ambos os casos o produto comprado pelos chineses é o óbvio: petróleo. Em suma, para os chineses, quanto mais estável e pacífica estiver a situação, melhor para os negócios. Curiosamente, um pensamentos liberais clássicos basilares: a paz é boa para os negócios e o comércio mantém a paz.

Importante lembrar que a China também vende armamentos para os dois envolvidos, incluindo os mísseis balísticos sauditas; por motivos óbvios, algo que é pouco divulgado, como quantidade e valores. Essa é também a postura chinesa perante a reconstrução da Síria; ela está de olho nas oportunidades de investimento. Existem apenas duas brechas para uma participação chinesa mais ativa.

A primeira, uma eventual demanda russa em apoio ao seu aliado Irã, como mencionado no texto anterior. A segunda seria para rechaçar alguma percepção de que os sauditas, a potência sunita, buscam intervir na questão dos uigures, a minoria túrquica sunita que habita o oeste chinês. Talvez por isso que, recentemente, Mohammed bin Salman tenha dito que apoia a “luta contra o extremismo” da China.

Europa

A Europa segue por caminho parecido ao da China. Também está interessada nas oportunidades econômicas, especialmente numa abertura do Irã após as sanções internacionais. Dizer isso soa óbvio, já que são os atores do acordo nuclear com o Irã, conhecido pela sigla em inglês JCPOA. Rouhani já obteve polpudas minutas de investimentos e de compras.

Os europeus contam com um trunfo que seus competidores não contam. A união de marcas reconhecidas sem o prejuízo da rejeição política. No mercado automotor, por exemplo. As companhias chinesas já atuam no Irã, embora marcas pouco conhecidas e com pouca atratividade. As montadoras dos EUA dificilmente entrarão no mercado iraniano num futuro próximo, além de um risco de rejeição de consumidores.

Tudo favorável para que marcas europeias bem estabelecidas e conhecidas naveguem de vento em popa. Por outro lado, em caso de conflito, a Europa tem as mãos ligeiramente atadas, vinculadas aos EUA na OTAN. Embora a Europa não queira um conflito, ela no máximo pode se manter neutra. Se for para tomar um lado, será contra o Irã, como no recente episódio de abordagem de um petroleiro iraniano por tropas britânicas.

Índia

Os interesses indianos são mais geopolíticos. Índia e Irã são parceiros no Afeganistão desde a década de 1990, apoiando os grupos que lutavam contra o Talibã, um grupo sunita financiado e apoiado pelos sauditas. Principalmente, a Índia é um dos maiores investidores na indústria de hidrocarbonetos iraniana; o Irã é o segundo maior fornecedor de petróleo para os indianos.

Ao ponto de que o mais moderno porto iraniano, o de Chabahar, foi construído com financiamento indiano, e é gerenciado por uma empresa indiana. O porto é ligado ao corredor terrestre ferroviário que conecta minas afegãs ao litoral iraniano. De Chabahar sairá o planejado gasoduto marítimo que levará gás natural iraniano direto para a Índia, com tecnologia russa.

O gasoduto possibilita que o suprimento “contorne” o Paquistão, histórico rival indiano e aliado dos sauditas. Embora Paquistão e Irã tenham relações até estáveis, ficam claros os alinhamentos em caso de um conflito maior. Isso quer dizer que a Índia é uma aliada do Irã? Nem tanto, pois um Irã mais influente e expansivo poderia, em algum momento, significar um desafio aos interesses indianos.

Além disso, a Índia possui uma boa relação com os sauditas. Fortes laços econômicos, pautas políticas similares em órgãos internacionais e uma imensa comunidade de indianos vivendo no reino de Saud; cerca de 1,4 milhão de pessoas, uma presença que remonta aos tempos do império britânico. Líderes sauditas e indianos frequentemente trocam visitas de alto nível. O que a Índia quer na região é um equilíbrio, ainda mais com o foco no Paquistão.

Para evitar excessos, um texto muito extenso (como já feito pelo autor em outras ocasiões) ou algo que termine por ficar confuso, a coluna de hoje ficará restrita interessados de fora do Oriente Médio. O próximo texto tratará dos demais interessados regionais, como Turquia e Israel. A questão aqui é desenhar quem quer o quê dessa guerra fria médio-oriental, relações que passam das dezenas de bilhões de dólares.

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