• Carregando...
Foto: Pixabay
Foto: Pixabay| Foto:

Todos nós aprendemos sobre o Tratado de Tordesilhas na escola, mas poucos imaginam que ele ainda repercute nas fronteiras do mundo. O mês de Abril de 2019 será carregado de eleições de impacto que podem alterar os rumos de significativas relações internacionais. Nas próximas semanas este espaço certamente será focado nesse tema. Além do segundo turno da eleição presidencial na Ucrânia, já tratada aqui, teremos eleições em Israel, na Espanha, o início das maiores eleições do mundo na Índia, o impacto das eleições locais na Turquia, dentre diversas outras.

Uma, mais exótica e que certamente terá menos repercussão na mídia brasileira, pode decidir o futuro de metade do território de um país. No dia 10 de abril, os cidadãos de Belize irão votar em um referendo de uma pergunta, respondendo sim ou não. “Você concorda que qualquer reivindicação legal da Guatemala contra Belize relacionada a territórios terrestres e insulares e a quaisquer áreas marítimas pertencentes a esses territórios deve ser submetida à Corte Internacional de Justiça para a solução definitiva e que finalmente determine os limites dos respectivos territórios e áreas das partes?”.

Guatemaltecos já aceitaram

Ambos os países centro-americanos, Guatemala e Belize, assinaram um acordo ao fim de 2008, se comprometendo em, um prazo de dez anos, tentarem solucionar sua disputa fronteiriça. Além de conversas bilaterais e medidas de estabelecimento de confiança mútua, ao fim do prazo, o tema seria submetido para arbitragem da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que soluciona controvérsias entre Estados. O acordo de 2008 também previa que as populações deveriam aceitar essa jurisdição.

Assim, em abril de 2018, a população guatemalteca aprovou, via referendo, a consulta na CIJ. A pergunta era virtualmente idêntica e 95,88% dos eleitores que compareceram disseram “sim”. Um problema foi que apenas 26,6% do eleitorado total compareceu nas urnas; como comparação, 56% do eleitorado votou na eleição de Jimmy Morales como presidente, em 2015. Uma das possíveis explicações é que, caso o “não” vencesse, outro referendo seria convocado em seis meses. Isso desmotivou os partidários do não, embora esses sejam minoria na Guatemala, a maior interessada no assunto.

Origem da briga

Em 1494, sob mediação do papa Alexandre VI, nascido Rodrigo Bórgia, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo entre os dois reinos ibéricos católicos. As outras nações europeias não reconheceram o acordo, especialmente após a Reforma Protestante. Independente disso, o documento foi usado como base, em maior ou menor grau, para reivindicações territoriais espanholas, de que a maior parte do continente americano era posse espanhola.

A região onde está Belize, a península de Iucatã, foi uma das últimas regiões da América Espanhola que foi conquistada, devido a presença de cidades-estado olmecas. Expedições tanto militares quanto missionárias foram derrotadas pelos indígenas, criando um vácuo de ocupação europeia. Em teoria, a região era espanhola, na prática, sem população europeia até 1638. É o ano da chegada de marinheiros, piratas e náufragos ingleses, que estabelecem entrepostos e pequenos assentamentos.

Pelos próximos dois séculos a região seria disputada entre os três atores envolvidos; a coroa espanhola, a coroa inglesa e os colonos ingleses, que alternavam momentos de desejo de autonomia com períodos de proximidade com Londres. Os espanhóis, mesmo que na prática tolerantes com a presença inglesa, nunca aceitaram formalmente a perda da posse do território. Juridicamente, se consideravam donos do que hoje é Belize.

Mais ainda; o atual Belize era dividido na administração espanhola. Embora tudo parte do mesmo império, existiam fronteiras administrativas internas. O norte de Belize fazia parte do Vice-reinado da Nova Espanha, que amalgamou aproximadamente o atual México, o sudoeste dos EUA, Cuba e as Filipinas. Já o sul do atual país fazia parte da Capitania-geral da Guatemala, que unia toda a América Central, exceção ao Panamá. A divisão das reivindicações se dá no rio Sibun.

Em 1821 a disputa deixa de ser entre britânicos e espanhóis, agora com a independência do México. Em 1823 ocorre a independência da República Federal da América Central, que durou até 1838. Sim, em alguns períodos toda a América Central foi um país unificado, que se fragmentou por disputas entre elites locais. Os novos países mantém suas reivindicações territoriais. Em 1862 é criada oficialmente a colônia de Honduras Britânica, o atual Belize.

Brigar com alguém do seu tamanho

Antes da criação da colônia britânica, o Reino Unido e a Guatemala, agora reduzida ao seu atual território, assinaram um acordo em que os guatemaltecos reconheceram a posse britânica de Belize. Em troca, os britânicos fariam investimentos na região, incluindo uma estrada; o detalhe parece insignificante, mas não é. Obviamente que a Guatemala, embora até hoje com um forte irredentismo territorial em relação aos antigos domínios herdados da Espanha, não iria procurar briga com a maior potência marítima do mundo.

Por quase um século, a Guatemala pouco fez além de protestar pelo cumprimento do acordo. Até a década de 1940, quando a crescente autonomia belizenha e a Segunda Guerra Mundial faziam com que a região não fosse exatamente uma prioridade para Londres. A Guatemala denunciou o acordo original, alegando que a estrada nunca foi construída; de fato, não foi. Belize, apesar de grande autonomia interna, só se tornou totalmente independente em 1981 e, durante todo o período, negou a queixa guatemalteca.

Para o governo de Belize, o acordo foi assinado com os britânicos, logo, o novo país não tem obrigação alguma. Inclusive, a ameaça do uso da força pela Guatemala motivou a constante presença britânica de tropas na região. Mesmo assim, em 1975, quase ocorreu uma guerra em larga escala, mas a Guatemala não cometeu o mesmo erro que os argentinos cometeriam nas Malvinas anos depois; a disputa pelas Malvinas inclusive possui origem similar, em disputas territoriais que remetem à colonização europeia.

O século XX impossibilitava uma solução pacífica já que a Guatemala foi seguidamente governada por militares, que viam a força como uma alternativa viável ao assunto. Isso causou repulsa cada vez maior nos países da vizinhança, que passaram a abertamente apoiar a independência de Belize. Esse é outro argumento do governo de Belize, que a reivindicação territorial viola a autodeterminação dos povos, já que os habitantes dali não são guatemaltecos.

Posições e objetivos

Baseados nessa ideia, o México abriu mão de sua disputa sobre o norte do país, Cuba, Nicarágua e Costa Rica abertamente passaram a defender um Belize independente. Outro fator que explica isso é a prevenção de um precedente perigoso. Se os países centro-americanos reconhecessem o argumento guatemalteco, de ser um governo herdeiro das posses espanholas, oras, a Guatemala poderia desejar esses mesmos países que um dia formaram a Capitania-geral da Guatemala.

O desejo de Belize é que o tema seja resolvido logo, nesse período democrático de seu vizinho. Uma decisão da CIJ é vinculante, obrigatória para os Estados-parte; se a Guatemala desrespeitar, o país seria imediatamente alvo de sanções internacionais. Estabelecer as fronteiras é importante não somente para a segurança de Belize, um país bem menor, mas também para garantir o crescimento econômico do país rumo ao sul, evitando problemas fronteiriços que tornem investimentos muito arriscados.

Em 2016, um menino guatemalteco foi baleado e morto na fronteira por soldados belizenhos, gerando uma crise que exemplifica o tipo de instabilidade imprevisível que pode surgir. O governo local apoia firmemente o referendo e o voto no “sim”. Um fator complicador é que a lei belizenha estabelece que um referendo só é válido com a presença de 60% do eleitorado.

O governo alega que essa regra não é válida, já não se trata de um assunto interno e o acordo de 2008 não estabelecia um comparecimento mínimo. Opositores do referendo como um todo prometem entrar na justiça caso o número não seja atingido, além de alegarem que a consulta é inconstitucional. Já a Guatemala, além de desejar metade do território vizinho, triunfaria em sua grande causa irredentista, a ideia de que o país foi injustiçado e vilipendiado com perdas territoriais. A ideia de uma “Grande Guatemala”.

Durante décadas, assentos ficaram vazios no parlamento na Cidade da Guatemala, marcados como dos representantes de Belize, nunca eleitos. Mapas em livros escolares traziam a informação de território do país “ocupado” e o caráter indivisível do território estava na constituição. Isso só mudou com o fim das ditaduras militares, no início da década de 1990. Caso a população belizenha autorize, quem sabe essa disputa chegue ao fim em alguns anos.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]