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Foto: Facebook/perfil oficial de Pabllo Vittar
Foto: Facebook/perfil oficial de Pabllo Vittar| Foto:

“Toda escrita é uma campanha contra os clichês” (Martin Amis)

Peço licença aos leitores para iniciar este artigo parafraseando o famoso diálogo do filme O Sexto Sentido, em que o menino Cole Sear (interpretado por Haley Joel Osment) descreve ao psicólogo infantil Malcom Crowe (Bruce Willis) a sua aflitiva capacidade de ver gente morta. No que concerne à minha aflição particular, seria o caso de trocar “gente morta” por clichês. Sim, eu vejo clichês. Com que frequência? O tempo todo.

No debate público brasileiro contemporâneo, todavia, ver clichês não requer nenhuma aptidão para o sobrenatural. Abra o jornal, e um clichezinho falastrão lhe cobrirá de perdigotos. Entre na internet, e um clichezão corpulento lhe pisará o pé. Ponha no telejornal local, e contemple o espetáculo da multidão de clichês na hora do rush. Ao contrário dos fantasmas, os clichês brasileiros são corados, espaçosos e prenhes de materialidade. Assim como os fantasmas, eles se divertem. Se, nos tempos do descobrimento, como escreveu Gilberto Freyre, o europeu saltava em terra “escorregando em índia nua”, ele hoje escorrega em clichê nu. Até mesmo os literatos hão de desembarcar com cuidado, sob pena de atolar o pé em frase feita. Não existe pecado estilístico do lado de baixo do Equador.

O mais recente clichê a me assombrar apareceu no Twitter, numa discussão comezinha sobre a seguinte postagem no perfil da revista Isto É: “A cantora Pabllo Vittar é a Brasileira do Ano na Música”. Como eu apontasse o surrealismo editorial de renegar a concordância de gênero (“a cantora Pabllo Vittar…”) em favor do politicamente correto – um vício pós-modernista comum, fundado sobre a crença no poder da palavra de transfigurar a realidade –, um internauta mui lacrador e deveras prafrentex confrontou-me com esta pérola: “A língua não é fixa. Ela se adapta, evolui”.

Ora, porra! – proferi mentalmente, diante de tão portentoso acacianismo, o já famoso bordão de Olavo de Carvalho. No que tem de verdadeira, a frase é banal. Qualquer bípede dotado de telencéfalo desenvolvido e polegar opositor (inclusive a ex-presidente Dilma Rousseff) sabe que a língua tem uma dimensão histórica, transitória e sujeita a transformações ao longo do tempo. Portanto, sim: realmente, a língua não é fixa. Mas quem diabos disse que era, ó raios? Ninguém em sã consciência (nem mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff) imagina que o português falado hoje, por exemplo, seja idêntico ao que se falava no século 17.

Mas, decerto tendo ouvido aquela obviedade formulada em jargão pseudocientífico por algum medalhão acadêmico, o meu Conselheiro Acácio virtual imaginou estar anunciando uma novidade espantosa, acessível apenas a iniciados nalguma ciência esotérica. Exibindo aquele típico provincianismo universitário brasileiro, o sujeito bateu-se em luta quixotesca contra um senso comum que só existe em sua cabeça, apressando-se em desvelar mistérios há muito conhecidos por toda a gente. Nisso, comportou-se tal qual o soldado japonês Hiroo Onoda, quem, tendo descoberto que a Segunda Guerra terminara havia quase 30 anos, durante os quais ele vivera alheio à passagem do tempo numa montanha nas Filipinas, ficou muito espantado e ansioso por espalhar a notícia. Não deve ser coincidência, aliás, o fato de que Onoda tenha vivido uma temporada no Brasil.

Sim, por um lado, a afirmação do meu interlocutor é de fato banal, de uma obviedade quase pornográfica. Por outro lado, contudo, há nela um considerável componente de engodo. Para começar, na sugestão de que a língua evolui necessariamente com o passar do tempo. Temos aí uma falácia progressista característica, que consiste em confundir transformação com aprimoramento, como se o fato empírico de que as coisas mudam implicasse que mudam sempre, e de modo contínuo, para melhor. Mas há engodo, sobretudo, na incapacidade de levar em consideração a natureza dual da língua, que se compõe, de fato, de uma parte transitória, diacrônica e suscetível à ação do tempo, mas também de uma parte permanente, sincrônica e estável. Se não tivesse nada de fixo a orientar a variação ao nível da fala, uma língua perderia seu senso de continuidade temporal, bem como sua unidade cultural, tornando-se menos e menos comunicativa com o passar dos anos. Numa mesma comunidade linguística, cada grupo social ou mesmo cada indivíduo pode ter suas particularidades vocabulares, mas não a sua própria gramática.

Ao evocar aquela dupla natureza da língua, trazemos à baila a célebre dicotomia langue vs. parole (“língua” vs. “fala”), cunhada por Ferdinand de Saussure, um dos pais fundadores da linguística estruturalista. Enquanto a langue, fenômeno coletivo, é um sistema homogêneo de signos cuja coerência interna é possível abstrair sob a forma de uma gramática, a parole apresenta-se como assistemática, heterogênea e mutável, consistindo no ato individual de falar. A langue, em suma, é a linguagem enquanto sistema. A parole, a linguagem enquanto uso. A primeira estabelece um eixo vertical das relações intrínsecas entre os elementos do sistema. A segunda, um eixo horizontal relativo à temporalidade da fala.

Fazendo uma analogia com a música, pode-se dizer que a parole corresponde à série melódica, enquanto a langue equivale à estrutura harmônica. Uma melodia não se constrói de maneira aleatória e desordenada, mas sobre as fundações de uma harmonia – sistema de relações entre os intervalos sonoros, que configuram a tonalidade da música. Se as notas da melodia se sucedem, incontinenti, através dos compassos, o tom da música (a não ser que estejamos falando de música atonal) não pode mudar com a mesma frequência, sob pena de destruir a estrutura harmônica que orienta a variação melódica. A harmonia é a “gramática” que sustenta a liberdade criativa dos “falantes” (no caso, melodistas e improvisadores).

Assim como a harmonia e a melodia, a langue e a parole são complementares e interdependentes. Uma é forma; a outra, substância. Se a parole corresponde ao aspecto inovador da linguagem, a langue manifesta a sua natureza conservadora. Nas palavras do próprio Saussure: “A língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça”.

Ocorre que clichês do tipo “a língua não é fixa” costumam ignorar o aspecto estrutural e mais permanente da linguagem, como se esta fosse uma moeda de uma só face – a face da parole. Não por acaso, esses clichês tendem a ressurgir de tempos em tempos na boca de linguistas metidos a justiceiros sociais, bem como na de seus papagueadores na imprensa, que atacam a gramática normativa por seu pretenso elitismo, e caracterizam o ensino da norma culta como “preconceito linguístico”. Violando uma regra básica do método científico, e encantados com a estonteante heterogeneidade da parole, esses luminares pretendem extrair uma nova norma revolucionária a partir do simples fato da variação linguística. Para isso, é claro, não hesitam em mandar às favas as concordâncias número-pessoais (“Nós pega o peixe”) e de gênero (“A cantora Pabllo Vittar”). São adeptos da fala sem língua, da melodia sem harmonia. Não é de se estranhar, portanto, que exibam um senso estético tão peculiar, elevando à condição de fenômeno musical cantores que, mudando involuntariamente de tom a cada compasso, transformam sons em ruídos, notas em gritos, melodia em agonia.

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