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Desfile em comemoração à vitória na Segunda Guerra Mundial, em Moscou, em maio de 2018. Foto: ALEXEI DRUZHININ/AFP
Desfile em comemoração à vitória na Segunda Guerra Mundial, em Moscou, em maio de 2018. Foto: ALEXEI DRUZHININ/AFP| Foto:

A Rússia anunciou o maior exercício militar de sua História como país independente. Cerca de 300 mil militares russos serão mobilizados para a simulação Vostok-2018, na região oriental e siberiana do país, segundo a mídia estatal russa e a BBC. O enorme contingente, cerca de um terço de todas as forças armadas russas, será acompanhado de 36 mil veículos blindados e mais de 1.000 aviões, simulando os mais diversos procedimentos, desde forças aerotransportadas até voos ininterruptos cruzando o enorme território russo. Componentes navais de três das frotas russas também participarão do exercício. Forças militares chinesas e mongóis também estarão presentes. Qual a mensagem que a Rússia quer transmitir com essa enorme e dispendiosa, demonstração de força?

Lições sírias

Pragmaticamente, um exercício desta magnitude não se resume aos cenários geopolíticos ou aos recados internacionais. O aspecto militar interno, de melhorar a capacitação das forças armadas russas é importante, não apenas uma justificativa. Nesse caso específico, difundir ainda mais as lições aprendidas na intervenção russa na Síria, fazer com que essas lições não fiquem restritas apenas aos militares que estiveram na Síria. Atualizar a doutrina militar russa a partir da participação em um conflito que, ao contrário do que pode parecer numa primeira vista, envolve tecnologia bélica de ponta.

A guerra na Síria não é apenas trocar tiros com terroristas armados com fuzis, mas envolve também logística em terrenos pouco amigáveis; operações aéreas monitoradas de perto por Israel e a Otan; a captação de valiosas informações inteligência ao acompanhar equipamentos e operações de outros países; ações delicadas com tropas de elite, uma miríade de cenários militares.

Em vídeo recente, o Ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, expôs números que mostram que a intervenção russa na Síria é maior do que o especulado. Ao menos 63 mil militares russos foram destacados para a Síria, de forma rotativa. Mais de 39 mil ataques aéreos foram realizados contra mais de 120 mil alvos, com o teste de mais de 200 sistemas de armamentos diferentes. Cabe agora empregar e testar toda essa experiência, envolvendo um componente maior das forças armadas russas.     

A fronteira oriental

O nome do exercício, Vostok, significa “leste” em russo; Vladivostok, a cidade com o maior porto russo no Pacífico, que faz a memória de muitos retornar a um jogo de tabuleiro, significa “Senhor do Leste”.

Na maioria das vezes em que exercícios militares russos são citados, a lembrança recai nas operações realizadas em sua parte europeia. Por exemplo, o Zapad-2017, do ano passado, que motivou reações tensas em países da Otan, ou o Zapad-1981, um dos maiores exercícios militares da história, em momento delicado da Guerra Fria. Zapad significa justamente “oeste” em russo. A Europa certamente seria o principal campo de batalha entre leste e oeste, pensando na quantidade de militares e em combates terrestres; entretanto, as fronteiras mais sensíveis entre Rússia e EUA estão longe dali.  

Existe uma fronteira quase direta entre Rússia e EUA, no extremo oriente, onde o Alasca e a região de Chukotka são separados apenas pelo estreito de Bering, além dos pontos próximos entre as ilhas Aleutas e a península de Kamchatka. Além disso, um míssil balístico intercontinental disparado por uma das duas potências teria no Ártico a sua trajetória mais objetiva, voando pelo pólo, não cruzando um mapa múndi em duas dimensões.

Por essas razões que a alta concentração de forças militares russas no seu Extremo Oriente e no Ártico não é uma novidade; ao contrário, das bases soviéticas de lançamento de mísseis conhecidas, algumas das principais estão ali. O mesmo acontece no Alasca, por parte dos EUA, e motiva o Norad, a parceria entre EUA e Canadá no monitoramento do espaço aéreo ártico.

Acontece agora a soma de três fatores. Primeiro, as forças armadas russas ainda dependem de instalações estabelecidas no período soviético. Mesmo que modernizadas até certo grau, são mais baratas e integradas na infraestrutura, em comparação com os custos de construção de novas bases. Então, mesmo novas unidades e equipamentos russos costumam ser alocados à sua região oriental.

Além disso, em 2014 a Rússia criou um novo distrito militar, um comando exclusivamente para o Ártico, uma região vital em recursos minerais que já estão sendo disputados pelos países ao redor. O degelo do Ártico motiva também o estabelecimento de corredores navais para comércio e transporte, encurtando a rota entre o Oriente e a Europa.

Segundo, o Ministério da Defesa russo alega que o exercício é necessário pela “atual situação internacional (…) frequentemente agressiva e hostil a nosso país”. O último exercício Vostok foi oito anos atrás. A escalada da retórica internacional, as sanções contra a Rússia, a presença militar dos EUA no Pacífico, todos esses fatores somam-se em um lembrete da importância dessa fronteira despercebida nos mapas, em novo exercício.

Terceiro, dois dos principais pontos de tensão internacional atualmente estão no Extremo Oriente: a península da Coreia e o Mar do Sul da China. Tais disputas envolvem desde a superpotência americana, passando por potências como China e Japão, até atores regionais, como as Filipinas e o Vietnã. Além disso, existem divergências fronteiriças entre russos e japoneses.

Isso significa que o exercício militar russo é um sinal de guerra em breve? De que a Rússia está colocando uma arma na cabeça dos vizinhos? Não, sem alarmismo. Significa que o governo russo está ciente de sua importância e de seus interesses nessas tensões regionais, e está exibindo suas opções e as eventuais cartas que possa ter na manga.  

A aliança com a China

As relações entre Rússia e China são complexas e merecem uma abordagem própria. São uma combinação de anexações territoriais pelos russos no século 19, apoio soviético aos guerrilheiros de Mao, rompimento entre russos e chineses na década de 1960, tensões durante a Guerra Fria e uma reaproximação desde o final dos anos 1980.

A reaproximação começa motivada pelo pragmatismo. A China sofre sanções europeias após o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989; tais sanções ainda vigoram em temas militares. Com isso, a China de Deng Xiaoping bate nas portas da URSS de Gorbachev, para ampliar seus parceiros comerciais e comprar equipamento militar.

Com o fim da URSS, as relações se aproximam progressivamente, com a resolução de disputas fronteiriças, ao menos em teoria, e a declaração de uma relação especial em 2013. O número de encontros entre Putin e Xi Jinping supera as 40 vezes. Principalmente, ambos os países são fundadores da Organização de Cooperação de Xangai, que hoje conta com oito países.

Os signatários do Pacto de Xangai, além de chineses e russos, são Cazaquistão,  Quirguistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão. A organização eurasiana tem pilares políticos, econômicos e também de defesa. Reúne cerca de metade da população mundial e conta também com quatro países observadores.

Um destes é a Mongólia, o outro participante do exercício Vostok-2018. O país, no último século, teve fortes vínculos com a Rússia; nos séculos anteriores, esteve ligado aos chineses. Hoje, a Mongólia é um pivô das relações sino-russas, um elo entre os dois gigantes. E essa relação inclui uma crescente cooperação militar.

A participação de cerca de 3 mil militares chineses, com cerca de 900 veículos e peças de artilharia, além de 30 aviões, junto com um contingente de algumas centenas das forças armadas mongóis, possui duas explicações. Primeiro, tranquilizar um vizinho que, embora aliado, protagoniza relações com um histórico complicado; curiosamente, diversas regiões em que o exercício ocorrerá foram, um dia, posse chinesa.

Segundo, aproximar as forças militares dos dois países, não apenas pela região em comum, mas também pelo potencial adversário em comum. Hoje é a China que mais cresce e aponta as contradições do sistema internacional herdado de 1945. Como exemplo econômico, russos e chineses assinaram contratos bilionários de cooperação em suas moedas nacionais, para intencionalmente contornar o dólar.

Na teoria clássica da geopolítica, desde Halford Mackinder, existiriam duas potências mundiais: uma marítima, que controla os oceanos, e uma terrestre, que controla a Eurásia. No início do século 20, progressivamente, o Reino Unido passou o bastão para seu aliado EUA no controle dos mares; hoje, talvez seja o que ocorra entre a Rússia, a principal potência eurasiana desde o século 18, e a China, potência de um possível futuro.

Distração?

Importante elemento do atual contexto é a ofensiva sírio-russa contra a região de Idlib, que está sendo planejada e pode ocorrer nos próximos dias ou semanas. A região hoje é controlada tanto pela chamada oposição síria quanto pelo Tahrir al-Sham, sucessor da al-Qaeda no país. O exercício Vostok-2018 pode também cumprir o papel de chamariz da atenção da retórica internacional, enquanto ações para valer ocorrem na Síria.

O contingente divulgado para o exercício Vostok pode estar inflacionado, maquiando o deslocamento de recursos para essa grande ofensiva, uma das poucas pendências militares russas na Síria. Mesmo que os números divulgados sejam concretos, pode ser usado de justificativa para movimentos de aviões e unidades. É óbvio que os EUA conseguem monitorar simultaneamente o Extremo Oriente e o Mediterrâneo oriental.

A questão é criar um foco para a retórica internacional perante grandes movimentos de forças militares, além de um foco para o debate na opinião pública. Certamente o exercício terá repercussão no noticiário dos EUA, embora não seja o caso brasileiro, por razões óbvias. Importante destacar que isso é uma hipótese, ao menos por enquanto. O exercício possui razões práticas e geopolíticas, mas não se deve excluir uma dose midiática.

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