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A cultura do escárnio e o triunfo da cruz: o caso Porta dos Fundos
| Foto: Wikimedia Commons

“Pois há de ser entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” (Lucas 18,32)

“Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará” (Gálatas 6,7)

Não há novidade alguma no deboche com que, sob o pretexto do humor, o grupo Porta dos Fundos trata a fé cristã. Religião nascida, precisamente, sob o signo do escárnio – manifesto, entre outros, no acrônimo INRI (Iesus Nazarenus, Rex Iudaeorum), que Pilatos ordenou fosse gravado na placa afixada ao topo da cruz –, o cristianismo tem sobrevivido a ele ao longo de seus 2 mil anos de existência.

No Ocidente, o estilo contemporâneo de escárnio anticristão surge no século 18 com o Iluminismo francês. Já fermentado de ideologia ateísta (daquela sorte de ateísmo “turbulento, imperativo e sedicioso” de que falava Edmund Burke), reveste-se de uma agressividade ímpar na primeira metade do século 20, com as campanhas de perseguição anticristã movidas por regimes e movimentos políticos de orientação marxista-leninista, e reaparece no começo do século 21 com o movimento neoateísta, tal como resumido na fala de um de seus mais ilustres representantes, o crítico literário Christopher Hitchens: “Penso que a religião deve ser tratada com escárnio, raiva e desprezo, e reivindico esse direito”.

O ódio religioso (mal disfarçado de humor) que o grupo Porta dos Fundos devota ao cristianismo é, portanto, apenas o efeito acumulado de três séculos de propaganda e desinformação. Não há, com efeito, nada de iconoclasta, original ou mordaz nas diatribes anticristãs de um Gregório Duvivier ou um Fábio Porchat, que não passam de subprodutos periféricos de uma cultura do escárnio anticristão, dignos, portanto, muito mais da nossa misericórdia que da nossa indignação. A sua tentativa de chacota é, na verdade, um apelo infantil por chamar a atenção; a confissão de impotência existencial em face da única religião do mundo a ter gerado uma civilização na qual tipos física e espiritualmente frágeis como eles podem prosperar, inclusive à custa do escárnio antirreligioso; a revolta permitida do filho mimado contra os pais que o paparicam, e que, ele bem o sabe, jamais lhe farão mal algum.

A tentativa de chacota é, na verdade, um apelo infantil por chamar a atenção

O escárnio também sempre foi a arma preferida de um outro impotente existencial crônico: Satanás. Não há outra que o anjo decaído mais tema e respeite, pois ela mira diretamente o seu calcanhar de Aquiles: o orgulho – pecado original e satânico por excelência. “O diabo, o espírito orgulhoso, não tolera ser motivo de chacota” – ensinou São Thomas More, ajudando-nos a compreender por que o “coisa-ruim” deseja tanto estar no controle dessa adaga pontiaguda, numa ânsia desesperada por ser sujeito exclusivo, e jamais objeto, de escárnio.

Na condição de “príncipe deste mundo” – razão pela qual odeia Cristo, o Deus encarnado, com todas as suas forças –, Satanás só consegue compreender a lógica do poder mundano, precisamente o poder que, tentando-o, oferece a Jesus Cristo no deserto. Fracassado, todavia, em suas tentativas de corromper o Filho de Deus, resta-lhe apelar ao escárnio. Quando Cristo agoniza na cruz, é ninguém menos que Satanás quem fala pela boca dos escarnecedores: “Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz. Salvou os outros, e não pode salvar-se a si mesmo” (Mc 15,30-31). E, como fizera no deserto, Jesus volta a recusar a tentação de responder segundo a perspectiva do poder mundano.

Quanto ao significado dessa recusa, a análise de René Girard permanece inigualável. Baseado numa documentação antropologicamente vasta, o sábio francês procura demonstrar que o processo por ele chamado de crise mimética (a eleição de um bode expiatório cujo sacrifício termina por apaziguar momentaneamente os conflitos sociais) está presente em toda a mitologia universal, bem como na Bíblia, com presença destacada, sobretudo, no drama da Paixão.

A tese fundamental de Girard é que, semelhantes no que diz respeito ao conteúdo de seus relatos, a Bíblia e os mitos diferem num ponto crucial: enquanto os segundos legitimam a violência cometida pela coletividade, a primeira a vê como injustificável. Enquanto os mitos adotam o ponto de vista da coletividade perseguidora, dando-lhe razão no que se refere à culpabilidade da vítima, os Evangelhos adotam o ponto de vista da vítima, revelando a sua inocência e denunciando a malignidade satânica do mecanismo acusatório. Jesus Cristo transforma-se no modelo universal de todas as vítimas (passadas, presentes e futuras) da lógica sacrificial.

Nesse sentido, os Evangelhos funcionam como uma espécie de metamito: participando do universo mitológico por sua estrutura básica e conteúdo, propõem uma leitura crítica da mitologia universal, explicitando uma verdade que os mitos se esforçam por obliterar, a saber: a coletividade está enganada, pois a vítima é inocente. Se, portanto, a mitologia é a objetificação, em forma narrativa, da auto-ilusão coletiva perante o bode expiatório, as Sagradas Escrituras desfazem essa autoilusão de maneira implacável.

Num dos capítulos mais marcantes do seu livro Eu vi Satanás cair como um relâmpago, Girard comenta sobre o tema paulino do “triunfo da cruz”, iluminando, à luz de sua interpretação geral do cristianismo, este trecho difícil da Epístola aos Colossenses: “[O Cristo] apagou, em detrimento das ordens legais, o título de dívida que existia contra nós; e o suprimiu, pregando-o na cruz, na qual despojou os principados e as autoridades, expondo-os em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo triunfal” (Cl 2,14).

O escárnio também sempre foi a arma preferida de um outro impotente existencial crônico: Satanás

Nessa passagem, o “título de dívida” simboliza a acusação voltada contra a vítima inocente nos mitos. Suprimindo-o, pregando-o na cruz, Cristo promove uma inversão radical no significado da crucificação. Nas palavras de Girard: “Antes do Cristo, a acusação satânica era sempre vitoriosa devido ao contágio violento que aprisionava os homens nos sistemas mítico-rituais. A crucificação reduz a mitologia à impotência ao revelar o contágio cuja eficácia, excessiva nos mitos, impede para sempre que as comunidades identifiquem a verdade, ou seja, a inocência de suas vítimas. Essa acusação aliviava temporariamente os homens de sua violência, mas ela se ‘voltava’ contra eles, pois os submetia a Satanás, ou, em outros termos, aos principados e às potências, com seus deuses mentirosos e seus sacrifícios sangrentos. Tomando sua inocência manifesta nos relatos da Paixão, Jesus ‘apagou’ essa dívida, ‘suprimiu-a’. Agora, é ele quem prega essa acusação na Cruz, ou seja, revela sua falsidade. Enquanto que, habitualmente, a acusação prega a vítima na Cruz, aqui, ao contrário, a própria acusação é pregada, e de alguma forma exibida e denunciada como mentirosa”.

Ademais, tal como lemos na epístola, não apenas a acusação está pregada, mas os próprios principados e potestades são oferecidos em espetáculo diante do mundo. Em alguma medida, também eles estão pregados na cruz, exibidos publicamente em toda a sua obscena nudez, assim como, na Divina Comédia de Dante, é o próprio Satanás quem aparece crucificado e exposto.

A metáfora central no trecho citado da epístola é a do triunfo no sentido romano, o desfile do líder militar vitorioso, que entra na cidade sob aclamação pública, ostentando os seus troféus de guerra, dentre os quais os próprios chefes inimigos acorrentados, que, antes da execução, são exibidos como feras domadas. Um dos episódios mais famosos do tipo (magistralmente retratado na minissérie Roma, da HBO) é o triunfo de César após a vitória sobre o chefe gaulês Vercingetórix.

No caso da Paixão, Cristo é como o general vitorioso. A cruz, antes símbolo de sua derrota, converte-se em símbolo de sua vitória sobre o mundo. A força da metáfora reside, é claro, no seu caráter irônico. Tomada em sentido literal, não poderia haver nada mais distante de uma vitória militar do que a paradoxal vitória de Cristo, pois, em lugar de infligir violência aos outros, é Ele quem a sofre. Ocorre que, sofrendo-a tão definitiva e resignadamente, termina por desmascará-la de uma vez por todas.

Como explica Girard, a ironia da metáfora é tanto mais saborosa quanto mais nos damos conta de que é só o poder terreno que Satanás e seus discípulos respeitam, e de que o triunfo militar ou político é o único triunfo que entendem. A arma que os derrota lhes é, portanto, inconcebível. Justo quando pensavam ter vencido mais uma vez, os principados e potestades veem-se subjugados por uma verdade que transcende a lógica sacrificial e a malícia humana, e contra a qual todo escárnio é impotente.

Feliz 2020 a todos!

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