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Presidente da República Jair Bolsonaro durante jantar com formadores de opinião, em Washington (EUA). Foto Alan Santos/PR.
Presidente da República Jair Bolsonaro durante jantar com formadores de opinião, em Washington (EUA). Foto Alan Santos/PR.| Foto:

Em Washington, no jantar na casa do embaixador Sergio Amaral, o ministro da Economia Paulo Guedes dirigiu-se ao filósofo Olavo de Carvalho chamando-o de “líder da revolução liberal no Brasil”. Se Guedes foi sincero em sua avaliação – e a insinceridade não parece ser um traço de sua personalidade –, sua fala põe em xeque uma narrativa insistentemente martelada por parte da imprensa, segundo a qual haveria no governo uma divisão fundamental entre um núcleo ideológico (que virou moda alcunhar de “jacobinista”), liderado por Olavo, e um núcleo pragmático, do qual o liberal de Chicago, com o seu projeto de reforma da Previdência, seria o expoente.

Aparentemente (e felizmente!), o ministro Paulo Guedes mostra ter alguma imunidade contra uma concepção comum que o pensamento liberal partilha com outras tradições intelectuais da modernidade, inclusive aquelas – como é o caso do positivismo e do marxismo – das quais, de resto, diverge fundamentalmente. Por falta de melhor termo, podemos chamá-la genericamente de progressismo (que, aqui, não deve ser tomado como sinônimo de esquerdismo). Trata-se da crença utópica de que, com o progresso técnico-científico, chegará finalmente um dia em que a política restará supérflua, já que a forma mentis irracional e ultrapassada sobre a qual se fundam as disputas político-ideológicas virá a ser superada pelo avanço do conhecimento e a universalização da razão.

Ironicamente, uma das formulações mais conhecidas dessa concepção tem pedigree marxista. Está no Anti-Dühring, publicado em 1878, no trecho em que Friedrich Engels anuncia a utopia do fim do Estado, que se seguiria à tomada do poder pelos proletários. Nas palavras do fiel escudeiro de Marx: “Em todos os domínios, a interferência estatal nas relações sociais torna-se supérflua, e acaba por morrer de inanição; o governo das pessoas é substituído pela administração das coisas”.

Sim, o leitor não leu errado. Há, nessa ideia de que a política possa dar lugar à administração, toda uma ousada antropologia filosófica, que imagina uma mudança fundamental da natureza humana consubstancial ao avanço das ciências e das técnicas, como se, em função do incremento universal da racionalidade, os interesses pessoais, as controvérsias morais, os conflitos de valores e visões de mundo, enfim, pudessem ser gradualmente anulados. Eis aí o ponto em que a utopia comunista da “sociedade sem classes” se encontra com o sonho libertário do “fim do Estado” (ou “da História”). Embora se vejam como nêmesis uma da outra, essas duas utopias partem de uma mesma premissa, que, junto com o positivismo (daí muitos militares brasileiros também a adotarem), herdaram do culto iluminista à razão: a noção de que é possível conduzir a vida em sociedade de maneira inteiramente racional e científica (consensual, portanto), dispensando as paixões inerentes aos embates político-ideológicos. É esse fetiche de pairar acima das ideologias – um fetiche altamente ideológico, decerto – que transparece no elogio contemporâneo ao pragmatismo, fazendo da reforma da Previdência uma panaceia, e encarando os demais enfrentamentos (quer políticos, quer culturais) como reles distrações ideológicas.

Como, tempos atrás, demonstrou o próprio Olavo num artigo intitulado A ideologia da anti-ideologia, liberais, libertários e socialdemocratas costumam incorrer naquele vício de pensamento, que o autor define como “pragmatismo supra-ideológico”, e que se caracteriza por um desinteresse por toda e qualquer motivação humana que não possa ser inteiramente explicada pela racionalidade econômica. Escreve o filósofo: “Os pragmatistas supra-ideológicos são tão inconscientes das implicações reais da sua escolha que nem percebem que a hegemonia da racionalidade econômica sobre os fatores ditos ideológicos e ‘irracionais’ da vida social não traria jamais a vitória da liberdade de mercado, mas a expansão ilimitada da administração estatal. Um mundo sem ideologias é o mesmo que um mundo sem política – é o projeto da ‘sociedade administrada’, isto é, totalmente controlada, para o qual tantos liberais contribuem inconscientemente por meio de sua adesão ao pragmatismo supra-ideológico”.

Os analistas que, no momento presente, têm adotado o discurso pragmatista em defesa da reforma da Previdência (e, antes que me entendam mal, deixo claro que também a considero urgente), costumam dizer que sua posição nada tem a ver com ideologia, baseando-se apenas numa necessidade matemática: ou se a aprova, ou o país quebra.

Num certo sentido, é óbvio que têm razão. Se a reforma não for aprovada, iremos mesmo para a bancarrota. O problema é que, em política, ter razão não basta. A ideia de que a reforma tem de ser aprovada por uma questão elementar de racionalidade parte da premissa oculta de que todos concordam que o país não pode quebrar. Ocorre que não querer que o país quebre não é uma questão de racionalidade matemática, mas de valor. Porque, para a corrente política radical recém apeada do poder, formada por partidos como PT, PCdoB, PSol e PDT, quebrar o país é justamente o projeto, entendido como meio de fomento do caos generalizado necessário à sua volta ao poder. Não se trata, pois, de uma simples disputa entre racionalidade e irracionalidade, mas um verdadeiro confronto de valores, de escolhas morais, de projetos de país. Um confronto ideológico, portanto.

Progressistas em geral tendem a considerar os adversários sob o simbolismo do atraso. Nisso, mais uma vez, liberais, marxistas e positivistas concordam: em qualificar os adversários de “atrasados”. No caso particular do liberalismo, a certeza da própria superioridade intelectual no tocante à economia acaba gerando, curiosamente, uma certa inocência e vulnerabilidade em face do adversário, que é visto como alguém meramente ignorante, sobre quem ainda não desceram as luzes da razão. Ao contemplar os inimigos, o liberal é tentado a repetir Jesus Cristo: “Perdoem-nos, eles não sabem o que fazem”.

Acontece que, em grande parte dos casos, sabem-no muito bem. Não é uma questão de não saber, mas de não querer. Os objetivos dos adversários esquerdistas – e não apenas os meios, como pensa o liberal – é que são radicalmente distintos. E essa diferença radical, por sua natureza política e existencial, não pode ser “superada” por meio do progresso da razão. Crer nisso é promover a despolitização da política, como se esta fosse feita de uma sucessão unilinear de estágios evolutivos, e não, como é de fato, de uma superposição de forças contrárias.

Adversários políticos não são versões “atrasadas” de nós mesmos, cujas ideias, se a história seguisse o seu curso “natural”, caminhariam inevitavelmente para uma convergência com as nossas. Não, eles são os nossos outros, e a distância que nos separa é de natureza, não de grau. Precisamente, essa distância é política, não evolutiva. E, em política, não há soluções definitivas e sínteses superiores. A política é um embate interminável num mesmo plano, uma dialética sem síntese, por assim dizer, exercício de convivência dos heterogêneos e contrários, zona de perpétua coetaneidade, sem Aufhebung.

Ao contrário do que prega a autoilusão liberal, adversários políticos raramente são convencidos por meio de argumentos racionais, e muito menos graças à simples passagem do tempo. Há que travar com eles a luta política, que inclui necessariamente o confronto de valores, de noções de moralidade, de concepções de homem, de visões de mundo – tudo aquilo, em suma, que os ideólogos do pragmatismo costumam desprezar como reles “ideologia”. Com efeito, se há algo de comum a todo ideólogo é a predisposição a encarar todas as demais ideologias enquanto tais, e apenas a sua própria como “ciência”.

A separação entre um núcleo ideológico e um núcleo pragmático no atual governo é, portanto, artificial e, ela própria, ideológica. Não faz sentido isolar a meta da reforma da Previdência de todo o projeto político que, resultado de um pacto estratégico entre liberais e conservadores, se sagrou vitorioso no último pleito, e cujo contexto histórico é o embate com a forças de esquerda. Até porque, se tomada isoladamente, desconectada da orientação ideológica mais ampla que a sustenta (e cuja existência o próprio presidente Jair Bolsonaro, como bom militar, não raro tenta negar), a reforma acabará não sendo aprovada. E, ainda que o seja, no futuro será retratada como um processo cruel de manutenção de privilégios dos mais ricos em detrimentos dos mais pobres.

A narrativa da esquerda já está pronta e, se essa esquerda não for enfrentada nas mais variadas frentes da luta política e cultural, se a sua versão dos fatos terminar consagrada, a reforma de Paulo Guedes terá sido a primeira e a última no Brasil a assumir um caráter minimamente liberal. Não podemos nos dar a esse luxo, pois novas reformas liberalizantes serão necessárias. Foi provavelmente essa visão de conjunto que, para o espanto (senão mesmo o horror) de pragmatistas puro-sangue, levou o ministro da Economia a ressaltar a importância da orientação intelectual do filósofo. O encontro em Washington parece ter mostrado, entre outras coisas, que a oposição entre Olavo e Guedes não é mais que um wishful thinking dos críticos.

 

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