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A síndrome de Stallone Cobra: ecofundamentalismo e misantropia
| Foto: Divulgação/Warner Bros.

“Portanto, o verdadeiro perigo é a própria humanidade” (Alexander King e Bertrand Schneider, The First Global Revolution, um relatório do conselho do Clube de Roma, 1991. p. 75)

Em setembro de 1776, em comunicação privada com o amigo Maurice Falconet, um Diderot entusiasmado comentava sobre a restrita panelinha de Philosophes da qual fazia parte: “Refiro-me a esse pequeno grupo, essa igreja invisível que escuta, olha, medita, fala baixo, e cuja voz predominará no longo prazo, formando a opinião geral”.

Fora dos limites desse oásis de refinamento, civilização e bons modos, restava o desagradável universo da massa ignara, sobre a qual Diderot não cansou de manifestar o seu visceral desprezo, como quando escreveu num dos verbetes de sua Enciclopédia: “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; a sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito. A multidão é ignorante e confusa. Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas”.

Concordando com Diderot, Voltaire costumava dizer que a fé católica, embora devesse ser extirpada da mentalidade dos homens respeitáveis, deveria ser deixada para “la canaille” (o populacho), que dela carecia. “Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais. Esse é um trabalho para os apóstolos” – dizia o castelão de Ferney, resumindo o espírito pernóstico e elitista do Iluminismo francês.

Na qualidade de ancestral da cultura política progressista contemporânea, o Iluminismo francês transmitiu essa característica essencial aos seus herdeiros ideológicos. Pois, sob os seus mil e um disfarces e pretextos, o progressismo é essencialmente isto: uma visão de mundo elitista e arrogante, neuroticamente compensada por retórica apocalíptica e ostentação de virtude.

Em nenhuma de suas facetas o elitismo progressista é tão evidente quanto no ecofundamentalismo, movimento criado por um punhado de ricaços excêntricos, românticos e misantropos da geração baby boom, membros de uma “igreja invisível” inconformada com a necessidade de dividir o planeta com o restante da humanidade. Era inevitável: pegue um bando de hippies velhos cevados a LSD, misticismo e complexo de superioridade moral, encha-os de dinheiro, poder e meios quase ilimitados de ação, e teremos um grande problema pela frente.

Não é difícil examinar a personalidade das figuras de proa da igreja ecofundamentalista, que não passam de uma centena de almas perturbadas

Foi assim que surgiu o ecofundamentalismo. A despeito de toda a perfumaria com que se apresenta, a sua essência ainda é fundamentalmente esta: o desejo de se distinguir e se afastar de “la canaille”, que, com os seus hábitos incivilizados (dirigir, comer carne, ter uma geladeira, votar no partido Republicano, fumar etc.), polui, povoa e conspurca o jardim do Éden (ou a Woodstock) dos neoiluministas.

E não é difícil examinar a personalidade das figuras de proa da igreja ecofundamentalista, que não passam de uma centena de almas perturbadas, dotadas do temerário poder de ditar os rumos do mundo. Tomemos, por exemplo, o caso do historiador cultural William Irwin Thompson, um típico produto da contracultura americana, autor do best-seller At the Edge of History, e que, no início dos anos 1970, com patrocínio do Rockefeller Brothers Fund, estabeleceu numa fazenda em Southampton (Nova York) uma comunidade alternativa chamada de Lindisfarne Association, dedicada à “educação comunitária contemplativa” e à criação de “uma nova cultura planetária” ecumênica e pós-industrial.

Tendo, aos 11 anos de idade, desenvolvido um câncer na tireoide (que atribuiu à poluição atmosférica e aos testes nucleares realizados pelo governo americano no deserto de Nevada), Thompson concluiu, com um narcisismo bem típico do espírito revolucionário: “Se eu estava doente, o meio-ambiente também estava”.

Logo, sentindo-se enganado pelo governo, pelos pais, pela imprensa e pela espécie humana como um todo, o adolescente californiano reagiu histericamente, desenvolvendo, em suas próprias palavras, “um senso de inquietude e pânico” – dois dos ingredientes básicos de todo milenarismo político.

Em 1962, quando Thompson iniciava a sua pós-graduação na universidade de Cornell, estourou a Crise dos Mísseis entre EUA e URSS, e a personalidade paranoide e apocalíptica do jovem estudante consolidou-se de vez. Junto com dois de seus amigos mais próximos, o jovem estudante buscava alternativas à realidade que o atormentava, examinando cada canto do apartamento compartilhado com os amigos em busca de um refúgio seguro em caso de ataque nuclear. “Enquanto ouvíamos as notícias, falávamos de lugares onde pudéssemos viver, lugares bem distantes das cidades, em algum imaginário e comunitário ‘retorno à natureza’” – relata.

Chegando à idade adulta, foi em Lindisfarne – “Somewhere over the Rainbow”... – que pretendeu realizar o seu sonho juvenil, buscando sintetizar várias tradições religiosas, esotéricas e espirituais existentes, (incluindo a yoga, o budismo tibetano, a medicina tradicional chinesa, o animismo celta, o gnosticismo, a cabala, as antigas religiões de mistério, entre outras) numa espiritualidade universal, fundamento religioso de uma nova civilização planetária, baseada na expansão da consciência e na harmonia com a natureza. Um dos habitantes da comunidade foi o criador da “hipótese Gaia”, o famoso ambientalista James Lovelock (quem, mais recentemente, acabou admitindo ter sido alarmista em relação às “mudanças climáticas” e ao “aquecimento global”).

Outro célebre frequentador de Lindisfarne foi o diplomata canadense Maurice Strong, outrora magnata do petróleo (quanta ironia!), e que depois viria a ser o primeiro chefe do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), tendo sido secretário-geral das conferências da ONU para o clima, em Estocolmo (1972), e no Rio de Janeiro (1992), a famigerada Eco 92. Strong chegou a doar parte do território de seu latifúndio em Crestone (Colorado) para Thompson, onde, no sopé da cordilheira Sangre de Cristo, foi criado um “retiro montanhoso” para a Lindisfarne.

Mas Maurice Strong – que se autodefine como “socialista na ideologia e capitalista no método”, e para quem o grande problema no mundo é o fato de haver “pessoas ricas em demasia” (excluindo ele próprio, é claro, que fez fortuna com combustíveis fósseis) – construiu também o seu retiro próprio em Crestone. Junto com sua esposa dinamarquesa Hanne Strong – que alega se identificar com as “tradições espirituais dos indígenas americanos” –, planejou ali a fundação de uma “aldeia global” para líderes espirituais e ambientalistas, um espaço salpicado de templos, igrejas, jardins e pequenas comunidades autossustentáveis, um repositório de verdade espiritual e desenvolvimento sustentável, ambiente no qual líderes políticos e empresariais poderiam aprender a cuidar de si próprios e da Mãe Terra.

“O mundo está sendo governado por mentalidades ignorantes e confusas” – diz Hanne à repórter do Los Angeles Times (sim, ela usou os mesmos adjetivos de Diderot: “ignorantes” e “confusas”). “É preciso haver uma mudança drástica na forma como as pessoas pensam”.

É no santuário que estabeleceu, conhecido simplesmente por “La Baca” – devido ao antigo nome do território de 160 mil acres, de origem espanhola –, que o casal Strong procura realizar essa mudança de mentalidade, conduzida por meio de um cuidadoso processo de seleção dos habitantes, entre os quais se incluem carmelitas “católicas” (que adoram a Terra mais que o Crucificado), monges tibetanos e zen-budistas, místicos hindus, nativos indígenas (das tribos Sioux, Cree, Navajo, Hopi etc.) e mestres iogues.

Maurice e Hanne são nobres e generosos, mas não querem muita gente na comunidade, para não prejudicar o equilíbrio natural do lugar. “É unidade na diversidade” – diz um dos colonos de La Baca, repetindo um velho bordão progressista e ongueiro (que já andou, inclusive, na boca do ex-presidente – hoje presidiário – Luís Inácio Lula da Silva). Uma diversidade rigidamente controlada, bem entendido. E uma unidade imposta na marra.

A preocupação exclusivista e elitista em frear o desenvolvimento industrial e impedir o crescimento populacional no mundo sempre esteve no cerne do projeto ecofundamentalista, desde que os “sábios” neomalthusianos do Clube de Roma se reuniram pela primeira vez e publicaram Os Limites do Crescimento, relatório catastrofista que previa a escassez iminente de recursos naturais devido à superpopulação. Daí que a mentalidade anticoncepcional e anti-humanista tenha sido, desde o início, uma marca registrada do movimento.

E não são poucos os ecofundamentalistas para os quais a humanidade deve ser simplesmente extinta. Por exemplo, o príncipe Filipe, duque de Edimburgo, declarou certa vez seu desejo de reencarnar como um vírus mortal, “de modo a contribuir de alguma forma para reduzir a superpopulação”. Já Ingrid Newkirk, presidente e co-fundadora do Peta (People for the Ethical Treatment of Animals), definiu a humanidade como “um câncer” e “a maior praga sobre a terra”. E o escritor e ecologista Richard Conniff confessou certa vez que “entre os ambientalistas, depois de duas ou três cervejas, é relativamente comum a opinião de que se, de repente, uma calamidade varresse toda a humanidade da face da terra, então as outras espécies poderiam ter uma chance”.

Portanto, quando o ator Jason Momoa (o Aquaman, guardião dos oceanos) afirmou há alguns dias na ONU que “somos a doença que está infectando o planeta”, e por mais chocante possa parecer para muita gente, ele apenas reproduziu uma opinião padrão entre os ecofundamentalistas. Como herdeiros típicos do elitismo progressista e do esoterismo da “igreja invisível” iluminista, estes fazem questão de se excluir da “humanidade” denunciada, mirando-a de cima para baixo, tal como os deuses no Olimpo, e dizendo, tal como o Stallone Cobra: vocês são a doença; nós, a cura.

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