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“Se alguém, depois de ter reconhecido publicamente os dogmas da religião civil, se conduz como se não acreditasse neles, que seja punido com a morte”

(Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social, 1762)

Como vimos no último artigo da série, a Segunda Guerra Mundial exerceu forte impacto na interpretação do fascismo, tanto para leigos quanto para especialistas. Ao fim da guerra, a circunstância empírica de que as potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) houvessem se aliado militarmente acabou influenciando a linguagem da teoria política, dando origem à tendência (péssima para fins científicos) de agrupar indistintamente, sob o rótulo genérico fascismo, três regimes tão distintos quanto os de Mussolini, Hitler e Hirohito. No lado vitorioso, como corolário, democracias paradigmáticas como a dos EUA e a da Inglaterra acabaram abrigadas junto com a ditadura soviética sob o guarda-chuva virtuoso do antifascismo. Como se vê, a ideia de adotar alianças militares contingenciais como critério de classificação política só poderia ter gerado, como de fato gerou, uma confusão conceitual dos diabos.

Depois da Segunda Guerra, portanto, e obviamente por conta dos horrores do Holocausto nazista, o fascismo genérico passou a ser caracterizado como uma patologia política, objeto de um repúdio generalizado sem precedentes na história. A barbárie e a desumanidade pareciam ser a sua essência mesma, e simplesmente apontá-las passou a ser quase sinônimo de compreender o fenômeno. O governo de Mussolini (violento, sim, mas decerto não genocida) recebeu o mesmo tratamento do nacional-socialismo de Hitler, ao passo que o regime de Stalin (esse sim, mais genocida que o próprio nacional-socialismo) não recebeu condenação moral equivalente. Muito pelo contrário, para grande parte da intelligentsia progressista do Ocidente, a URSS continuava sendo “um santuário moral, onde a luz nunca para de brilhar” – como a descreveu certa vez o escritor americano Edmund Wilson.

Como mostrei no artigo anterior, o livro A Natureza do Fascismo (1991) – no qual o autor, Roger Griffin, define o fascismo como  “um gênero de ideologia política cujo núcleo mítico, em suas variadas permutações, consiste numa forma palingenética de ultranacionalismo populista” – é um caso representativo, e relativamente tardio, de patologização teórica do fascismo genérico, que outros estudiosos contemporâneos consideram uma falha metodológica grave, sobretudo pela tendência de tratá-lo de maneira excepcional e à parte de outros regimes políticos tão ou mais bárbaros, notadamente os comunistas. Como bem nota Alain Besançon em A Infelicidade do Século (1998), enquanto os crimes contra a humanidade cometidos pelo fascismo (e ele se referia particularmente ao nacional-socialismo) têm sido objeto de uma hipermnésia histórica, o comunismo, ao contrário, tem se beneficiado de uma confortável amnésia. Escreve o autor:

“O nazismo, apesar de completamente extinto há mais de meio século, segue sendo, com razão, objeto de uma execração que não diminui com o tempo. A reflexão horrorizada sobre ele parece até aumentar a cada ano em profundidade e extensão. O comunismo, em compensação, apesar de sua memória mais recente, e apesar inclusive de sua dissolução, beneficiou-se de uma amnésia e de uma anistia que colhem o consentimento quase unânime, não apenas de seus partidários, pois eles ainda existem, como também de seus mais determinados inimigos e até mesmo de suas vítimas. Nem uns nem outros se sentem confortáveis para tirá-lo do esquecimento”.

Problemática o quanto seja, o fato é que a obra de Griffin tem papel de destaque numa longa tradição intelectual de controvérsia acerca da definição de fascismo, considerada por dez entre dez especialistas como pré-requisito inescapável a qualquer esforço de compreensão e classificação. Há, nessa controvérsia, espaço para todo tipo de abordagem, que varia num gradiente entre concepções particularistas como as de um Renzo De Felice – que, em Le Interpretazioni del Fascismo (1982), rejeita a noção de fascismo genérico, preferindo reservar o termo única e exclusivamente para o regime de Mussolini – e posições generalistas como as de Stanley Payne, Robert O. Paxton e, claro, do próprio Griffin.

Muitas tentativas de definir e tipificar o fascismo genérico tanto antecederam quanto sucederam a de Griffin. Em 1968, o historiador alemão Ernst Nolte estabelecera uma espécie de mínimo denominador do fascismo. Esse “mínimo” consistia em seis pontos definidores: antimarxismo, antiliberalismo, anticonservadorismo, valorização da autoridade, uma milícia partidária e o totalitarismo como meta (o famoso “Tudo no Estado. Nada contra o Estado. Nada fora do Estado”). Em 1992, o historiador italiano Emilio Gentile escreveu um consagrado verbete sobre o fascismo na Enciclopédia Italiana, no qual se complexificava os “seis pontos” de Nolte, e se propunha uma densa e sofisticada lista de dez pontos. Na definição de Gentile, o fascismo é:

    Em 1995, dando continuidade a essa tradição tipológica, o historiador Stanley Payne inspirou-se em modelo tripartite proposto pelo grande cientista político espanhol Juan J. Linz para chegar a uma definição criterial aplicável a todos os movimentos fascistas do entreguerras, definição que consiste na identificação de a) pontos comuns em ideologia e metas; b) um conjunto de negações; e c) traços compartilhados de estilo e organização. Payne organizou essa tipologia descritiva numa tabela:

    1. Ideologia e metas:

    Defesa de uma filosofia idealista, vitalista e voluntarista, envolvendo a tentativa de criar uma nova cultura moderna, autoconfiante e secular.

    2. Negações:

    Antiliberalismo;

    Anticomunismo;

    Anticonservadorismo.

    3. Estilo e organização:

    Mobilização das massas mediante a militarização das relações sociais, tendo em vista a organização de uma milícia partidária.

    Ênfase na estética das manifestações públicas, por meio de símbolos e de uma liturgia política que reforcem as paixões populares.

    Ênfase numa ética da masculinidade e numa visão orgânica da sociedade.

    Exaltação da juventude, com estímulo ao conflito de gerações como gatilho para grandes transformações políticas.

    Valorização de uma liderança autoritária, carismática e personalista, quer tenha sido conduzida ao poder mediante eleição, quer mediante golpe de estado.

     

    Nessas e em outras tipologias, percebe-se que o fascismo genérico apresenta elementos capazes de situá-lo tanto na direita quanto na esquerda, conforme o entendimento usual desses termos. Os estudiosos citados são praticamente unânimes em apontar, por exemplo, o caráter eminentemente revolucionário, anticonservador e anticapitalista do fascismo. Sendo que, numa tradição que começa com Edmund Burke e passa por líderes políticos como Churchill, Thatcher e Reagan, a direita tem sido associada, entre outras coisas, ao conservadorismo, à contrarrevolução e à defesa do capitalismo liberal, fica difícil compreender a sua identificação imediata e inequívoca com o fascismo. Ela só faria algum sentido sob o critério único e restrito do anticomunismo.

    Se, de outra parte, e como de hábito, se opte por caracterizar o pensamento de direita como uma defesa da tradição religiosa cristã contra os avanços do secularismo iluminista, sua relação com o fascismo genérico torna-se ainda menos nítida. Como explica Payne: “A ideologia fascista, diferentemente da ideologia de direita, é na maior parte dos casos secular”. Antes que contrárias ao Iluminismo, as ideias fascistas são “produto de aspectos do Iluminismo derivado especificamente dos conceitos modernos, seculares e prometeicos típicos do século 18”. O autor nota ainda que “o esforço para criar uma nova religião civil era fundamental ao fascismo”. E a proposta de uma “religião civil”, convém lembrar, foi inaugurada por ninguém menos que Jean-Jacques Rousseau, patriarca espiritual da esquerda contemporânea.

    Em seu Interpretações do Fascismo (1974), A. James Gregor demonstra o quanto a dicotomia direita-esquerda foi prejudicial para a compreensão do fascismo, e do quão ideologicamente contaminada é essa chave interpretativa. Em suas palavras: “Durante grande parte do século 20, analistas dos eventos políticos mundiais têm lidado com os sistemas revolucionários modernos em termos de uma dicotomia esquerda-direita na qual a ‘esquerda’ permanece de algum modo ligada à tradição do Iluminismo, e a ‘direita’ é identificada com uma bestialidade primordial. Quase sempre, o fascismo é descrito como ‘irracional’ e ‘psicopatológico’. Essas caracterizações raramente são empregadas na análise dos regimes marxistas-leninistas, não importa o quão bestiais tenham sido”.

    Foi para escapar desse problema que, na segunda metade do século 20, muitos intelectuais (com destaque, evidentemente, para a filósofa Hannah Arendt) começaram a insistir no emprego do termo totalitarismo, entendido como um tipo ideal, para se referir aos movimentos políticos de massa do período. Mas este é tema para o nosso próximo artigo.

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