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O Presidente da República, Jair Bolsonaro, participa da cerimônia de hasteamento da Bandeira Nacional, na área externa do Palácio da Alvorada.
O Presidente da República, Jair Bolsonaro, participa da cerimônia de hasteamento da Bandeira Nacional, na área externa do Palácio da Alvorada.| Foto: José Cruz/Agência Brasil

O debate público no Brasil é mesmo tedioso, e não cansa de ilustrar a previsibilidade quase etológica de nossos formadores de opinião. Bastou, por exemplo, que o presidente Jair Bolsonaro aventasse a hipótese de um evangélico como ministro do STF para que, reagindo psitacideamente, os nossos palpiteiros profissionais começassem a palrar: Estado laaaico, Estado laaaico. Tivessem ao menos a versatilidade vocabular de seu parente africano, o papagaio-cinzento (Psittacus erithacus), capaz de memorizar mais de 100 palavras, e talvez estivéssemos em situação um pouco menos vexaminosa. Mas não. Diante de toda conversa sobre a relação entre Cristianismo e esfera pública, os nossos periquitinhos aferram-se ao único som que aprenderam a imitar, sem, evidentemente, atinar-lhe com o sentido: Estado laaaico, Estado laaaico.

Ora, achar que Cristianismo e laicidade são ideias incompatíveis só pode ser a expressão de um mecanismo muito rudimentar de raciocínio, pois até mesmo o Psittacus erithacus deve sabe aquilo que os jornalistas brasileiros (para quem a história humana começou no Iluminismo) ignoram solenemente: que o próprio conceito de laicidade é, sem qualquer sombra de dúvida, uma criação cristã; que não existia antes do Cristianismo, e que, ainda hoje, não se mantém fora dessa matriz civilizacional.

É apenas em perspectiva que aquela inovação histórica pode ser percebida em toda a sua radicalidade. Pois o Cristianismo não surgiu há mais de dois mil anos simplesmente como uma nova religião entre outras, mas como um novo conceito de religião, e, mais ainda, uma configuração inédita entre religião e política. E são esses conceito e configuração que hoje adotamos de modo natural e espontâneo, colhendo os frutos da árvore, mas, não raro, amputando-lhe as raízes históricas.

Para se compreender o impacto que o Cristianismo exerceu sobre o mundo pagão, basta consultar a literatura greco-romana sobre o assunto. No século 2 d.C., por exemplo, o filósofo grego Celso publicou Sobre a verdadeira doutrina, um dos primeiros tratados formais contra o Cristianismo de que se tem notícia. Embora o texto original tenha se perdido, conhecemos algo de seu argumento através da refutação que lhe dedicou Orígenes de Alexandria, um dos Pais Fundadores da Igreja, na obra Contra Celso.

Basicamente, Celso acusava os cristãos de serem ímpios. Para gregos e romanos do período clássico, os deuses a serem adorados eram deuses de Estado (das cidades ou das famílias), e as religiões clássicas eram, portanto, religiões políticas. Como se recusavam a adorar esses deuses estatais, e uma vez que não reconheciam a divindade do imperador, os cristãos eram tidos por perigosamente antissociais e blasfemos. Para escândalo de Celso e seus contemporâneos, o Deus dos cristãos era, não apenas “estrangeiro”, como transcendente às coisas de César. Isso era um desafio frontal à visão-de-mundo clássica.

Em A cidade antiga (1864), o célebre historiador Fustel de Coulanges descreveu com maestria o significado da emergência do Cristianismo no contexto cultural pagão. Em suas palavras: “A vitória do Cristianismo assinala o fim da sociedade antiga… Com o Cristianismo, não só o sentimento religioso se avivou, mas tomou ainda expressão mais elevada e menos material… O divino foi devidamente colocado fora e acima da natureza visível… A religião deixou de ser exterior; residiu sobretudo no pensamento do homem. A religião deixou de ser matéria; tornou-se espírito… O Cristianismo trouxe ainda outras inovações. Deixou de ser a religião doméstica de determinada família, a religião nacional de uma tal cidade ou raça. Não pertencia nem a uma casta, nem a uma corporação. Desde o início, chamou a si toda a humanidade… Havia nisso tudo algo de muito inovador. Porque, por toda a parte, na primeira idade da humanidade, se havia concebido a divindade como pertencendo especialmente a uma raça. Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino… No que respeita ao governo do Estado, podemos dizer que o Cristianismo o transformou em essência, precisamente porque não se ocupou dele. Nos velhos tempos, a religião e o Estado formavam um todo… Jesus Cristo ensina que o seu reino não é deste mundo. Separa a religião do governo”.

Também Arnold Toynbee, no livro A abordagem de um historiador à religião (1956), demonstra como o Cristianismo nasceu em oposição às modalidades ritualísticas de autoadoração humana, especialmente em sua forma coletiva, a saber, os cultos pagãos ao Estado e à comunidade. Aquelas que Toynbee chama de “religiões do Homem” constituíram-se como cultos a comunidades paroquiais, que, eventualmente, como foi o caso de Atenas e Roma, tornaram-se comunidades ecumênicas. Essas “religiões de estado”, explica o autor, surgiram em função da necessidade de sanções sagradas como garantia da ordem pública. Nesse sentido, cabem perfeitamente na formulação clássica do sociólogo Émile Durkheim, segundo a qual o fenômeno religioso surge como divinização da própria sociedade. E explicam por que o Cristianismo sempre se acomodou muito mal nesse esquema interpretativo, uma vez que, como já apontaram, entre outros, Maquiavel, Hobbes e Rousseau, consiste numa religião essencialmente “contrária ao espírito social” (nas palavras do último).

Mas não é apenas numa perspectiva histórica que a separação cristã entre religião e política se faz visível, senão também numa perspectiva geográfica, por assim dizer. Basta contrastá-la com o que se passa na outra grande tradição religiosa monoteísta contemporânea: o Islã. Não há, no mundo islâmico (como não havia no mundo pagão), uma divisão conceitual entre o temporal e o espiritual. Temos, em vez disso, um sistema religioso total, e a lei sagrada vale igualmente para todos os assuntos mundanos, disciplinando a vida privada e familiar, a prece, os rituais, as normas de etiqueta e de higiene, os negócios, a legislação, a política etc. Com efeito, não é nem mesmo correto falar em “religião” nesse contexto específico, algo como uma esfera autônoma de fenômenos, pois não há nada aí que escape ao religioso.

Como explica o reconhecido islamólogo Bernard Lewis em A linguagem política do Islã (1988): “Quando nós, no Ocidente, usamos as palavras ‘Islã’ e ‘islâmico’, tendemos a cometer um erro natural, pressupondo que religião tem para os muçulmanos o mesmo sentido que para o mundo ocidental, a saber: um compartimento da vida reservado a certas questões, separado, ou ao menos separável, de outros compartimentos equivalentes. Não é assim que funciona no islamismo… A distinção entre igreja e Estado, tão profundamente enraizada na cristandade, simplesmente não existe no Islã. No árabe clássico, bem como em outros idiomas que dele herdaram o seu vocabulário político e intelectual, não há um par de termos que corresponda a espiritual e temporal, leigo e eclesiástico, ou religioso e secular… Não há aí algum equivalente à palavra laicidade, uma expressão sem sentido no contexto islâmico”.

O princípio da laicidade é, portanto, inseparável da herança cultural cristã. Os laicistas de última hora que, do alto da arrogância de sua fábrica de clichês, e no fundo de sua abissal ignorância histórica, pretendem dar aula de Estado laico agem como o perna-de-pau que resolvesse ensinar o Zico a bater falta. Se, na boca de um cristão, o conceito carrega todo o peso semântico de uma tradição bimilenar, na dos nossos periquitos de redação ele soa mesmo como um simples chalreado: Estado laaaico, Estado laaaico.

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