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Forças armadas dos Estados Unidos no Iraque
Forças armadas dos Estados Unidos no Iraque| Foto: JCC - IMT

O emaranhado de relações no Oriente Médio é muitas vezes mencionado, porém, poucas vezes explicado. Este e outros textos da coluna são um “guia rápido” para compreensão dos atores envolvidos na atual guerra fria entre Arábia Saudita e Irã na região. Um choque geopolítico, ideológico e religioso que está ligado à diversos conflitos locais, com interesses de grandes potências e no centro das atenções mundiais.

A primeira e a segunda parte, sobre sauditas e iranianos, respectivamente, já foram publicadas. E não é só pelo potencial destrutivo e mortal do conflito, mas pela relação com o petróleo. Flutuações de preço e o próprio uso do óleo como uma ferramenta geopolítica podem fazer com que um espirro no Golfo Pérsico cause uma gripe do outro lado do globo. Os choques do petróleo da década de 1970 são a lembrança mais fácil dessa questão.

Posteriormente, tratou-se dos interesses de outros países envolvidos, tanto da região quanto de fora da região. Na sexta e última parte dessa série de textos, cabe um olhar aos locais que são alvos desses interesses, objetos de desejo e de tensão. Seja para projetar os próprios interesses ou para deter as da potência rival. Um processo que também causa efeitos colaterais nocivos, com populações vizinhas pagando o preço da tensão.

Iraque

O caso iraquiano é central para a compreensão do conflito entre sauditas e iranianos. O Iraque era o principal candidato à rival saudita pelo predomínio no mundo árabe, porém, em um viés secular e nacionalista. Uma série de eventos, entretanto, transformou o país mesopotâmico em um campo de disputa entre os vizinhos, um coadjuvante de um entrave maior. Primeiro, a desgastante guerra Irã-Iraque, que se arrastou por oito anos, custou um milhão de vidas e não mudou absolutamente nada.

O então governo iraquiano, de Saddam Hussein, alegava que o conflito não rendeu os frutos desejados e, mais que isso, que o país agiu de acordo com os interesses sauditas e dos EUA; por isso, não se sentia obrigado a pagar as dívidas do conflito com o governo de Riade. Pressionando por uma renegociação, Saddam evocou a antiga demanda territorial iraquiana de anexar o Kuwait, já que a separação veio por interferência britânica após a Primeira Guerra Mundial; o Kuwait era parte da província otomana do Iraque.

Essa anexação permitiria ao Iraque exportar mais petróleo, diretamente com um porto no golfo. Ela foi, por óbvio, rejeitada. Saddam “trucou” e invadiu o país, irrompendo uma reação internacional coordenada e financiada por sauditas. Sanções internacionais e revoltas internas desgastaram o Iraque por mais de uma década. Com a invasão dos EUA, em 2003, e a consequente falência do Estado iraquiano, o país deixou de ser uma potência regional e tornou-se uma zona de tensão entre os vizinhos.

Como mencionado no segundo texto dessa série, o Iraque é um governo próximo dos iranianos, depende de energia elétrica iraniana e, em seu território, diversas milícias xiitas são financiadas, equipadas e treinadas por Teerã. Ainda assim, cerca de um terço da população iraquiana é sunita, e os sauditas buscam agradar esses grupos para contrabalancear a influência do Irã. Importante notar que “agradar esses grupos” impõe também seus obstáculos.

Os sunitas iraquianos não são automaticamente alinhados aos sauditas; pelo contrário, como os sunitas eram parte da base de apoio de Saddam, enxergam os sauditas como aliados dos EUA, e co-responsáveis pelo fim do Partido Ba’ath. Ou seja, o Iraque é, ao mesmo tempo, um aliado do Irã e um campo de disputa, onde os sauditas precisam recuperar muito chão perdido nas duas décadas se querem evitar uma presença iraniana diretamente em suas fronteiras.

Líbano

O caso do Líbano é talvez o mais complexo e o mais perigoso. O Líbano é um grande caldeirão cultural; em tempos de paz isso era uma das credenciais do país para o turismo e a atração de investimentos. A capital Beirute, até a década de 1970, era chamada de “Paris do Mediterrâneo”. Desde 1975, entretanto, o país está em conflito, causado por diferenças sectárias internas e por influências externas, com o refúgio em massa de palestinos e intervenções militares de Israel e da Síria.

Hoje, cerca de 40% da população libanesa é cristã (maronitas e ortodoxos gregos, principalmente), enquanto 55% é muçulmana, divididos quase igualmente entre sunitas e xiitas. Por lei, o presidente é um cristão maronita, o primeiro-ministro é sunita, o líder do parlamento é xiita, dentre outras distribuições. Isso significa que uma parte razoável da população libanesa é próxima do Irã, outra parte igualmente razoável é próxima dos sauditas, e a maioria fica “no meio”, de acordo com a ocasião.

Esses grupos “no meio” podem flutuar seus apoios, podem ser usados para antagonizar outra facção, podem até mesmo antagonizar os outros grupos. A guerra civil do Líbano foi um exemplo cristalino dessa variedade de grupos e alinhamentos. A atual aliança que governa o Líbano é de cristãos seculares e partidos xiitas, incluindo o Hezbollah, maior aliado iraniano na região e importante elemento de dissuasão contra Israel, como visto na segunda parte dessa série.

O Hezbollah é, na prática, um Estado dentro do Estado; um aparato militar próprio, com tropas de elite e equipamentos pesados, organizações civis, coleta de impostos para o partido. Para contrabalancear, os sauditas apoiam outros grupos libaneses, sejam os sunitas do partido Movimento Futuro ou das milícias Abdullah Azzam (nesse caso, um apoio realizado de forma extra-oficial), ou as forças armadas seculares da república libanesa, que realizaram compras bilionárias de equipamentos financiadas por Riade.

A maior crise veio no final de 2017. No dia Quatro de Novembro, o então primeiro-ministro sunita Saad Hariri renunciou ao cargo. Nascido em Riade, é filho de um histórico político libanês que foi assassinado pelo Hezbollah. A questão é que ele renunciou ao cargo em um discurso televisionado da Arábia Saudita, sequer estando no Líbano. Em seu discurso de renúncia, disse que o Hezbollah é um fantoche iraniano e que o Líbano foi “sequestrado” pelo Hezbollah, exigindo “providências” internacionais.

As acusações do presidente e do Hezbollah foram de que os sauditas basicamente tomaram Hariri como refém e o obrigaram a renunciar. O propósito supostamente seria de criar uma crise, culminando em um conflito ou expurgo do Irã de dentro do Líbano. Não deu certo, especialmente pois o governo dos EUA não apoiou os sauditas. Hariri recuou da renúncia e retornou ao cargo como se nada tivesse acontecido, e é o atual primeiro-ministro libanês. Um mero exemplo do caldeirão que pode esquentar no futuro próximo.

Mundo

Um palco pouco percebido, mas presente. O conflito entre Irã e Arábia Saudita, embora regional, possui também repercussões mundiais. Primeiro, pelos aliados poderosos e interessados de peso, como vistos nos textos anteriores; EUA, Rússia, Índia, Europa. Segundo, a disputa pela primazia de influência entre os países muçulmanos, inclusive nos extra-regionais, como a Indonésia e a Nigéria, e os países da Ásia Central, historicamente próximos do Irã, como o Cazaquistão.

Tal proximidade, entretanto, também é expressa em desconfiança, com receio de um expansionismo da influência iraniana ou por divergências sobre a bacia do Mar Cáspio. Finalmente, esse conflito resvala em países não-muçulmanos. Por exemplo, o caso venezuelano. Um país americano, com uma comunidade de cerca de cem mil muçulmanos, ainda assim, envolvido nessa relação, já que rico em petróleo e, nos últimos anos, Venezuela e Irã se aproximaram para contornar sanções dos EUA.

Seis colunas e 22 páginas depois, essa série sobre o Oriente Médio e sua presente disputa chega ao fim; ao menos esse primeiro enfoque. Agradeço as editoras por terem topado a ideia de uma série temática. Junto aos temas cotidianos tratados na coluna, espera-se que a abordagem de temas mais perenes e históricos tenha sido de proveito para os leitores, uma espécie de “guia iniciante” para a região, que continua em ebulição, vide a presente crise entre Irã e Reino Unido por causa de navios petroleiros no Golfo Pérsico.

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