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Ativista comemora o incêndio de uma igreja no Chile: intolerância do bem.
Ativista comemora o incêndio de uma igreja no Chile: intolerância do bem.| Foto: Reprodução Twitter

No Brasil, os ventos do secularismo militante têm soprado mais forte nos últimos dez anos ou mais. O catolicismo – religião que, segundo Gilberto Freyre, foi outrora o “cimento de nossa unidade” – é visto com uma espécie de horror por nossos jornalistas e bem pensantes. Se, no passado, como ressaltara o mestre de Apipucos, era praticamente impossível “separar o brasileiro do católico”, hoje tudo parece indicar que o difícil é reuni-los.

No Rio de Janeiro, é verdade, tivemos há alguns anos a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), impressionante mobilização da massa católica. Mas, para além de suas grandes proporções, o que fez do evento algo notável foi, sobretudo, a sua excepcionalidade. As centenas de milhares de pessoas que ali estiveram presentes não são as usualmente retratadas na imprensa e no show business. Em lugar dos midiaticamente onipresentes “sexo (ou funk), drogas e rock’n’roll”, os jovens na JMJ estavam atrás de algo aparentemente mais enfadonho e incompressível do ponto de vista da cultura pop contemporânea – o júbilo da fé religiosa. Quanto exotismo!

Hoje, a nossa ortodoxia é outra, edificada sobre uma mitologia iluminista e cientificista para a qual a religião é uma etapa a ser superada na longa caminhada humana através da história. Integrando o senso comum de nossos formadores de opinião, basta abrir os jornais para topar com exemplos e mais exemplos dessa cosmovisão. Notei o fato pela primeira vez ao analisar o debate brasileiro sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas (CTeh), em trabalho que tive a oportunidade de apresentar e discutir em conferência na University College London, em fevereiro de 2009. Na época, as pesquisas com as CTeh tinham sido recém-aprovadas no STF, num julgamento com ampla cobertura midiática e comoção social.

Hoje, a nossa ortodoxia é edificada sobre uma mitologia iluminista e cientificista para a qual a religião é uma etapa a ser superada na longa caminhada humana através da história

Logo no início do julgamento, o então ministro Carlos Alberto Direito pediu “vistas do processo”. No ato, a imprensa qualificou-o de “católico militante”. Assim também, mensagens de católicos aos ministros do STF foram classificadas de “fervorosas”. Por ocasião da consulta pública que debateu o tema “O Início da Vida”, alguns jornais falaram em “guerra santa” no STF. Um articulista resumiu a opinião geral, que o noticiário apenas insinuava: “Esta ação é um acinte absoluto contra a vida, é desumana, é cruel, é criminosa. E, para agravar ainda mais este retrato da miséria humana, é o apelo explícito ao obscurantismo que opõe a fé religiosa contra a ciência (...) Até que ponto a Justiça brasileira irá admitir o retorno aos tempos de inquisição religiosa e do fanatismo doentio? (...) Não podemos nos submeter ao mesmo desígnio de Galileu Galilei, contemporâneo de Bruno, que, para se livrar de destino semelhante, renega suas teses e se rende ao ultrapassado geocentrismo, contestado pelo simples uso das recém-descobertas lunetas (...) O Brasil é um país laico, ponto final. Esta é a única questão que não pode ser questionada ou debatida (...) Como país laico, nada de ensino religioso nas escolas públicas. Nada de isenções fiscais ou previdenciárias para atividades religiosas. Não é mais admissível voltarmos aos tempos medievais, onde graças aos limites da ciência e à frouxidão institucional dos Estados, o temor reverencial estimulado pelo medo e pela ignorância transformavam clérigos em árbitros dos limites da liberdade das sociedades. Hoje, felizmente, estamos distantes daqueles momentos obscuros da Humanidade”.

Algumas autoridades também aderiram à narrativa iluminista do progresso científico contra o retrocesso da religião. O ministro Carlos Ayres Britto, relator do julgamento no STF, expressou-se nos seguintes termos: “Chegou a hora da luz no debate sobre o papel da ciência moderna. Chega de trevas”. Em meio ao julgamento, o então ministro da Saúde,  José Gomes Temporão, alertou que, caso o STF votasse contrariamente às pesquisas com as CTeh, o Brasil poderia “entrar numa era de obscurantismo”. O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, afirmou que aquilo seria um “retrocesso” para o país.

“Retrocesso”, “obscurantismo”, “fervoroso”, “trevas”, “medieval” são termos recorrentemente associados à religião pelos formadores de opinião no Brasil – sejam jornalistas, intelectuais, artistas ou autoridades –, especialmente quando referidos a posicionamentos cristãos (católicos ou protestantes) no debate público. É em oposição a essa imagem fantasmagórica de religião que a noção de “Estado laico” – uma noção, paradoxalmente, de origem católica – costuma ser repetida psitacideamente pelos veículos de comunicação.

Escrevendo, por exemplo, sobre a conquista da medalha de ouro pela seleção brasileira feminina de vôlei, nos Jogos Olímpicos de 2012, um articulista da Folha de S.Paulo mostrou-se indignado pelo fato de as atletas terem rezado um Pai Nosso coletivo ao fim do jogo. Escreveu o nosso Voltaire tupiniquim: “O Brasil é oficialmente laico desde 1891 e a Constituição prevê a liberdade de religião. Será mesmo? O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o Pai Nosso? Ou será que alguns se sentiram compelidos a participar para não destoar da festa? Será que essas manifestações públicas e encenadas, em vez de propagar o caráter multirreligioso do país, não o estão atrapalhando? (...) Liberdade religiosa só existe quando não se mistura religião a nada. Nem à política, nem à educação, nem à ciência e nem ao esporte (...) Atletas precisam entender que estão representando um país de religiosidade livre. Eles têm todo o direito de manifestar sua crença, mas não enquanto vestem uma camisa laica”.

A reação é tão desproporcional que chega a ser engraçada. Uma manifestação espontânea de fé religiosa foi confundida pelo articulista com a imposição oficial de uma religião, uma agressão ao “Estado laico” – conceito ampliado ao ponto de englobar toda a pátria e os seus símbolos, tais como a bandeira e a camisa de uma seleção esportiva. Religião, para ele, só é legítima “quando não se mistura a nada”. Ou seja, as suas possibilidades de manifestação social estão excluídas de antemão. A religião deve não apenas ser assunto exclusivamente privado, como também secreto. Liberdade religiosa, para o autor, parece ser a liberdade que as pessoas têm de esconder e reprimir a sua fé em público. Nenhuma atleta de outra religião ou mesmo sem religião – se alguma havia – pareceu ter ficado ofendida. Então, o articulista ofendeu-se por elas.

O interessante é que reações histriônicas como as do articulista têm sido cada vez mais comuns. O fenômeno chegou a um nível tal que, para caracterizá-lo, não chega a ser exagerada a expressão jocosa empregada por Gilmar Mendes por ocasião do julgamento sobre a legalização do aborto de fetos anencéfalos: “faniquitos anticlericais”. Talvez numa das únicas vezes em que agiu com algum senso de justiça e razoabilidade, o ministro referia-se à decisão do relator do processo de excluir entidades religiosas como partes da ação. Nas palavras ditas por Mendes à época: “Essas entidades são quase que colocadas no banco dos réus como se tivessem fazendo algo de indevido, e não estão. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de delírio, esses faniquitos anticlericais”.

Os tais faniquitos assumem cá um ar algo patético porque, como sabemos, nenhum movimento intelectual sobrevive intacto quando desce abaixo do Equador. Aqui, as elevadas temperaturas amolecem os rigores das ideias. E as que inspiram os arroubos dos nossos neoiluministas deslumbrados vieram de fora já não muito rigorosas. Elas têm relação com um movimento cultural conhecido como neoateísmo, sobre o qual já escrevi nesta coluna.

O neoateísmo – também chamado de “ateísmo militante”, “fundamentalismo ateísta” e até mesmo “ateísmo evangélico” – é um movimento intelectual e editorial surgido no pós-11 de setembro de 2001. Ele é resultado de uma certa decepção generalizada com o fracasso das chamadas “teorias da secularização”, que previam – hoje pode-se dizer, com certeza, equivocadamente – o fim do pensamento religioso na medida em que a ciência e a técnica progredissem. Entre meados do século 19 e meados do 20, tudo parecia indicar que o “delírio” Deus – para fazer menção ao título do famoso livro de Dawkins – seria definitivamente extirpado da mente humana.

Após o 11 de Setembro, tudo mudou. A partir dali, criou-se uma impressão generalizada de que a religião estava mais viva do que nunca, revelando a sua pior faceta: o fundamentalismo. Muitos acreditaram que o terror em Manhattan era o resultado de uma guerra religiosa: a América cristã contra o mundo islâmico.

Foi nesse contexto que o neurocientista norte-americano Sam Harris lançou O Fim da Fé: Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, que pode ser considerado o manifesto originário do movimento neoateísta. Escrevendo com paixão e urgência – como ele mesmo relata, o livro começou a ser escrito já em 12 de setembro de 2001, sob forte impacto dos acontecimentos da véspera –, Harris conseguiu insuflar o ânimo de outros bem-pensantes, todos dispostos a executar tardiamente o célebre apelo de Voltaire: “Écrasez l‘Infâme!” A famigerada metáfora da guerra entre ciência e religião – tanto mais papagueada por nossa elite cultural e política quanto mais desacreditada academicamente – foi cada vez mais acionada a partir de então.

Entre meados do século 19 e meados do 20, tudo parecia indicar que o “delírio” Deus – para fazer menção ao título do famoso livro de Richard Dawkins – seria definitivamente extirpado da mente humana

Depois do livro de Harris, outros intelectuais e cientistas decidiram dar à luz obras com o mesmo teor. Em 2006, o paleontólogo e ensaísta Richard Dawkins lançou Deus, um delírio. No mesmo ano, o próprio Harris publicou Carta a uma nação cristã, que respondia a críticas à obra anterior. Também em 2006, o filósofo da mente Daniel Dennett publicou Quebrando o encanto: Religião como um fenômeno natural. No ano seguinte, foi a vez de o físico Victor Stenger lançar Deus: a hipótese falida, e de o jornalista e crítico literário Christopher Hitchens publicar Deus não é grande: como a religião envenena tudo.

Em 2009, tivemos a presença de Richard Dawkins na Festa Literária de Paraty (Flip). Uma matéria jornalística sobre a sua participação dá uma boa ideia do efeito causado sobre o público ali presente: “A plateia, com um encanto quase religioso, levantou-se e aplaudiu Dawkins entusiasmadamente”. A referida plateia compunha-se de jornalistas, pseudointelectuais, universitários, artistas, aquele tipo de gente, enfim, que o sociólogo Peter Berger qualificou certa vez de “elite cultural secular”, um fenômeno global. Para essa elite, Dawkins, um cientista de Oxford, é uma espécie de sacerdote a “provar cientificamente” o atraso e a falta de sentido da religião.

O que muitas daquelas pessoas não sabem – e não serei eu, aqui, quem irá quebrar-lhes o encanto – é que as obras de Dawkins sobre religião costumam ser objeto de pilhéria para a maior parte de seus pares. Mas essa é uma outra história…

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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