Quem já travou contato com a obra do filósofo Eric Voegelin sabe que um dos seus insights mais interessantes (expresso sobretudo em A nova ciência da política e Ciência, política e gnosticismo: Dois ensaios) foi a análise dos movimentos de massa do século 20 à luz do gnosticismo – nome que designa um sem-número de heresias cristãs dos primeiros séculos de nossa era. Numa proposta ousada, o autor chegou a cunhar o termo “gnosticismo moderno” para se referir a movimentos políticos tais como comunismo e nazismo, e também a movimentos intelectuais massificados, tais como psicanálise e marxismo.
Ocorre que o próprio termo “gnosticismo” nunca deixou de suscitar controvérsia entre especialistas. Muitos argumentam que a palavra não era utilizada antes do século 17, e que a sua aplicação irrestrita a fenômenos muito antigos seria extemporânea e artificial. Ademais, e de maneira complementar, outros criticam o emprego abusivo da palavra, sob o argumento de que, utilizada como foi das maneiras as mais elásticas, tudo o que fez foi gerar confusão quanto ao seu sentido preciso.
Numa obra em que propõe nada menos que o abandono do termo, por exemplo, o estudioso de religião comparada Michael Allen Williams cita os comentários sarcásticos do historiador romeno Ioan Culianu, grande estudioso de religiões antigas: “Acreditei outrora que o gnosticismo fosse um fenômeno bem definido, pertencente à história religiosa da Antiguidade... No entanto, logo descobriria estar sendo ingênuo... De intérpretes autorizados da gnose, soube mais tarde que a ciência é gnóstica, assim como a superstição; o poder, o contrapoder e a ausência de poder são gnósticos; a esquerda é gnóstica e a direita é gnóstica. Hegel é gnóstico, tal qual Marx. Freud é gnóstico, e também Jung. Todas as coisas e os seus contrários são igualmente gnósticos”.
Foi por essas e outras que, desde o início, a associação proposta por Voegelin entre fenômenos tão distantes no tempo, além de aparentemente tão díspares, gerou muitas críticas. Um grande número de intelectuais não conseguiu ver qualquer conexão evidente entre uma série de antigas especulações teológicas e místicas, mal acomodadas sob um mesmo nome, e um mundo moderno progressivamente secularizado. Sob esse ponto de vista, a tese voegeliana afigurava-se como arbitrária e forçada. Alguns críticos mais afoitos – como, por exemplo, o teólogo Thomas Altizer – não hesitaram em afirmar grosseiramente que “o professor Voegelin acha que tudo é gnóstico”.
Uma crítica menos pueril à interpretação voegeliniana foi redigida pelo filósofo político John Gray, para quem “a política moderna é um capítulo na história da religião” – afirmação não muito distante da posição do próprio Voegelin. Ocorre que, para Gray, é o milenarismo medieval, antes que o gnosticismo, o pai das modernas religiões políticas de nossa história (entre as quais o autor inclui a Revolução Francesa). O milenarismo – que, segundo o autor, seria uma decorrência direta da escatologia cristã (tese, essa sim, com a qual Voegelin dificilmente concordaria) – consiste na projeção de um paraíso terreno no qual as imperfeições humanas e os males sociais serão para sempre corrigidos por intermédio de Deus, do Espírito Santo e, sobretudo, da própria ação humana. Trata-se da ideia do fim da história e da instauração do reino de Cristo, que, segundo a tradição milenarista, retornaria à Terra e “reinaria por mil anos” (daí a origem do termo). O fenômeno teria recrudescido entre os séculos 11 e 16, quando vários movimentos de massa eclodiram por toda a Europa, baseados, de um modo ou de outro, na expectativa de apressar o Juízo Final (ver, sobre isso, The pursuit of the millennium, de Norman Cohn).
A partir da Reforma, prossegue Gray, o fenômeno intensificou-se, quando líderes radicais e messiânicos como John de Leiden (1509-1536), John Knox (1514-1572) e Thomas Münzer (1490-1525) lideraram grupos de camponeses revoltosos em conflitos sangrentos, naquilo que se pode considerar como uma espécie de antecipação do projeto comunista.
Para o autor, a escatologia fatalista típica do milenarismo cristão, raiz dos milenarismos políticos modernos, está ausente no gnosticismo. Ao contrário dos milenaristas medievais, os gnósticos jamais projetaram uma utopia. A salvação que buscavam era de tipo ascética (em certo sentido, epicurista), consistindo na fuga do mundo cruel em que se percebiam aprisionados, mediante um conhecimento esotérico sobre sua verdadeira condição.
Gray afirma não haver no gnosticismo nenhuma proposta de acelerar ou instaurar o fim dos tempos. Os gnósticos entendiam a salvação como aquisição individual (e não coletiva, como no milenarismo), que envolveria mais uma libertação do mundo (ou do tempo) do que propriamente o seu fim.
Embora, no geral, seja um autor muito perspicaz, Gray parece-me equivocado nesse ponto. Primeiro, por desconsiderar que tanto a fuga do mundo quanto a sua eliminação (ou a sua transformação, como preferem os milenaristas seculares da modernidade) dependem de uma mesma atitude existencial: a hostilidade diante do mundo, ou – na expressão cunhada por Albert Camus em O homem revoltado – “revolta metafísica”. Essa revolta está na raiz dos movimentos revolucionários da modernidade, passando pelo milenarismo medieval, e começa com o anticosmismo dos antigos gnósticos (um fenômeno há muito notado, entre outros, por Plotino).
Foi esse anticosmismo que Voegelin destacou como o elemento contínuo subjacente à imensa variedade de manifestações gnósticas ao longo da história. Sim, é fato que, já no tempo dos primeiros Pais da Igreja, as seitas gnósticas eram tidas por “tão numerosas quanto as cabeças da Hidra de Lerna” (na formulação de Santo Irineu). Contudo, se de um ponto de vista estritamente ideológico e doutrinal seria impraticável discernir qualquer unidade significativa por baixo de tamanha diversidade, é possível abordar o fenômeno a partir de um nível mais profundo que o das formulações explícitas, crenças e práticas gnósticas. E foi o que fez Voegelin. Em lugar de uma história das ideias, o filósofo alemão propôs foi uma fenomenologia do gnosticismo, uma vez que, em suas próprias palavras, “a substância da história deve ser buscada ao nível das experiências, não ao nível das ideias”.
Voegelin percebeu muito bem que, se há algo de constante nos movimentos gnósticos dos primeiros séculos de nossa era até os dias de hoje, esse algo está presente na própria percepção gnóstica da estrutura do real, e não em exegeses ou simbolismos específicos, que não passam de elaborações a posteriori – doutrinas abstratas passíveis de formulação racional – de uma percepção pré-racional da realidade.
Mais equivocada ainda é a opinião de Gray segundo a qual “nenhum pensador gnóstico vislumbrava um mundo no qual a vida humana já não seria sujeita ao mal”. O retorno gnóstico ao reino primevo da luz significa precisamente um retorno a esse universo idílico, livre de todo o mal – identificado, no caso, à condição de agnoia (ignorância mundana). Esse retorno é possibilitado pela gnose, a mensagem de salvação, que informa ao homem sobre sua condição de prisioneiro neste mundo, bem como sobre os meios de sua libertação. Como escreveu o sociólogo italiano Luciano Pellicani: “O gnosticismo é a tradição de pensamento soteriológico surgida inicialmente no Cristianismo primitivo, reemergindo periodicamente, tal qual um fluxo subterrâneo, do subsolo da civilização ocidental”.
Sentindo-se infeliz e angustiado neste mundo, o gnóstico acredita que o seu destino verdadeiro é a felicidade e a plenitude que o aguardam no outro mundo, um lugar em que jamais esteve, mas do qual, mesmo assim, acredita ter sido injustamente expulso. Pouco importa que esse outro mundo seja um domínio transcendente e fora do tempo (tal qual o Pleroma do gnosticismo clássico), ou um futuro glorioso (como nas modernas filosofias da história). Importa é que, para o gnóstico, a infelicidade, mesmo sendo uma condição atual, não é a condição real e essencial do homem. O gnóstico não aceita o mal com naturalidade: escandaliza-se. E, como sugere o filósofo húngaro Thomas Molnar, o escândalo com a presença do mal no mundo – ou, em outras palavras, com a própria estrutura da realidade – é um dos traços distintivos das utopias. Para o gnóstico, a realidade é apenas um momento de angustiante espera, um terrível local de passagem que o separa de sua verdadeira natureza divina.
Portanto, Gray equivoca-se ao desprezar as dimensões utópica e política do gnosticismo. Em que pese a sua afirmação de que a salvação gnóstica é individual e não coletiva, resta claro que todo gnóstico é impelido a passar sua experiência adiante, com uma consequência política inevitável: a atração de seguidores que, frustrados com a “primeira realidade” pelos mais variados motivos, e ansiosos por uma “segunda realidade” (na expressão do romancista Robert Musil), prostram-se como que hipnotizados diante da dominação carismática dos profetas gnósticos. Foi exatamente o que aconteceu com os mestres gnósticos Simão de Samaria, Valentim de Alexandria e Basílides de Alexandria, que, nos primeiros séculos da era cristã, atraíram multidões de seguidores.
Como explica o filósofo alemão Hans Jonas no clássico The gnostic religion: “Em sua vida, os pneumáticos, que é como chamam a si próprios os portadores da gnose, estão apartados da grande massa da humanidade. A iluminação imediata não apenas torna o indivíduo soberano na esfera do conhecimento (daí a ilimitada variedade de doutrinas gnósticas) como também determina a esfera da ação”.
Se a análise de Gray despolitiza o gnosticismo, percebe-se que, na visão de Jonas, a gnose não pode deixar de conduzir à ação humana de salvação e, portanto, à política. Portanto, creio que o núcleo do messianismo político moderno, como precisamente sugere Voegelin, encontra-se já no gnosticismo. Tanto os milenarismos medievais quanto os milenarismos seculares (comunismo e nazismo, em particular) são desdobramentos de uma mentalidade gnóstica, que pode ser compreendida como uma “experiência fundamental”, um “modo de sentir”, uma “visão da realidade distintivamente característica” (como se exprime Hans Jonas). O conceito de mentalidade gnóstica sugere um nível mais profundo de expressão do que a diferenciação doutrinal e circunstancial poderia deixar entrever.
Mais do que um corpo doutrinal e simbólico, o gnosticismo parece ser uma disposição existencial plena, que inclina o espírito a adotar uma postura sui generis em relação à realidade. O gnóstico é dominado por um verdadeiro horror à existência, que o envolve em perpétua sensação de angústia e incômodo. Para ele, o mundo atual é o domínio do absurdo e da indiferença. O gnóstico está no mundo, mas não se sente pertencendo ao mundo. Sua experiência é de abandono, solidão, impotência – em suma, alienação. “Sou um estranho para a ordem existente das coisas” – dizia o jovem niilista russo Dimitri Pisarev, como que saindo das páginas de Dostoievski –, “não devo misturar-me a elas”.
Dessa mentalidade que se escandaliza com o real nasce um sentimento inevitável de autopermissividade, a tal ponto que escândalo e autopermissividade formam um mecanismo de retroalimentação. Baseando-se no clássico Das leis da política eclesiástica, do teólogo Richard Hooker (1554-1600), Voegelin mostra como o referido mecanismo esteve presente de modo significativo no movimento puritano inglês durante os séculos 16 e 17. A obra de Hooker sobre o puritanismo na Inglaterra consiste num magistral estudo de caso sobre a estrutura da mentalidade gnóstica, já em seu formato moderno e tipicamente revolucionário.
Como sugere Voegelin, é possível especular que, com o movimento puritano, surge pela primeira vez na história uma das armas mais eficazes utilizadas pelos revolucionários gnósticos de ontem e de hoje: a noção de causa política. Para se iniciar qualquer movimento político de tipo revolucionário, é preciso, antes de tudo, a presença imponente de uma causa que tudo justifica. Nas palavra do filósofo: “De modo a avançar a sua ‘causa’, o homem que a sustenta irá, diante da multidão, entregar-se a uma crítica severa dos males sociais e, em particular, da conduta das classes altas. A repetição constante da performance induzirá entre os ouvintes a opinião de que ele deve ser alguém de singular integridade, zelo e santidade, pois apenas homens singularmente bons seriam capazes de se ofender tão profundamente com o mal”.
Para o estudioso brasileiro, o insight de Voegelin deve ser sempre revisitado, sobretudo porque a mentalidade gnóstica está mais viva do que nunca no Brasil contemporâneo. O mecanismo escândalo-autopermissividade tem gerado todo tipo de “causa” (direitos dos animais, direitos das minorias, feminismo, anticapitalismo, anarquismo, justiça social etc.) utilizada como justificativa para a violência revolucionária e a reinvindicação do direito ao crime. As ruas e as redes sociais estão coalhadas de jovens auto-hipnotizados por uma crença cega na própria bondade e senso de justiça. Como ironizou certa vez o filósofo canadense Charles Taylor: “Asseguramo-nos de nossa própria bondade por meio de uma apaixonada atitude contra o mal. Combato a poluição, logo, sou puro”.
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