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Cena do filme Tropa de Elite. Foto: Universal Pictures/Divulgação.
Cena do filme Tropa de Elite. Foto: Universal Pictures/Divulgação.| Foto:

“Se tão nefandos crimes merecem honrarias, de que vale entoar cânticos em louvor dos deuses?”

(Sófocles, Édipo Rei)

 “Um em cada quatro menores assassinados no Rio em 2017 foi morto pela polícia” – lê-se na manchete do jornal Extra, do grupo Globo. Desconsiderando três das quatro causas principais mencionadas no corpo da matéria (homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte), os redatores acharam por bem enfatizar apenas a quarta e última: “homicídios decorrentes de intervenção legal”. Assim, tentavam ocultar do público a informação de que a maioria dos “menores” mortos em intervenções legais são traficantes fortemente armados, dando a impressão de que a polícia, por puro sadismo, sai pelas ruas à caça de criancinhas indefesas. Tampouco informavam ao público que o emprego do termo homicídio para qualificar as mortes decorrentes de ação policial (mesmo aquelas em que o agente da lei está sob fogo cerrado do inimigo) é parte do entulho ideológico petista incluído no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), uma lamentável herança que nos legou a deputada de extrema-esquerda Maria do Rosário, então ministra da pasta de – mas o que é isso? – Direitos Humanos.

A opção editorial por destacar o envolvimento de policiais na morte de “menores” não é inocente, é claro. Ela é parte de toda uma cultura de vilanização da polícia e leniência para com criminosos, que, ao longo de décadas, tem se manifestado no cinema e na literatura nacionais (como apontou Olavo de Carvalho em artigo seminal), mas também, de maneira alarmante, no âmbito do direito penal (como demonstram brilhantemente os promotores Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza em Bandidolatria e Democídio: ensaios sobre garantismo penal e a criminalidade no Brasil). Essa cultura (de inspiração marxista, como veremos) ajudou a criar o ambiente de impunidade do qual se nutre o crime no país, ao tratar as forças policiais como agentes reacionários da opressão capitalista contra a classe trabalhadora. Dessa perspectiva, e por extensão, os criminosos passam a ser vistos como protorrevolucionários anticapitalistas, despertando em nossa elite cultural um misto de fascínio e medo – ou terror e êxtase, para recordar o título do livro de Carlinhos Oliveira, depois transformado em filme por Antônio Calmon, que testemunha bem o início da aproximação (notória, sobretudo, no Rio de Janeiro) entre os setores mais progressistas da classe média (com destaque para intelectuais e artistas) e o mundo do crime. Essa aproximação, que começou nas praias, nos botecos e nas boates, terminou, mais tarde, consagrada numa cultura acadêmica espantosamente bandidólatra.

No Brasil, portanto, não há tema em que o abismo entre a classe falante e o brasileiro médio seja mais evidente, e em que a alienação daquela se revele mais fatal, do que a segurança pública. Enquanto, no geral, o foco de intelectuais e jornalistas recai quase que exclusivamente sobre os eventuais excessos cometidos pela polícia (quer reais, quer imaginários), a população, sobretudo a de menor poder aquisitivo (vítima preferencial da bandidagem), julga que o Estado tem sido frouxo com os criminosos, e clama por uma atuação mais incisiva das forças de segurança. Enquanto aqueles se dedicam a um inventário de causas sociológicas abstratas para o crime, no qual a responsabilidade individual do criminoso some de cena, esta vê o bandido concreto como um vagabundo, que decide assaltar ou traficar por vontade própria, preguiçoso que é para o trabalho honesto, ao qual, por sua vez, se dedicam as suas vítimas, de origem tão ou mais pobre que a dele. Enquanto a intelligentsia sonha com o desencarceramento em massa, a população quer ver bandido na cadeia (ou, se assim tiver de ser, no cemitério).

Mas a matéria do Extra não é caso isolado. Nas últimas décadas, a cobertura jornalística da segurança pública foi fortemente contaminada pela ideologia antipolícia que viceja na universidade, especialmente no campo das ciências sociais e jurídicas. Essa ideologia, que lança um olhar tolerante e até mesmo simpático aos criminosos (quem não lembra, por exemplo, da filósofa Márcia Tiburi, candidata petista ao governo do Rio, dizendo-se “a favor do assalto”?), baseia-se numa ideia de matriz marxista, que, direta ou indiretamente, orienta o pensamento de nove entre dez intelectuais brasileiros envolvidos com segurança pública: as instituições de repressão ao crime (incluindo aí as forças policiais e o próprio sistema penal como um todo) são inerentemente “reacionárias”, pois surgem com o capitalismo e visam à manutenção da ordem social burguesa. Daí que, nessa perspectiva, o combate ao crime afigure-se como mero pretexto das classes dominantes para subjugar as classes dominadas.

Se o leitor pensa que exagero, cito textualmente o que alguns intelectuais de prestígio, confortavelmente instalados em cargos e posições relevantes dentro do sistema de segurança pública, têm dito e escrito sobre o assunto. “A gente tem que deixar de prender e pensar qual é a corresponsabilidade que cada ator tem nesse processo” – diz uma socióloga, sem incluir os criminosos no rol de atores responsáveis pelos crimes. Para ela, é preciso rever “essa cultura tão disseminada de que prender resolve”. Um colega seu, por sua vez, afirma ser preciso recusar “essa noção de ‘crime’” – e faz aspas com os dedinhos ao pronunciar esta última palavra. “A pena é o ato de poder mais violento que se pode imaginar. A pena duplica o sofrimento” – diz um velho e conhecido professor de direito penal, que, na esteira do brizolismo, chegou a governar o Rio de Janeiro na década de 1990, sempre apostando na extravagante ideia de que punir o criminoso é algo muito mais grave do que o crime em si. “A gente já parte de uma premissa equivocada, de que há uma divisão na sociedade entre homens bons e criminosos” – sugere outro professor de direito, esse bastante jovem, que parece não ver qualquer diferença entre o sujeito que acorda às cinco da manhã para trabalhar, e aquele que, ao fim do dia, empunha uma pistola para assaltar o primeiro. “O objetivo inicial da prisão não era punir crimes, mas adestrar uma mão de obra necessária para o surgimento do capitalismo industrial. A prisão nasce como uma espécie de irmã siamesa da fábrica” – continua. E, em seguida, arrisca mais uma de suas teorias joviais, daquelas que fazem sucesso com os alunos no happy hour depois das aulas: “Com o fim da Guerra Fria, como já não havia mais o comunismo, os EUA inventaram o terrorismo como novo inimigo, e nós inventamos o traficante” (sic). Sim, para o jurista, aquela figura no morro portando um fuzil automático não passa de uma construção social. Assim como os terroristas que derrubaram as Torres Gêmeas.

Naquela mesma linha, uma socióloga influente no ramo da criminologia condena o que descreve como “demonização da figura do [aspas com os dedinhos] traficante”, que ela propõe chamar eufemisticamente de “comerciante varejista de drogas”. Segundo a professora doutora, o sistema penal brasileiro faz uma “leitura criminalizante das estratégias de sobrevivência dos pobres”. A guerra às drogas, diz ela, é uma “guerra contra os pobres”. E acrescenta, com um lirismo que não lhe coube no peito: “A juventude popular é controlada devido à sua potência, pela quantidade de porvires utópicos que ela desperta no Brasil”. Que o leitor não se deixe hipnotizar pelo hocus pocus acadêmico. Por “juventude popular”, a socióloga poetisa não se refere ao rapaz que trabalha na mercearia do avô, ao adolescente que faz aulas de guitarra na igreja, ou ao menino que sonha em ser PM como o pai. Nada disso. Ela está pensando exclusivamente nos traficantes menores de idade. Estes não seriam confrontados pela polícia por estarem armados até os dentes, mas por sua “potência” e “quantidade de porvires utópicos” (seja lá que diabos isso signifique). Também adepta da tese de que “a prisão surgiu junto com o capitalismo”, adiciona ainda um componente racial a tão perversa instituição: “a prisão é uma construção histórica e social do Ocidente branco”. Maldito Ocidente branco…

Na introdução de uma obra sua, tomada como referência no meio especializado, a mesma socióloga situa o próprio trabalho na tradição de uma criminologia “que possa servir às lutas da América Latina” (e não é difícil imaginar quais seriam essas lutas). Suas influências são abertamente declaradas: “Rusche, Foucault, Melossi e Pavarini são escolas: estão dentro disso tudo que falei, dando direção, atualizando a obra de Marx na questão criminal. Aliás, é em Marx que tudo começa. Só os tolos podem achar que a obra marxista está superada; ela só será superada quando derrotarmos o capitalismo. E, modestamente, gostaria de contribuir para isso ao desconstruir as relações entre a pena e o capital”. Na conclusão do livro, proclamam-se alguns dos grandes objetivos da escola bandidólatra (ou “antipunitivista”) de criminologia: “Abrir os muros das prisões para sua comunicação com o mundo, seus amores, suas famílias, seus amigos, seus cronistas. Transformar a ideologia do combate em grandes instaurações de mediações horizontais no sentido do desarmamento. Diminuir em grande proporção o número de policiais, desarmando-os e transformando-os em agentes coletivos de defesa civil”.

E é ainda a intelectual dos “porvires utópicos” quem escreve o prefácio à edição brasileira do livro Punir os Pobres, de autoria do sociólogo francês Loïc Wacquant, representante nos EUA, onde leciona na Universidade da Califórnia, da teoria de que o sistema penal “criminaliza a pobreza”. A certa altura do texto, a prefaciadora revela toda a alienação da intelectualidade progressista, capaz de se surpreender com aquilo que, para inteligências normais, não passa do óbvio ululante. Escreve ela sobre Wacquant: “Seu artigo ‘O vento punitivo que sopra da América’ nos surpreendeu, não pelo seu conteúdo, que conflui com a nossa produção sobre a matéria, mas pelo seu aparecimento na mídia, que dificilmente abre mão do senso comum imposto ao público quando o assunto é sistema penal”.

Ora, se há algum senso comum de que a mídia não abre mão quando o assunto é sistema penal, como ilustra a matéria do jornal Extra, é precisamente aquele difundido por acadêmicos da estirpe da socióloga, que, com base num submarxismo de DCE, vilanizam a polícia e aliviam a barra dos criminosos. Uma análise sociológica rudimentar bastaria para demonstrar que a mídia é formada por profissionais egressos dos mesmos quartéis-generais da ideologia antipunitivista dos quais saiu a socióloga. Quem são, afinal, os “especialistas em segurança pública” com espaço exclusivo na mídia se não tipos como ela própria, que repetem sem cessar, para o deslumbre dos estúdios e redações, a eterna ladainha da “criminalização da pobreza” – sem conseguir explicar, é claro, que pobreza é essa capaz de gastar mais de R$ 200 mil numa Browning .50 de uso restrito das forças armadas americanas, arma recém apreendida pela polícia civil do Rio de Janeiro.

Enfim, ao contrário do que dizem os especialistas midiáticos – que, pela afinidade com um certo partido de extrema-esquerda conhecido por sua bandidolatria, eu gosto de chamar de espsolistas –, os trabalhadores pobres não se sentem “criminalizados” pelo nosso sistema penal. E, como prova o alto índice de aprovação popular da intervenção federal no Rio de Janeiro (que contrasta com a reprovação quase unânime observada numa classe falante eternamente traumatizada com o regime militar), não é das forças de segurança que têm medo. Contrariando os “porvires utópicos” de intelectuais que insistem em derrotar o capitalismo, os pobres tampouco se sentem explorados pelo dono da empresa ou comércio em que trabalham. Sentem-se explorados, isso sim, pelo assaltante que, já de manhã, lhe aponta uma pistola no ponto de ônibus para roubar-lhe o celular com prestações ainda por vencer, e que, em menos de 24 horas, será posto na rua por pressão de juristas militantes e sociólogos de miolo mole adeptos do laxismo penal. Não, o problema está longe de ser a “leitura criminalizante das estratégias de sobrevivência dos pobres”. Ao contrário, o grande problema é aquilo que, parodiando a nossa socióloga, poderíamos chamar de leitura romantizante das estratégias de sobrevivência dos vagabundos.

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