• Carregando...
Uma abolição do Colégio Eleitoral dos EUA?
| Foto: Pixabay

A senadora e candidata à presidência dos EUA Elizabeth Warren afirmou que quer ser a última pessoa eleita ao cargo pelo colégio eleitoral. Ela defendeu publicamente uma reforma eleitoral em seu país, com duas possibilidades para valorizar o voto direto. O sistema eleitoral dos EUA é muitas vezes confuso para nós, brasileiros, que possuem uma eleição para presidente muito mais simples. O principal motivo para essa discussão ao norte é o fato de que candidatos podem não ser os mais votados, mas ainda assim vencerem.

O debate é histórico, mas ganhou mais força pelo fato de que, nas últimas cinco eleições, em duas vezes o candidato menos votado foi o eleito. Em 2000, George W. Bush ficou meio milhão de votos atrás de Al Gore. Já em 2016, Donald Trump teve quase três milhões de votos a menos do que Hillary Clinton. Outras três circunstâncias similares ocorreram e, embora pareçam esquecidas no tempo, foram seminais em suas respectivas épocas, colaborando para a evolução política dos EUA.

Em 1824, na décima eleição da então nova república, ocorreu uma eleição indireta na Câmara de Deputados, já que nenhum candidato conseguiu a maioria do colégio eleitoral. O Partido Democrata Republicano, que monopolizou a política partidária dos EUA por duas décadas, se esfacelou, com quatro candidatos. A Câmara escolheu John Quincy Adams, sob a justificativa de que ele teve mais votos no colégio eleitoral; entretanto, Andrew Jackson foi o mais votado.

Na eleição de 1876, Rutherford Hayes foi eleito após uma dramática recontagem, e Samuel Tilden, o mais votado, ficou em segundo; a necessidade de um “acordão” político encerrou a chamada Era da Reconstrução no sul, precipitando a adoção de políticas segregacionistas. Já em 1888, Benjamin Harrison derrotou o então presidente Grover Cleveland, que buscava a reeleição e foi o mais votado. A criação de novos estados, consequentemente maior colégio eleitoral, foi um dos efeitos dessa eleição.

Como são as eleições

Explicando brevemente o sistema eleitoral dos EUA, na proporção do congresso do país cada deputado deve representar um número similar de pessoas; ao contrário do sistema brasileiro, herdado do Pacotão de Abril de 1977 de Geisel, em que alguns estados possuem maior representação do que outros. Voltando aos EUA, o país é dividido em 435 distritos de acordo com o tamanho da população, cada um para um deputado. Então, estados com poucos habitantes, como Nevada, possuem dois distritos.

Já a gigantesca Califórnia possui 53 distritos. No caso do colégio eleitoral, cada estado adiciona dois votos aos seus distritos, correspondentes aos assentos do Senado. Desde 1954, o Colégio Eleitoral é composto de 538 assentos, e pelo menos 270 votos são necessários para se decretar um vencedor. Um dos motivos da distorção é que a maioria dos estados segue um cálculo absoluto, não proporcional, The Winner Takes It All, (“o vencedor leva tudo”), para determinar o vencedor do estado.

Em 2016, por exemplo, Donald Trump teve apenas 11 mil votos a mais do que Hillary Clinton no estado de Michigan, de quase cinco milhões de votos totais. Ainda assim, levou consigo todos os 16 votos no colégio eleitoral. Esse é apenas um exemplo. Na mesma eleição, em Nevada, Clinton ficou com apenas 17 mil votos a mais do que Trump, de mais de um milhão total. Do mesmo jeito, ficou com os seis votos do colégio eleitoral. Dois outros estados contam de maneira diferente.

No Maine e no Nebraska, quem vence na contagem geral leva dois votos, mais um voto por cada vitória distrital. Hillary Clinton ganhou por 3 a 1 no Maine, enquanto Trump varreu os cinco assentos do Nebraska. Essa diferença ocorre pela autonomia dos estados na federação dos EUA. Essa autonomia, inclusive, pode, no futuro, gerar dois sistemas eleitorais paralelos, com a proposta do National Popular Vote Interstate Compact, uma reforma eleitoral acordada entre alguns estados, sem o executivo federal.

O primeiro proponente de uma mudança de sistema para uma eleição decidida pelo voto individual foi o citado Andrew Jackson, motivado, em parte, por sua própria derrota na ocasião. Ele presidiu o país de 1829 a 1837, com uma série de novas propostas e advogando por uma democracia de massas. O atual presidente Donald Trump, reconhecidamente, tem Jackson como um de seus grandes exemplos políticos. O Congresso de sua época, entretanto, recusou debater o tema.

Escravidão e representação

Isso é explicado justamente pela própria origem do colégio eleitoral. Como dito por Elizabeth Warren, talvez para contemporizar, "o colégio eleitoral já teve uma função". Sua origem está na escravidão. Em seus primórdios, o novo país chamado EUA ficou quase uma década sem constituição, pela disputa entre os partidários de um governo mais centralizado e os críticos dessa ideia. Um dos argumentos centrais desse debate era o de evitar uma "ditadura da maioria", garantir representação aos estados com menos eleitores.

Menos eleitores, não menos populosos. Eram os estados do sul escravista, em que a maior parte da população estava escravizada, sem direitos políticos. Uma consulta ao primeiro censo do país, em 1790, mostra que Nova Iorque tinha uma população de 340 mil pessoas; desses, apenas 6% escravizada e mais de 83 mil eleitores. Já Maryland, embora com uma população similar de 320 mil pessoas, tinha um terço desses em situação de escravidão, com apenas 56 mil eleitores. A Carolina do Sul passava dos 40% de escravizados.

Ou seja, se os habitantes dos estados livres e populosos se alinhassem, dominariam os rumos do país. Três soluções foram adotadas para garantir a representação política das elites agrárias escravistas. Primeiro, o Compromisso dos Três Quintos, que determinou que 60% da população escravizada de cada estado contaria para a proporção populacional da Câmara; na prática, o voto do eleitor do sul contava mais que o voto do eleitor do norte. Depois, o Connecticut Compromise de 1787.

Aqui que foi criada a ideia de um Congresso bicameral, com representação proporcional na Câmara e igualitária no Senado; cada estado, independente de sua população, teria dois assentos no Senado, garantindo a representação do sul. Finalmente, o colégio eleitoral, a soma desses dois mecanismos, com uma eleição indireta pela soma dos assentos no Congresso. Novamente, a ideia era, por um lado, evitar uma "ditadura da maioria", algo pertinente; por outro lado, apenas garantia maior poder político aos escravistas.

Prós e contras

Mais de um século depois da abolição, é claro que essa não é mais a razão da atual existência do colégio eleitoral, embora seja sua gênese. Hoje o debate sobre o colégio eleitoral gira em torno de outros temas. Primeiro, a possível contradição de eleger um presidente que não tenha a maioria dos votos. Segundo, a representatividade dos estados. Enquanto os defensores do modelo do colégio eleitoral afirmem que ele garante que estados menos populosos sejam ouvidos, como Montana.

Já os críticos afirmam que, no fim, quase nenhum estado é ouvido. Isso pois os candidatos acabam concentrando seus esforços de campanha nos chamados swing states, os estados onde republicanos e democratas se revezam em suas vitórias. Um estado como a Califórnia dificilmente será conquistado por um republicano nas atuais circunstâncias, assim como é improvável uma vitória democrata em Montana ou no Kansas. Proporcionalmente, estados como Ohio, Iowa e Flórida recebem até dez vezes mais recursos e visitas dos candidatos.

O próprio presidente Donald Trump já defendeu a abolição do colégio eleitoral, revisando sua posição quando se lançou candidato, adotando o discurso de que é uma maneira que permite a representação da população rural, menor. É muito difícil chegar em uma resposta certa em um debate que é quase tão velho quanto o próprio país. O fato é que o tema vai voltar à tona, não só por ter sido levantado por uma candidata de peso, mas também pela possibilidade do cenário de 2016 se repetir em 2020.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]