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O Parlamento da Hungria visto pela janela de um barco no Rio Danúbio
O Parlamento da Hungria visto pela janela de um barco no Rio Danúbio| Foto: ATTILA KISBENEDEK / AFP

Quatro de Junho de 1920, dia da assinatura do Tratado de Trianon, em Paris. O acordo ditava os termos da paz entre as potências vencedoras e o Reino da Hungria após a Grande Guerra. Como todos os outros tratados do pós-guerra, ele impôs condições rígidas aos vencidos, sendo motivo de ressentimento e de protesto, mesmo cem anos depois, quando o atual governo húngaro planeja invocar a memória dessa humilhação.

O Tratado de Trianon foi assinado no contexto da Conferência de Paz de Paris, que durou um ano, de janeiro de 1919 a janeiro de 1920. Reuniu delegações de 27 países, incluindo uma delegação brasileira; o Brasil, entretanto, não foi signatário do texto sobre a Hungria. Uma "confusão" comum é pensar que a Grande Guerra foi encerrada com o Tratado de Versalhes; não, esse foi apenas dos vários tratados.

A conferência produziu cinco tratados. O de Saint-Germain-en-Laye com a República da Áustria, o de Neuilly-sur-Seine com a República da Bulgária, o de Sèvres com o Império Otomano, além dos citados de Versalhes e de Trianon. Como o Tratado de Versalhes foi o que ditou os termos da paz com o poderoso Império Alemão, diretamente responsabilizado pelo conflito no texto do tratado, acabou tornando-se sinônimo do fim da guerra.

Um aspecto muito importante do que aconteceu cem anos atrás: os países derrotados não foram convidados, a paz foi em condições impostas. Além disso, uma delegação do antigo governo do czar russo esteve presente como observadora, mas sem poderes; em termos práticos, a Rússia ou a URSS não tiveram voz nos tratados da Paz de Paris. Esses são alguns dos problemas que geraram consequências até hoje.

Perdas húngaras

Uma dessas consequências é o irredentismo húngaro, a sensação de que o país foi maltratado pelas potências e espoliado de sua riqueza e de seus territórios. Do território total do reino da Hungria que fazia parte da coroa dual com a Áustria, no Império Austro-Húngaro, menos de um terço continuou em mãos húngaras. Mais de 200 mil quilômetros quadrados foram distribuídos aos nascentes países vizinhos.

Romênia, Áustria, Tchecoslováquia e Iugoslávia receberam esses territórios, junto com a maioria da população do reino pré-guerra. Aqui a questão fica mais complicada. Da população de quase 21 milhões de pessoas, menos de metade era de húngaros. Tchecos, eslovacos, croatas, sérvios, ucranianos, alemães, judeus, romenos e eslovenos eram a maioria da população.

Quando a Conferência de Paz de Paris consagra o princípio de autodeterminação dos povos, essas pessoas vão, em sua maioria, viver em Estados de suas nacionalidades. Ao mesmo tempo, mais de três milhões de húngaros, praticamente um terço de todos os falantes do idioma, ficarão de fora das fronteiras de seu país. Para o mundo, se tratou de autodeterminação. Para os húngaros, significou perda e diáspora.

E nada disso ficou perdido em um passado distante. Primeiro pois cem anos atrás não é "um passado distante". Pode ser em termos da vida natural de um indivíduo, mas trata-se de três, no máximo quatro gerações de uma família. Pessoas que ocupem posições de poder hoje, por volta de seus cinquenta anos de idade, cresceram ouvindo sobre cem anos atrás de seus avós, não apenas via livros de História.

Essa sensação de perda, de humilhação, de imposição, é transmitida de geração em geração. Além disso, são problemas que permanecem. Cerca de 10% de todos os húngaros, mais de um milhão de pessoas, vive dentro das fronteiras da Romênia. Outro meio milhão vive na Eslováquia, quase 10% da população do país. Somando Sérvia, Ucrânia, Croácia e Áustria, temos outro meio milhão de húngaros.

A questão dos húngaros na Romênia já foi abordada aqui nesse espaço, em um episódio recente de violência comunitária. E essas comunidades húngaras além-fronteiras são um dos pilares da ascensão do nacionalista Viktor Orbán ao governo de Budapeste. Ele e seu partido constroem cada vez mais uma identidade húngara em torno do Tratado de Trianon, ao ponto de criar um feriado, o Dia da Coesão Nacional, no Quatro de Junho.

Nacionalismo e cooperação

Uma frase de Orbán sobre a data que chamou a atenção foi que Trianon "é injusto até o fim dos tempos, pois o tempo cura feridas, mas não cura uma amputação". No último dia seis de maio, nas suas redes sociais, Orbán compartilhou a imagem de um globo antigo, com a fotografia focada no antigo reino da Hungria e suas dimensões superlativas. A postagem atraiu condenações dos governos da Croácia e da Romênia.

Importante lembrar que, hoje, os três países são integrantes da União Europeia e aliados na OTAN. Ou seja, um irredentismo territorial húngaro é, num futuro próximo, bravata pura. Não há como a Hungria retomar esses territórios, seja pela negociação, quanto mais pela força. Restam alguns problemas, ainda assim. O primeiro é o de azedar as relações com seus vizinhos, como já citado.

Oficialmente, o governo Orbán promove a cooperação e uma herança histórica comum entre os povos da Europa central, não criando animosidades diretas entre os Estados. Ainda assim, é uma linha muito tênue, em que Orbán busca equilibrar tanto um discurso nacionalista mais inflamado para consumo interno com um discurso de cooperação e superação de dificuldades do passado para o público externo.

Isso pode ter um efeito mais adverso, que é acabar prejudicando as comunidades húngaras dentro desses países vizinhos. Talvez por cálculo político, já que essas pessoas se tornariam ainda mais apoiadores de Orbán? Difícil, já que nem todos eles são eleitores húngaros. Outro problema é o de gerações que estão crescendo e se formando nesse momento, bombardeadas por uma retórica de irredentismo.

É muito simplório tornar a Hungria, que era um dos países mais pobres da Europa central, em vítima de uma paz imposta de maneira injusta, e pessoas mais experientes, mesmo sob o efeito do torpor de um resgate de orgulho nacional, saberão os limites do discurso. Não é o caso dos mais jovens, que formam movimentos mais radicais e de fato podem almejar um irredentismo húngaro, custe o que custar.

Expansionismo e monumentos

Outro problema para Orbán é que, paradoxalmente, o fortalecimento dessa imagem enfraquece outro discurso de seu governo, de que a Hungria foi vítima do nazismo e do comunismo, ocupada na Segunda Guerra Mundial e nas décadas posteriores. Oras, a Hungria de Miklos Horthy, líder húngaro de 1920 até 1944, que alinhou seu país aos interesses da Alemanha nazista.

Ambos os regimes buscavam a mesma coisa: questionar e revisar as fronteiras estabelecidas na Paz de Paris. A agenda irredentista húngara encontrava amparo em Berlim, com a formação de uma aliança ainda em agosto de 1938, e a Hungria foi um ator ativo nos primeiros anos da guerra, longe de ser uma vítima do nazismo. Foi um regime parceiro e aliado.

A Hungria conquistou, ou recuperou, territórios que eram parte da Polônia, da Eslováquia, da Iugoslávia e da Romênia. Participou da invasão da União Soviética, e seu exército também foi aniquilado como consequência de Stalingrado. Mesmo que o discurso vitimista de Orbán tente colocar a Hungria como uma vítima do nazismo, o fato é que isso não é verdade.

Em 1944, Horthy foi deposto pelos alemães por querer negociar a rendição de seu país. Mesmo na ocasião, ele foi substituído pelo movimento da Cruz Flechada, o partido fascista húngaro. Húngaros também colaboraram ativamente para a perseguição de judeus e de roma no seu país. Ao fim das contas, foi o mesmo irredentismo territorial o grande combustível dessa aliança entre o regime húngaro e Berlim.

Por um acidente da História, o centenário de Trianon, que seria um grande palco para Orbán, será marcado pelo clima da pandemia do novo coronavírus, com menos pessoas nas ruas, menos manifestações e outras preocupações na ordem do dia. Seria inaugurado um novo monumento em Budapeste, o "Memorial da Unidade Nacional", uma rampa de cem metros que desce rumo uma chama eterna.

| Divulgação / Wachsler Tamas / Steindl Imre Program

Nas paredes da rampa, o nome de doze mil cidades da "Hungria histórica" gravados na pedra, com as nomenclaturas em húngaro. A capital croata Zagreb, por exemplo, grafada como Zágráb. Não é o primeiro monumento húngaro que lamenta Trianon, mas é certamente o mais imponente. E um que, curiosamente, não menciona o nome Trianon. A inauguração ainda não tem nova data marcada.

Como o governo Orbán vai rememorar a data, veremos nos próximos dias. Teremos pronunciamentos no parlamento e, ao menos por enquanto, apenas isso. Talvez as celebrações sejam remarcadas, talvez percam força. Costumamos aprender ainda na infância, por experiência, que cutucar um machucado só atrasa a recuperação do ferimento. Cem anos depois, a Hungria quer mexer novamente nessas feridas.

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