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desfile militar Rússia 2020
Soldados do Exército de Libertação Popular da China marcham na Praça Vermelha, em Moscou, em cerimônia comemorativa dos 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial.| Foto: Pavel Golovkin/Pool/AFP

“Para se chegar à vitória, é preciso cegar e ensurdecer o inimigo, tapando-lhe olhos e ouvidos, e distrair seus comandantes criando confusão em suas mentes” (Mao Tsé-tung)

“Bill, a China não é uma ameaça” – foi o que, nos escritórios da Agência de Inteligência e Defesa (DIA) dos EUA, o seu diretor, tenente-general do Exército americano, disse ao jornalista Bill Gertz no longínquo ano de 1999. Estranhando a opinião inusitada, o repórter do Washington Times, especializado em segurança nacional, quis saber o motivo. E surpreendeu-se com a resposta do oficial do Pentágono: a China não era uma ameaça porque seus líderes assim o garantiam.

“Fique chocado” – confessa Gertz. “À época, esse tipo de retórica apaziguadora era comum entre políticos e até mesmo agentes civis de inteligência, que, por anos, minimizaram o perigo de uma ditadura comunista nuclearmente armada. O que espantou foi ouvir essa linha de raciocínio de um dos mais experientes e graduados oficiais de inteligência do país, sujeito que, de sua posição, controlava as políticas de defesa e segurança nacional do governo e do exército americanos”. O episódio motivou-o a escrever Deceiving the Sky: Inside Communist China’s Drive for Global Supremacy (Encounter Books, 2019), livro absolutamente inescapável para quem quer compreender o que se passa no mundo contemporâneo e vislumbrar os cenários pós-pandemia.

O título – Deceiving the Sky (“Enganando o céu”) – faz referência a uma velha estratégia militar chinesa, resumida no lema: “Engane o céu para cruzar o mar”. Reza a lenda que, há muito tempo, um certo imperador hesitava por iniciar uma campanha militar contra a vizinha Koguryo (hoje Coreia). Então, um de seus generais convenceu-o a jantar na casa de um rico camponês. Quando o imperador entrou na casa, ela se moveu. O filho do Sol fora enganado, embarcando num navio rumo à frente de batalha. Em vez de desembarcar, ordenou que seus exércitos avançassem, e acabou vencendo a guerra. Mais tarde, a lenda converteu-se no primeiro dos famosos 36 Estratagemas chineses para a arte da guerra: “Tramas secretas não são incompatíveis com atos explícitos, mas, ao contrário, neles se disfarçam. A explicitude máxima disfarça o máximo segredo. Assim, para cruzar o mar sem que o céu perceba, há que se mover livremente pelo mar, mas agindo como se não pretendesse cruzá-lo”.

A política de apaziguamento transformou a China numa potência militar, tecnológica e econômica imbuída de um temerário projeto de expansão imperialista

Para Gertz – autor de vários best-sellers sobre o assunto, incluindo The China Threat: How the People’s Republic Targets America, de 2000, no qual apontava a ditadura comunista chinesa como a maior ameaça do século 21 –, a fala do diretor da DIA ilustrava um perigoso desconhecimento, por parte de autoridades americanas, sobre a natureza do regime chinês e suas ousadas pretensões à conquista de hegemonia mundial. Como era possível que um homem com tantas divisas sobre os ombros apenas confiasse nas garantias diplomáticas de um regime que, ademais de nuclearmente armado, tem na desinformação estratégica o cerne de suas relações internacionais? Sua perplexidade faz lembrar a de Anatoly Golitsyn, o ex-oficial da KGB que, em obras como New Lies for Old, de 1984, e The Perestroika Deception, de 1995, deu murros em ponta de faca para tentar alertar aos estrategistas do Ocidente sobre as sutilezas da desinformação soviética em fins dos anos 1980, que os induziu a crer na sinceridade das promessas de Gorbachev e camaradas quanto à “abertura” ou à “liberalização” do regime.

Com base num triunfalismo liberal pueril – segundo o qual a China se abriria para a democracia e para as liberdades civis no momento em que sua economia começasse a girar na rotação capitalista (ver, sobre isso, The China Fantasy, de James Mann) –, pode-se dizer que a política de apaziguamento vem desde, ao menos, Richard Nixon. Mas foi com os governos de Bill Clinton e Barack Obama – passando pelo de George W. Bush, que, nesse terreno, seguiu a mesma orientação – que a coisa atingiu um novo patamar.

Sob o governo Clinton, a tecnologia americana transferida (ou ilegalmente desviada) para a China, totalizando centenas de bilhões de dólares por ano, impediu que mísseis estratégicos chineses explodissem no lançamento, e permitiu que o país comunista adquirisse expertise no lançamento de satélites e Mísseis de Reentrada Múltipla Independentemente Direcionada (MIRVs) coroados com ogivas nucleares. À época, Clinton gabava-se de que o compartilhamento de tecnologia com a China teria um impacto libertário sobre o regime. Segundo ele, uma China conectada seria uma força democratizante. “Qualquer iniciativa para controlar a internet será como tentar pregar uma gelatina na parede” – chegou a brincar. Hoje, duas décadas depois da piadinha, a ditadura comunista chinesa não apenas pregou a gelatina na parede como está construindo, numa escala sem precedentes, um sistema totalitário de alta tecnologia, capaz de controlar a internet (como já faz internamente) e, em breve, possivelmente encurralar os mercados globais de tecnologia, com o desenvolvimento da internet 5G, um combustível e tanto para o setor de estratégia militar e para a prática de um mercantilismo agressivo e predatório.

Com Barack Obama e seu vice Joe Bidencujos negócios da China são hoje bem conhecidos –, as coisas pioraram. Em 2016, a política de apaziguamento chegou ao ponto de a Casa Branca emitir uma ordem proibindo que seus funcionários falassem publicamente sobre ameaças militares e outras vindas da China. Durante a administração democrata, houve um decréscimo alarmante de inteligência acumulada sobre o país rival, e a América teve sua segurança nacional comprometida por conta da negligência – e, em muitos casos, do acobertamento intencional – quanto ao gigantesco assalto chinês à tecnologia americana. Ademais, a inação do governo Obama facilitou o domínio da China sobre o Mar do Sul, com a aquisição de 3,2 mil acres de novas ilhas, nas quais foram instalados mísseis antinavios e antiaéreos extremamente avançados, num processo que a própria CIA viria a chamar de “Crimeia chinesa”, comparando-o à anexação, pela Rússia, da península ucraniana, em 2014.

A política de apaziguamento, antes que “abrir”, “pacificar” ou “liberalizar” a China, como projetava a utopia liberal-progressista, tudo o que fez foi transformar o gigante asiático numa potência militar, tecnológica e econômica imbuída de um temerário projeto de expansão imperialista. Em 2012, com a chegada ao poder de Xi Jinping – de acordo com Gertz, um admirador confesso de Mao Tsé-tung, Stalin e Hitler –, a China retomou de vez suas raízes maoístas, endurecendo a ditadura interna na medida mesmo em que, em vários fronts simultâneos, avança agressivamente sobre todo o planeta – seja no terreno da guerra comercial, da propaganda e da compra de consciências, da alta tecnologia ou da guerra biológica. Diante dessa realidade, é alarmante notar o grau de alienação das classes falantes e políticas brasileiras, que, com pose de moderação e desprezo pelo que chamam de “teorias da conspiração”, tomam dádivas chinesas como a Coronavac e o 5G da Huawei por seu valor de face, nem sequer concebendo a hipótese de que possam ser cavalos de Troia.

Deceiving the Sky foi publicado em 2019, quando, evidentemente, ninguém ainda podia imaginar que o mundo fosse ser assolado por uma pandemia vinda da China. Hoje, depois de tudo o que sabemos sobre a atuação do governo chinês desde o início da crise do coronavírus, considerando os desdobramentos econômicos e geopolíticos convenientemente favoráveis ao gigante asiático, bem como a insistência de grande parte do Ocidente (incluindo o Brasil) na estratégia do apaziguamento, o livro de Bill Gertz reveste-se de um novo sentido, perturbador, impactante e frequentemente profético. E, enquanto o céu parece dormir, a China cruza o mar em alta velocidade. Voltarei ao tema nos próximos artigos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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