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A substância do Foro
| Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

“Passados esses 18 anos, ou melhor, vamos pegar 14 anos atrás. Nós fizemos uma pequena revolução democrática na América do Sul e na América Latina. Eu, por exemplo, conheci o [Fidel] em um encontro que fizemos em Cuba. Tinha acabado de ser preso por conta do golpe e acabado de ser liberado. Conheci o Chávez em um encontro do Foro de São Paulo, como conheci também o Daniel Ortega, como conheci tantos companheiros da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia, do Equador, da Venezuela, da Colômbia. Qual é a mudança que houve nesses 18 anos? Olhem o mapa da América do Sul hoje. O que aconteceu na América do Sul é um fenômeno político que, possivelmente, os sociólogos levarão um tempo para compreender, porque aconteceu tão rápido a mudança que houve, uma mudança extremamente importante.” (Luiz Inácio Lula da Silva, discurso de encerramento do Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul, 6 de dezembro de 2007)

Não pretendia voltar a falar do Foro de São Paulo, mas, já que boa parte da imprensa insiste em mentir sobre o tema, sinto-me no dever de restituir a verdade aos leitores, já adiantando que o próximo artigo também será dedicado à tarefa. A mentira básica, mil vezes repetida, é aquela que discuti no artigo da semana passada, a saber: que a entidade jamais passou de um inócuo fórum de debates, e que ver nela qualquer relevância política, ou alertar para a malignidade do seu projeto, é coisa de teóricos da conspiração.

Esse foi, por exemplo, o teor de uma matéria recente do Estadão, que convidou um daqueles típicos “especialistas” midiáticos, sempre tão dedicados a proteger o consenso dos bem pensantes, para desencorajar os leitores a se aprofundar no assunto, resumindo tudo a esta conclusão peremptória: “O Foro de São Paulo como bloco, como um lugar de gerar iniciativas, de definir pautas, com eficácia a atuação política, sempre foi muito mais simbólico… Não é que ele foi esvaziado agora ou antes, ele é justamente o que o nome diz, é um foro. Os líderes gostam de participar, é como se fosse um congresso de pessoas que pensam mais ou menos igual, que têm objetivos comuns, mas nunca foi nada além disso. Muito do que se coloca para além dessas questões são teorias conspiratórias”.

A definição mais precisa do Foro de São Paulo está no projeto de poder de seus líderes, que fundiu a política com o crime

Excluindo, por ora, os setores mais corruptos da imprensa – que trabalham ativamente com desinformação, e que têm no acobertamento do Foro uma missão política a cumprir –, mesmo veículos e jornalistas mais sérios tendem a concluir pela inocuidade da entidade, com base numa atenção exclusiva aos seus encontros anuais, a sua face mais visível. Nos tempos longínquos em que denunciava o PT, a própriaVeja produziu uma curta videorreportagem sobre um desses encontros, ocorrido em Montevidéu no ano de 2008. Intitulado “Foro de São Paulo: o encontro dos dinossauros”, o material pretendia-se crítico, mas acabou se mostrando benevolente, ao retratar uma tediosa reunião de velhos militantes de esquerda, inofensivos em sua embolorada retórica anti-imperialista, dignos não da indignação, mas da misericórdia do público. Afinal, os dinossauros foram extintos, e quem teria medo de um punhado de fósseis ideológicos, não é mesmo?

Ocorre que tentar compreender o que é o Foro de São Paulo considerando apenas os seus encontros anuais – cujo público é majoritariamente formado pela arraia-miúda da militância – é o mesmo que tentar compreender o que é uma universidade olhando para a fachada de um dos seus prédios. Definitivamente, os encontros anuais do Foro não são o Foro. O Foro é, por assim dizer, tudo aquilo que acontece no intervalo dos encontros, nas conversas de bastidores e acordos privados entre os tubarões da entidade. Tubarões como Lula, Fidel, Chávez, Maduro, Kirchner e Morales, que, ao chegarem ao poder em seus respectivos países, começaram a pôr em prática, de maneira constante, estratégica e sempre articulada, o seu projeto comum e continental de poder, um projeto que, como nunca antes, fundiu a política com o crime (corrupção, narcotráfico e terrorismo) – e é esta, no fim das contas, a definição mais precisa do Foro de São Paulo.

Sem levar em conta esse projeto, é simplesmente impossível decifrar certas decisões e atitudes dos dirigentes dos países-membros, que só no conjunto se esclarecem, como uma peça de um vasto quebra-cabeça geopolítico. Sabemos hoje, por exemplo, as razões do empenho da então presidente argentina Cristina Kirchner em interferir nas investigações para encobrir a participação iraniana no atentado terrorista contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que, em 1994, matou 85 pessoas e feriu outras centenas na capital argentina. Como mostra o jornalista Leonardo Coutinho no livro indispensável que mencionei no artigo anterior, o acobertamento fazia parte de um acordo sigiloso de cooperação nuclear entre Kirchner e Ahmadinejad, que buscava avançar o seu programa nuclear com fins belicistas. Com mediação e participação de Hugo Chávez – um notório antissemita, fã declarado do regime dos aiatolás, e a quem Ahmadinejad foi pessoalmente pedir ajuda –, o acordo envolveu toda sorte de crimes, incluindo o trânsito ilegal (burlando o direito internacional) de dinheiro, equipamentos, produtos químicos, armamentos e tecnologia entre os três governos, nos moldes tradicionais do crime organizado, via empresas de fachada e lavagem de dinheiro. Como se sabe, as investigações sobre a participação de Kirchner na trama culminaram no assassinato do promotor Alberto Nisman, que, justo às vésperas de apresentar os resultados de seu inquérito no Parlamento argentino, “suicidou-se” em seu apartamento (segundo a versão oficial).

São muitos os exemplos de alta traição à pátria cometidos pelos cabeças do Foro de São Paulo contra os seus países

Sem olhar para as “ações entre companheiros” tramadas no âmbito do Foro de São Paulo – para usarmos a descrição do próprio Lula –, seria impossível também compreender alguns fatos cujos detalhes foram revelados pela Operação Lava Jato, a exemplo da construção do Porto de Mariel, em Cuba. Com o objetivo declarado de fortalecer a ditadura comunista dos irmãos Castro, o empreendimento resultou de um pedido direto de Hugo Chávez a Emilio Odebrecht e contou, evidentemente, com o aval e a mediação de Lula, que interveio junto ao BNDES para que fosse liberado um generoso empréstimo de quase US$ 700 milhões. Para garantir a concessão do dinheiro a juros muito abaixo do mercado, Lula ignorou uma série de pareceres técnicos que afirmavam a inviabilidade do negócio, em tudo prejudicial aos interesses do Brasil. Como prova adicional do caráter espúrio do acerto, decretou-se sobre o empréstimo um sigilo que deveria durar até o ano de 2027.

Também a construção da Refinaria Abreu e Lima – símbolo máximo da interferência de Hugo Chávez nos assuntos brasileiros – é prova inconteste de que, para as suas lideranças, os objetivos estratégicos do Foro sempre prevaleceram sobre os interesses nacionais. Projetada com um custo inicial de US$ 2,3 bilhões, a obra foi parcialmente concluída com sete anos de atraso, um custo final 20 vezes maior, e processando a metade da quantidade prevista de barris de petróleo. Tudo não passava de um desejo pessoal de Chávez, prontamente atendido pelo companheiro Lula, mesmo que para isso precisasse sacrificar o erário brasileiro. E, com efeito, a parceria estimada entre a Petrobras e a petrolífera chavista PDVSA, que deveria arcar com 40% dos custos, terminou sem que os venezuelanos pusessem um dólar sequer no empreendimento. Coube inteiramente ao Brasil arcar com o prejuízo da refinaria mais cara e ineficiente do mundo.

Poderíamos citar, ainda, a trama entre Lula e Evo Morales para, em 2006, expropriar as refinarias da Petrobrás na Bolívia, causando ao Brasil um prejuízo de R$ 1,5 bilhão. “O Evo me perguntou: ‘como vocês ficarão se nós nacionalizarmos a Petrobras’. Respondi: ‘o gás é de vocês’” – confessou Lula em 2015, tratando um patrimônio do Estado brasileiro como propriedade particular a ser distribuída entre os coleguinhas de Foro. Na época, a imprensa brasileira (hoje obsessivamente atenta a todas as palavras ditas pelo presidente da República) não viu nada de mais na confissão, e, desviando o olhar, deu o assunto por encerrado. São muitos, enfim, os exemplos de alta traição à pátria cometidos pelos cabeças do Foro de São Paulo contra os seus países. E, por ora, ainda nem chegamos a abordar o lado mais obscuro e sinistro da entidade, que fez do narcotráfico e do terrorismo internacional ferramentas para a construção da hegemonia política. Será esse o tema do artigo da semana que vem.

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