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Foto: Leila Haj-Hassan/Free Images
Foto: Leila Haj-Hassan/Free Images| Foto:

“Raras vezes vimos toda a elite de um continente abraçar a culpa com tanto entusiasmo, ao ponto de assumir a responsabilidade por erros alheios, voluntariar-se pelas mais distantes catástrofes, e choramingar: ‘Arrependo-me! Arrependo-me! Alguém tem um crime para me emprestar?’”

(Pascal Bruckner, A Tirania da Penitência)

Minha primeira viagem a Paris foi em 2009. Da estada, que durou quase um mês, trago na memória a sensação de deslumbramento com a cidade, que então me pareceu (como tantos já cantaram em prosa e verso) a mais bonita do mundo. Era o fim do inverno europeu, e foi num café em Montmartre que, olhando através dos vidros baços por vapores de casacos recém-tirados e croissants recém-assados, vi o cair da neve pela primeira vez. Não havia dúvidas, e nada nem ninguém conseguiria me convencer do contrário (nem mesmo a reiterada convicção de um amigo à época, para quem Paris não passava de um subúrbio carioca se comparada a Londres): tratava-se mesmo da cidade mais bonita do mundo.

Voltei a Paris cinco anos depois e experimentei sensação bem diferente. A cidade parecia ter decaído brutalmente. Não posso afirmar com certeza se, num intervalo de cinco anos, houve de fato uma degradação objetiva, ou se a situação já era essa em 2009, tendo escapado à minha percepção graças ao deslumbramento do primeiro encontro. Mas o que eu via dessa vez era um lugar caótico, favelizado, com lixo espalhado pelas ruas (aliás, inteiramente tomadas por vendedores ambulantes), fontes sem água e canteiros ressequidos. Paris continuava belíssima, é claro. Mas, agora, era uma beleza triste e mortiça, como a que caracteriza o Réquiem de Mozart. A Cidade Luz tornara-se cidade-melancolia. Tal qual um doente terminal, parecia exausta e ansiosa por despedir-se deste mundo.

Se, na primeira vez, encantara-me particularmente com a atmosfera alegre, jovial e vibrante da capital francesa, refletida na fisionomia leve dos turistas e flaneurs locais, surpreendia-me agora com um ambiente carregado, no qual se destacavam semblantes fechados e olhares hostis. À noite, num mercado próximo ao hotel, no 14.º Arrondissement, um jovem com o rosto coberto e forte sotaque magrebino tratava os funcionários com agressividade, gritando e gesticulando ameaçadoramente ao passar com suas mercadorias no caixa. Ninguém respondia. Ninguém o olhava. Ninguém nem sequer respirava. Tudo o que faziam era baixar os olhos e suportar com resignação sua saraivada de impropérios, como que se desculpando por havê-lo irritado.

Lembrei do episódio ao ler uma matéria recente sobre a catastrófica política imigratória francesa, iniciada por François Hollande e agora prosseguida por Emmanuel Macron. Enquanto intelectuais como Gilles Kepel e até políticos como Gérard Collomb, ministro do Interior de Macron até o mês passado, alertam para os riscos concretos de uma secessão ou “fratura” definitiva (como diz o título da obra mais recente de Kepel) entre a velha França e a França islâmica, Macron – típico representante dessa nova elite globalista/europeísta formada por indivíduos cosmopolitas, culturalmente desenraizados (muitos, por coincidência, sem filhos) e alheios aos valores nacionais – continua celebrando o sucesso da “integração” europeia e do “compartilhamento” de valores. Ao mesmo tempo, como que ignorando a “invasão vertical dos bárbaros” que ora ameaça o seu país, o presidente francês não se vexa em afirmar que os europeus precisam se proteger… dos Estados Unidos!

Ora, certamente não é com os Estados Unidos que o senhor de 60 anos agredido em Paris na semana passada está preocupado. Ao sair do metrô na estação Alésia (por acaso no mesmo Arrondissement onde, em 2014, presenciei o incidente no mercado), levando consigo embrulhos natalinos, ele foi interpelado por um estranho, que, após arrancar-lhe os óculos com um safanão, esbofeteou-o no rosto, dizendo: “Isso é o que fazemos com infiéis”. Os judeus franceses tampouco parecem querer se proteger contra os Estados Unidos. Sua preocupação, ao contrário, é com os ataques antissemitas praticados por radicais islâmicos, cada vez mais recorrentes nos últimos anos. Apenas em 2018, houve alguns casos brutais.

Em Paris, no 11.º Arrondissement, uma idosa sobrevivente do Holocausto foi morta com múltiplos golpes de faca dentro de seu apartamento, que ainda seria incendiado pelos assassinos, num crime muito semelhante ao que ocorrera um ano antes. Mireille Knoll, 85 anos, sobreviveu aos nazistas, mas não aos seus velhos aliados. No subúrbio de Sarcelles, na região norte da capital, um menino de 8 anos foi brutalmente espancado por estar usando um quipá. Três semanas antes, um mercado kosher havia sido depredado na mesma região, apelidada de “pequena Jerusalém” graças à sua numerosa população judaica. Em setembro, a frase “aqui vive o lixo judeu” foi pichada na porta de um apartamento no 18.º Arrondissement. Deve ser isso que, de dentro de sua bolha globalista, Macron chama de “integração” e “compartilhamento” de valores. Enquanto isso, multidões de judeus franceses fogem do país em busca de refúgio em Israel.

O caso da França talvez seja o exemplo mais claro da doença espiritual que Pascal Bruckner, numa obra inescapável, chamou de “tirania da penitência”: a tendência culturalmente masoquista da intelligentsia ocidental a ver o Ocidente como a raiz de todos os males, inclusive daqueles (como o terrorismo islâmico, por exemplo) que o vitimizam. Com efeito, esse ódio a si mesmo é levado ao paroxismo quando, por exemplo, intelectuais europeus e americanos se propõem a compreender os ataques terroristas como reações de algum modo justificáveis (se não moral, ao menos racionalmente) ao imperialismo ocidental. A cada novo atentado, é como se nossa classe falante murmurasse em uníssono: Nós fizemos por merecer!  Depois do atentado no metrô de Londres em 2005, por exemplo, a manchete de um jornal parisiense foi nada menos que “Al-Qaeda pune Londres”. E o próprio prefeito da cidade, o ultraesquerdista Ken Livingstone (conhecido como “Red Ken”), atribuiu os ataques à interferência das potências ocidentais no mundo árabe a partir da Primeira Guerra.

Esse tipo de argumento baseia-se na mesma lógica de quem tenta responsabilizar a vítima de um estupro por estar usando uma roupa “provocante” no momento do crime. Uma lógica que todo intelectual europeu ou americano apressaria-se por condenar no caso do estupro, mas que não hesita em adotar no caso do terrorismo islâmico. Se o leitor pensa que exagero, lembro que foi exatamente nesses termos que o filósofo francês Jean Baudrillard interpretou o 11 de Setembro de 2001: “Olhando de perto, pode-se dizer que eles o fizeram, mas nós o desejamos… Quando o poder global monopoliza a situação a este nível, quando há tamanha condensação de todas as funções na maquinaria tecnocrática, e quando nenhuma forma alternativa de pensamento é permitida, que outro caminho há senão uma guinada situacional terrorista? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa brutal retaliação”.

A opinião de Baudrillard é representativa do que pensou à época grande parte da intelligentsia europeia (e mesmo americana, pois Noam Chomsky foi pela mesma linha). Ou seja, é como se a brutalidade do ataque confirmasse a intensidade do ressentimento do agressor; e, consequentemente, como se a mera existência de um tal ressentimento servisse, ao fim e ao cabo, de prova definitiva da culpa primordial do Ocidente. Como escreve Bruckner sobre esse masoquismo existencial: “Nós, europeus, nascemos com um fardo de vício e malignidade que nos marca como um estigma, pois nos obriga a reconhecer que o homem branco espalhou dor e ruína por onde quer que tenha passado. Para ele, existir é, antes de mais nada, desculpar-se”.

O antiocidentalismo é, de fato, uma tradição europeia pelo menos desde Montaigne. Nada mais ocidental do que o ódio ao Ocidente nutrido por intelectuais ocidentais, que, portanto, se irmanam espiritualmente aos radicais islâmicos num projeto comum de aniquilação civilizacional. Quando lembramos da pergunta de György Lukács: “Quem nos salvará da civilização ocidental?”; quando pensamos no poeta Louis Aragon condenando o Ocidente à morte e rogando aos “traficantes de drogas” para que “atacassem os nossos países em pânico”; quando, enfim, percebemos que os intelectuais ocidentais não se cansam de clamar por anjos vingadores terceiromundistas que os purifiquem por meio da violência, fica mais fácil de entender por que essa civilização, e a França em especial, resolveu entregar o próprio pescoço à ação penitente e redentora da cimitarra islâmica…

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